Boa noite Grodek Georg Trakl¹ Ao entardecer as armas da morte Ressoam nas florestas outonais, as planícies douradas E os lagos azuis, por cima, o sol rola, sombrio; A noite abraça os guerreiros moribundos, O lamento selvagem de suas bocas quebradas. Mas o sossego concentra nuvens vermelhas Entre os salgueiros, onde mora um deus feroz, O sangue derramado, a frescura lunar; Todos os caminhos acabam em podridão. Sob as ramagens douradas da noite e das estrelas A sombra da irmã cambaleia através Do silencioso arvoredo para saudar os espíritos dos heróis, As cabeças ensanguentadas; E, silenciosas, as escuras flautas do outono ressoam no juncal. Ó orgulhosa tristeza! E vós altares de bronze, A chama quente do espírito alimenta hoje uma grande Dor – os netos não nascidos. Georg Trakl * Salzburgo, Áustria, 3 de Fevereiro de 1887 + Cracóvia, Polônia – 3 de novembro de 1914
Boa noite É o silêncio Pedro Kerry¹ É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa. Olha-me a estante em cada livro que olha. E a luz nalgum volume sobre a mesa… Mas o sangue da luz em cada folha. Não sei se é mesmo a minha mão que molha A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa. Penso um presente, num passado. E enfolha A natureza tua natureza. Mas é um bulir das cousas… Comovido Pego da pena, iludo-me que traço A ilusão de um sentido e outro sentido. Tão longe vai! Tão longe se aveluda esse teu passo, Asa que o ouvido anima… E a câmara muda. E a sala muda, muda… Àfonamente rufa. A asa da rima Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda Novo, um fantasma ao som que se aproxima. Cresce-me a estante como quem sacuda Um pesadelo de papéis acima… E abro a janela. Ainda a lua esfia últimas notas trêmulas… O dia Tarde florescerá pela montanha. E ó minha amada, o sentimento é cego… Vês? Colaboram na saudade a aranha, Patas de um gato e as asas de um morcego. ¹Pedro Militão Kilkerry * St. Antônio de Jesus, BA – 1885 d.C + Salvador, BA – 1917 d.C Filho de irlandês e baiana, Pedro Militão Kilkerry formou-se em Direito pela Faculdade da Bahia. Pobre e boêmio, morreu tuberculoso, em Salvador, sem ter qualquer livro publicado. Esquecida em meio à multidão de poetas simbolistas recolhidos por Andrade Muricy, no seu gigantesco Panaroma do Movimento Simbolista Brasileiro, a obra de Kilkerry foi recuperada e publicada pelo poeta Augusto de Campos no volume ReVisão de Kilkerry (1970). Graças ao trabalho de garimpagem poética de Campos, a poesia sintética e repleta de imagens fortes e desconcertantes de Kilkerry vem sendo percebida como uma das grandes forças do simbolismo brasileiro. Nota do editor Observe-se a semelhança dos versos deste poema com os versos de música Asa Partida, de autoria de Fagner/Abel Silva. A letra da música na íntegra…
Boa noite Pequeno-almoço na cama Nuno Júdice¹ Tiro a alma do seu estojo de nuvem, ponho-a no tabuleiro celeste, e levo-a à cama, onde me esperas, para um pequeno-almoço divino. Com os teus dedos de ninfa, destapas o lençol de relva, e deitas-me ao teu lado, na terra quente do quarto. Dividimos a alma, um pedaço para cada um, e bebemos o leite de nuvem, ouvindo um bater de asas invisíveis. Depois, arrumamos o tabuleiro voltamos a pôr a relva no sítio, e esperamos que a alma nos encha, ouvindo cair as aves. ¹Nuno Manuel Gonçalves Júdice Glória *Mexilhoeira Grande, Portugal – 29 de abril de 1949
Boa noite De clara ação Nirton Venâncio¹ Declaro para os devidos fins que sou poeta. Não declamo versos: reclamo em versos. E se me falta a lua sobre os olhos e os homens traçam planos para o crepúsculo, o movimento de minhas mãos é muito mais do que um aceno: é o trabalho na estampa do dia para resgatar o luar e a eternidade do alvorecer. ¹Nirton Venâncio * Crateús, CE – 1955
Boa noite. As Vidas dos Alquimistas Dušan Simić ¹ O maior trabalho sempre foi o de apagar-se, Ressurgir como algo inteiramente distinto; O travesseiro de uma jovem apaixonada, Uma bola de sujeira fingindo ser uma aranha. Pretos tédios de noites chuvosas do campo A folhear os escritos de adeptos ilustres Oferecendo conselhos sobre como continuar a transmutação De um figimento do tempo na eternidade. O verdadeiro mestre, um dos do conselho, Requer cem anos para aperfeiçoar sua arte. Nesse ínterim, o segredinhos arcanos da frigideira, O cheiro de azeite de oliva e alho soprando De cômodo a cômodo vazio, a gata preta Se esfregando na sua perna descoberta Enquanto você hesita em ir até a luz distante E o tilintar de copos na cozinha. ¹Dušan Simić, ou Charles Simic *Iugoslávia, – 1938 d.C
Boa noite Quem se defende Brecht ¹ Quem se defende porque lhe tiram o ar Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo Que diz: ele agiu em legitima defesa. Mas O mesmo parágrafo silencia Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão. E, no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente. Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre Não lhe é permitido se defender. ¹Eugen Berthold Friedrich Brecht * Augsburg, Alemanha – 10 de Fevereiro de 1898 + Berlim, Alemanha – 14 de Agosto de 1956
Boa noite O utopista Murilo Mendes¹ Ele acredita que o chão é duro Que todos os homens estão presos Que há limites para a poesia Que não há sorrisos nas crianças Nem amor nas mulheres Que só de pão vive o homem Que não há um outro mundo. Extraído do livro Poesia Completa e Prosa. RJ Nova Aguilar,1994. ¹Murilo Monteiro Mendes * Juiz de Fora, MG – 13 de maio de 1901 d.C + Lisboa, Portugal – 13 de agosto de 1975 d.C Poeta brasileiro, expoente do modernismo brasileiro.
Boa noite Não há vagas Ferreira Gullar O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras – porque o poema, senhores, está fechado: “não há vagas” Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira