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Dândi – Crônica – Literatura

Dândi Por Raquel Naveira O dândi aspira a ser sublime. Vive e morre em frente ao espelho. Tudo é vaidade. Charles Baudelaire foi um poeta boêmio, um dândi. Posso imaginá-lo numa casaca azul com botões dourados, a calça estreita de pele de gamo, as botas lustradas, a camisa de babados finalizada por um laço, todo apertado num colete. Tinha o garbo de um cardeal das letras, o mistério de quem conhece a dor do mundo e as paixões, mas permanece impávido, como um albatroz voando nas alturas, entre o eterno e o efêmero. <=Caravaggio – Narciso – Detalhe Ser dândi era sua essência, sua realidade. Aspiração de causar espanto pela maneira de se vestir, de se portar, de se cuidar. Pasmar as pessoas pela inteligência, pela sensibilidade, pela imaginação. Misto de vampiro e aristocrata. Ser dândi não era futilidade, era fuga sutil daquele pássaro que pousava no navio com suas asas de envergadura gigante, deixando a turba de marinheiros estupefata.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] O princípio de sua vida elegante era um pensamento de ordem e harmonia que dava um tom poético a todas as coisas. Uma espécie de dramatização da vida, afinal, a roupa é o mais enérgico dos símbolos. “O dandismo” constitui uma das seções do ensaio de Baudelaire “O pintor da vida moderna”, que focaliza a obra do pintor francês Contantin Guys. Foi publicado pela primeira vez, em três partes, em novembro-dezembro de 1863, no jornal Le Figaro. Baudelaire explica que o dândi cultiva o belo em sua pessoa, satisfaz suas inclinações. O gosto pela elegância material é um símbolo da superioridade de seu espírito. É uma espécie de culto de si mesmo. O último rasgo de heroísmo na decadência. É um sol poente, que declina, soberbo, sem calor, cheio de melancolia. O dândi aspira a ser sublime. Vive e morre em frente ao espelho. Tudo nele reflete sua ambicionada glória. Ele despende suas rendas e bens com produtos de arte: livros, quadros, espetáculos musicais e teatrais. Espalha por onde anda toques de nobreza. Ama os brasões, os capelos, os sapatos de solas vermelhas, os perfumes, os sais, os vinhos, as coroas, os barretes, as esporas de prata. Esse sentimento de busca de distinções é uma necessidade da alma humana, uma espécie de sede, pois até o selvagem tem suas plumas, tatuagens, arcos e briga por  miçangas. Baudelaire tinha a instrução, a linguagem fluente, a graça do porte, o esmero, o trato refinado. Gastou toda a herança do pai em roupas, drogas e álcool. Morou na companhia da mulata Jeanne Duval, a Vênus Negra, no luxuoso Hotel Pimodin, onde conheceu pintores, escritores emarchands. Sua mãe entrou na justiça, acusando-o de pródigo. Sua fortuna teve que ser controlada por um tutor. Morreu sem conhecer a fama, de sífilis e alterações cerebrais. Sempre dividido entre duas postulações simultâneas: uma em direção a Deus e à espiritualidade e outra a Satanás, no desejo da animalidade e da queda. Lembrei-me de Castro Alves, o nosso poeta romântico. Lindo, jovem, a densa cabeleira. Vestia sempre paletó preto de casimira inglesa, chapéu gelô, gravata de colorido espalhafatoso. Olhava-se de alto abaixo no espelho e dizia: – Tremei, pais de família! Don Juan vai sair. Andava pelas ruas de Recife, sentindo prazer em ser reconhecido, cumprimentado. Uma tarde, esquecendo-se das conquistas amorosas, subiu num banco da praça e gritou: – A praça! A praça é do povo/ Como o céu é do condor! Em breve ele próprio seria o condor ferido, o pé amputado depois de um incidente numa caçada, o peito minado pela tuberculose. Febres, hemorragias, delírios. Aos vinte e quatro anos, as esperanças de celebridade e de futuro se acabaram para o dândi. O poeta Mário de Sá-Carneiro, amigo de Fernando Pessoa, foi um dândi perdido no labirinto de si mesmo: “Se me olho a um espelho, erro/ – Não me acho no que projeto”. Nos seus poemas fala sempre dos sonhos que não sonhou e de uma saudade que o faz beijar suas mãos brancas. Declara ter sido Lord na Escócia em outra vida, arrastando sua tristeza sem brilho e o desejo astral de ter desfrutado um luxo desmedido. Aos vinte e seis anos, em meio a uma crise financeira e moral, suicidou-se. Sua vaidade de narciso aliada a uma tendência ao autodesprezo, a uma visão estética feminóide conduziram-no ao abismo. Sua intuição à Baudelaire trouxe, porém, novos horizontes para a poesia portuguesa. Baudelaire, Castro Alves, Mário de Sá-Carneiro: pobres poetas dândis, almas que se perderam na vaidade. Pois tudo é vaidade. Conheço alguém de uma elegância suprema, de uma graça essencial. É um homem divino que se ocupa de todos com delicadeza. Está sempre pronto para ajudar. Sempre semelhante a si mesmo. É simples e calmo, por isso tem poder. Seduz e atrai sem esforço. Magnético. Aceita as pessoas. Perdoa seus defeitos. É capaz de dizer: “Eles não sabem o que fazem”. Eu me escondo sob sua capa vermelha. E lhe presto culto.

