Cabeleira
Rachel Naveira¹
A moça estava sentada à minha frente no ônibus. Os cabelos longos, castanhos como mel, desabando em cachos. Que cabelo lindo, pensei, parece que tem ânimo próprio, balançando a um leve meneio da cabeça.
Não é à toa que na história bíblica de Sansão, ele perdeu toda a sua força quando Dalila cortou seus cabelos. Uma cabeleira como essa tem poder de sedução e, com certeza, essa jovem se sente confiante para amar e ser amada.
Baudelaire, o poeta maldito, escreveu um poema chamado “A Cabeleira”, versos tórridos e eróticos em que ele canta os cabelos negros da mulata Jeanne Duval, a sua “Vênus Negra”.
Diz que o cabelo dela é tosão deslizando até a nuca; que, de noite, enche de êxtase e perfume o quarto inteiro; que é mar de ébano, contendo um sonho de remadores, naus, bandeiras e mastros; que é pavilhão de trevas. O poeta se embriaga das essências de “vago óleo de coco, almíscar e alcatrão” exaladas dos cabelos da musa. Semeia pérolas, rubis e safiras pelas mechas ondulantes.
Num dia desses, convencida que um corte curto me deixaria mais nova, cortei o cabelo. Depois veio o arrependimento. Sou romântica, amo cabelos compridos. Lamentei então minha juventude perdida, quando eu sacudia a crina como égua musculosa. Lamentei não ser mais princesa usando tiaras, arrastando o cabelo como a cauda de um cometa. Lembrei-me daquele véu natural, pura potência, com que eu penetrava câmaras ardentes. Sim, arrependi-me de ter cortado o cabelo. Não importa que ele esteja branco, um pouco seco. Poderia penteá-los em forma de coque, com a gravidade de uma mulher bela e digna que envelhece.
À minha frente, ignorando meu drama e minha finitude, segue a moça com sua cabeleira castanha. A luz da manhã põe reflexos dourados nos fios. O ônibus lotado para. Ela desce, de repente. Os cabelos dançam às suas costas, com vitalidade. Pena que não vi seu rosto.
* Campo Grande, Mato Grosso do Sul – 23 de setembro de 1957 d.C
Formou-se em Direito e Letras pela FUCMT, atual Universidade Católica Dom Bosco, onde exerce o magistério (Literatura Portuguesa e Literatura Latina), desde 1987, pertencendo ao Departamento de Letras. Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. Doutoranda em Literatura Portuguesa na USP.
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