Pedro Kilkerry – Poesia – 06/11/23

Boa noite
É o silêncio
Pedro Kerry¹

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz nalgum volume sobre a mesa…
Mas o sangue da luz em cada folha.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas… Comovido

Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,

Asa que o ouvido anima…
E a câmara muda. E a sala muda, muda…
Àfonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda

Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima…

E abro a janela. Ainda a lua esfia
últimas notas trêmulas… O dia
Tarde florescerá pela montanha.
E ó minha amada, o sentimento é cego…
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.

¹Pedro Militão Kilkerry
* St. Antônio de Jesus, BA – 1885 d.C
+ Salvador, BA – 1917 d.C
Filho de irlandês e baiana, Pedro Militão Kilkerry formou-se em Direito pela Faculdade da Bahia. Pobre e boêmio, morreu tuberculoso, em Salvador, sem ter qualquer livro publicado. Esquecida em meio à multidão de poetas simbolistas recolhidos por Andrade Muricy, no seu gigantesco Panaroma do Movimento Simbolista Brasileiro, a obra de Kilkerry foi recuperada e publicada pelo poeta Augusto de Campos no volume ReVisão de Kilkerry (1970). Graças ao trabalho de garimpagem poética de Campos, a poesia sintética e repleta de imagens fortes e desconcertantes de Kilkerry vem sendo percebida como uma das grandes forças do simbolismo brasileiro.

Nota do editor
Observe-se a semelhança dos versos deste poema com os versos de música Asa Partida, de autoria de Fagner/Abel Silva. A letra da música na íntegra…

Asa Partida
Composição: Fagner / Abel Silva

Essa saudade
O cigarro, a luz acesa
E a noite posta sobre a mesa
Em cada canto da casa
Asa partida e dor

Gemido morto, amor
Tão longe vai, tão longe vou
Nuvem sem rumo é assim mesmo

Eu não queria
A vida desse jeito
Meu olho armando o bote sem futuro
Fumaça
e continua o teu sorriso no meu peito
Essa saudade, O cigarro, a luz acesa
E esta noite posta sobre a mesa…

Em cada canto da casa
Asa partida e dor
Gemido morto, amor

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