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Crônica – Raquel Naveira

Cabeleira Rachel Naveira¹ A moça estava sentada à minha frente no ônibus. Os cabelos longos, castanhos como mel, desabando em cachos. Que cabelo lindo, pensei, parece que tem ânimo próprio, balançando a um leve meneio da cabeça. Não é à toa que na história bíblica de Sansão, ele perdeu toda a sua força quando Dalila cortou seus cabelos. Uma cabeleira como essa tem poder de sedução e, com certeza, essa jovem se sente confiante para amar e ser amada. Baudelaire, o poeta maldito, escreveu um poema chamado “A Cabeleira”, versos tórridos e eróticos em que ele canta os cabelos negros da mulata Jeanne Duval, a sua “Vênus Negra”. Diz que o cabelo dela é tosão deslizando até a nuca; que, de noite, enche de êxtase e perfume o quarto inteiro; que é mar de ébano, contendo um sonho de remadores, naus, bandeiras e mastros; que é pavilhão de trevas. O poeta se embriaga das essências de “vago óleo de coco, almíscar e alcatrão” exaladas dos cabelos da musa. Semeia pérolas, rubis e safiras pelas mechas ondulantes. Num dia desses, convencida que um corte curto me deixaria mais nova, cortei o cabelo. Depois veio o arrependimento. Sou romântica, amo cabelos compridos. Lamentei então minha juventude perdida, quando eu sacudia a crina como égua musculosa. Lamentei não ser mais princesa usando tiaras, arrastando o cabelo como a cauda de um cometa. Lembrei-me daquele véu natural, pura potência, com que eu penetrava câmaras ardentes. Sim, arrependi-me de ter cortado o cabelo. Não importa que ele esteja branco, um pouco seco. Poderia penteá-los em forma de coque, com a gravidade de uma mulher bela e digna que envelhece. À minha frente, ignorando meu drama e minha finitude, segue a moça com sua cabeleira castanha. A luz da manhã põe reflexos dourados nos fios. O ônibus lotado para. Ela desce, de repente. Os cabelos dançam às suas costas, com vitalidade. Pena que não vi seu rosto. * Campo Grande, Mato Grosso do Sul – 23 de setembro de 1957 d.C Formou-se em Direito e Letras pela FUCMT, atual Universidade Católica Dom Bosco, onde exerce o magistério (Literatura Portuguesa e Literatura Latina), desde 1987, pertencendo ao Departamento de Letras. Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. Doutoranda em Literatura Portuguesa na USP. [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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Crônicas da modernidade – O país está perdido – 04/12/2015

Eça de Queiroz¹ O país está perdido Estamos perdidos há muito tempo… O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada. Os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há principio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O Estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda parte, o país está perdido! Eça de Queiroz José Maria Eça de Queirós * Póvoa de Varzim, Portugal – 25 Novembro 1845 d.C + Paris, França – 16 Agosto 1900 d.C [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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A praga do politicamente correto

Contra o ”politicamente correto”! João Mellão Neto – O Estado de S.Paulo Iniciei minha vida profissional, como jornalista, em 1980. Ainda estávamos no regime militar – que hoje é conhecido como ditadura. Não havia mais censura. O cerceamento da nossa liberdade de expressão era mais sutil. E provinha dos dois lados. Num deles estava o poder. No outro, a “patrulha ideológica” da oposição. O pessoal do poder achava que tudo o que fazia era certo. Se alguém discordasse, só podia ser por ignorância ou má-fé. Já a patrulha entendia o mesmo, só que com os sinais trocados. Mas havia ao menos certa ética na lide. Mil vezes ouvimos de nossos mestres do jornalismo: “Informação é informação; opinião é opinião. Misturar as duas coisas é antiprofissional. Distorcer a primeira para valorizar a segunda, então, é imoral”. Tudo bem. Em momentos de exceção, como aqueles, o maniqueísmo brotava naturalmente. Ser radical parecia ser a única saída. Era comum ouvir frases do tipo: “Quem não é meu amigo é meu inimigo”. Ou até: “Quem é inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Era preto ou branco. Não existia cinza.[ad#Retangulo – Anuncios – Direita] O que me surpreende hoje em dia é que, depois de 26 anos de convivência democrática, ainda haja gente que pense assim. A “patrulha” agora tem um nome mais pomposo: “correção política”. Quer dizer, abolição do nosso vocabulário de todas as palavras que tragam embutidos algum preconceito ou discriminação. Ou seja, quase tudo. Imaginemos, por exemplo, o diálogo num hotel. “Boa noite, senhor, queira, por favor, preencher a ficha.” “Hum… Não vai dar! Chamou-me de senhor, isso quer dizer que me prejulgou, tachando-me de idoso. Ou, no mínimo, de alguém com status social superior ao seu…” “Desculpe-me, quis apenas ser respeitoso…” “Eu vim aqui à procura de um quarto, não de respeito. Quem gosta de tratamento cerimonioso ou é aristocrata ou, pior, burguês metido a nobre.” “Como, então, devo chamá-lo?” “Cidadão, camarada, companheiro, qualquer coisa assim… Ah, e a sua ficha está incorreta. No item sexo constam apenas duas alternativas.” “E existe alguma outra?” “Várias! Escreva apenas “orientação sexual” e deixe um espaço em branco para ser preenchido.” “A coisa está ficando preta!” “Você não deve usar essa expressão. Ela define um quadro confuso, aludindo aos negros. Perdão, afrodescendentes.” “Ai, meu Deus!” “Essa sua exclamação também é excludente. Tem muita gente no mundo que acredita em outro deus. Como outros que cultuam vários deuses e também os que não acreditam em deus nenhum. De mais a mais, por que o seu deus atenderia, particularmente ao seu chamado?” “E chamar alguém de t. d., isso pode?” “Só se não for com sentido ofensivo ou depreciativo.” “Com licença. Eu tenho de trabalhar.” “O que você quis dizer com isso? Que eu não tenho trabalho? Só porque me visto como um estudante?” Qual é a razão da minha implicância com o conceito de “politicamente correto”? É que, no Brasil, o que era só uma recomendação acabou por se tornar um dogma. Não se pode chamar sequer de religião. Isso porque, apesar de cada uma delas reivindicar exclusividade sobre a palavra divina, todas aceitam coexistir de maneira pacífica. Já os fiéis do “politicamente correto”, não! Eles primam pela intolerância. Não é porque não se concorda com uma pessoa que se adquire o direito de excomungá-la. A campanha difamatória que alguns órgãos da imprensa fizeram, dias atrás, contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é um bom exemplo disso. Tratou-se, a meu ver, de mais um caso de má conduta profissional. Simplesmente lhe atribuíram palavras que não eram dele e foram ao Congresso perguntar a opinião dos inquilinos que lá se encontravam: “Excelência, o que achou de FHC afirmar que não quer mais saber do povão?”. A resposta era previsível. Já estava implícita na pergunta. Acontece que ele jamais afirmou isso. É incrível que até experientes políticos aliados tenham caído nessa armadilha. Li e reli várias vezes o longo artigo que ele publicou. O que pude entender é que o que ele pretendeu foi dar um belo pito na oposição: quem a exerce não pode lutar com as mesmas armas que o governo. Vai perder, porque o poder sempre tem os melhores instrumentos. Não se trata de fazer mais, mas de fazer diferente. E FHC apresentou várias sugestões nesse sentido. Em nenhum trecho de seu texto ele afirmou que a população mais carente devia ser deixada de lado. Resumiu-se a recomendar a seu partido que procurasse conhecer melhor o pensamento e os hábitos da nova classe C – ou “novas camadas possuidoras”, no dialeto uspiano. Mas foi essa a interpretação leviana que os tais “politicamente corretos” da imprensa repassaram ao público. Tentaram induzir a ideia de que o ex-presidente não passa de um “liberal com propensões elitistas”. Ora, se disserem isso de mim, é verdade! Mas FHC não cabe nesse figurino. Ele é e sempre foi um convicto social-democrata. Ah, não é correto uma pessoa pública, como Fernando Henrique Cardoso, referir-se ao povo como “povão”? Então, por que nunca protestaram contra as abundantes expressões “politicamente incorretas” de Lula? Como se pertencer ao PT fosse desculpa para alguma coisa… Ora, pessoal, numa democracia é fundamental que os que estão no governo governem, que os opositores se oponham e que a imprensa noticiosa noticie. Somente assim o “povão” se torna apto a julgar. Embaralhar tudo isso só dá confusão: o discurso dos governistas é de oposição, os oposicionistas não se assumem. E os repórteres distorcem as reportagens. É por isso que ninguém pode ter o direito de policiar as ideias de ninguém. Abaixo a ditadura! E abaixo o “politicamente correto”, também!

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