Todos os anos, nós matamos milhares de pessoas no Brasil por falta de saneamento básico e de água encanada. São pessoas que caem em córregos contaminados, bebem água podre ou definham daquelas doenças doloridas que nos destroem aos poucos.
Nós também deixamos outras tantas, incontáveis, de cama, incapazes, num efeito impossível de mensurar – perdem dias de trabalho, de estudo, de bloquinho de Carnaval, de horas com os filhos e com os pais.
Até agora, esse descaso não tinha rosto. É difícil contar as mortes provocadas pela falta de estrutura. Mas, em 2016, esse descaso ganhou um nome e a face de um bebê com microcefalia. O zika também é fruto da nossa insensatez.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”]
Agora acredita-se que o Aedes aegypti, transmissor da dengue e da zika, possa se adaptar para viver também na água suja, e não apenas em água limpa, segundo pesquisa recente da Universidade Estadual da Paraíba. Na prática, isso significa que todo córrego, até aqueles mais fedorentos, pode ser um criadouro em potencial.
Além disso, nosso desperdício de água potável, entre os reservatórios e as nossas casas, cria grandes fazendas de proliferação de mosquito. Temos fábricas de matar aos poucos.
Na última terça-feira, isso foi confirmado por um diagnóstico do Ministério das Cidades, que apontou que quase metade da população do país não tem acesso a rede de esgoto.
O descaso com infraestrutura, assim como o combate frouxo ao mosquito, é um daqueles absurdos difíceis de explicar. Ninguém acorda de manhã pensando “vou deixar o país sem esgoto” ou “tudo bem se algumas pessoas pegarem dengue”. Mas também pouquíssimas pessoas levantam com a ideia fixa de passar um cano embaixo da terra ou de colocar dinheiro em borrifador contra o mosquito.
Até virar tragédia, não é tema, não é prioridade. Enquanto é um grande número, fica invisível. Só ganha urgência quando ganha um rosto. O único legado positivo no caso do zika é nos deixar uma multidão de rostos que sempre vão nos lembrar deste verão.
Porque, na prática, nós só damos valor àquilo que vemos. É mais fácil mobilizar o país para grandes obras sobre a terra, por mais inúteis que sejam, do que para evitar tragédias invisíveis. É uma variação da máxima “o que os olhos não veem o eleitor não sente”. Só que essa cegueira tem graves consequências, ainda mais quando se acumula por gerações.
Grandes tragédias, assim como grandes progressos, nunca são fruto de um governo só. Para o bem e para o mal, na alegria e na tristeza, somos o acúmulo das nossas escolhas. Só para ficar nos grandes números, fruto de levantamento do Instituto Trata Brasil, eis o panorama hoje, neste comecinho de 2016:
• 35 milhões de brasileiros não têm água tratada • 39%, isso, apenas 39% do nosso esgoto passa por tratamento
Ainda segundo o Instituto Trata Brasil, seria necessário investir R$ 508 bilhões entre 2014 e 2033 para chegar a 100% em todos os itens. Esse descaso histórico com serviços básicos cria uma forma perversa de desigualdade, causada pelo Estado e ausente dos debates públicos.
Ao não passar cano embaixo da terra, nós deixamos a loteria da vida ainda mais cruel. Quem é agraciado por essas fantásticas tecnologias do começo do século 20 tem menos chance de morrer ou de perder dias de trabalho ou de estudo. No caso do zika, quem tem sorte de viver perto de um programa de prevenção não corre riscos de ter filhos com microcefalia. Quem não tem fica exposto à sorte.
Nossa cegueira deixa a vida ainda mais injusta. Esse assunto me deixa particularmente comovido porque, quando eu era criança, cai num rio-esgoto-a-céu-aberto duas vezes, dois anos seguidos. Uma em Pirituba, bairro de São Paulo onde morei até os cinco anos. A outra em Franco da Rocha, cidade da região metropolitana em que vivi por um ano, em 1988.
Eu tinha entre cinco e seis anos nessas quedas. Lembro bem das ratazanas em Pirituba, mas não tenho nenhuma memória de Franco da Rocha. É o contrário da minha mãe, que ainda se lembra bem de uma criança com cabelo de cachinhos molhados sendo levada pela água suja ao logo do córrego cheio até parar num amontoado de plástico, madeira e barro.
Graças à densidade do material, vamos ver por esse lado, hoje estou aqui falando de assuntos fedorentos com você. Se não fosse o acaso (e o plano de saúde dos meus pais), talvez este texto nunca fosse escrito. Mas quantas pessoas, bem melhores do que eu, não tiveram essa chance?
Por isso, eu decidi fazer uma coisa simples, coisa que nunca tinha pensado até o começo desse ano – apesar do meu pesadelo de infância. Eu sempre votei com base em propostas e grandes programas. Devo confessar que nunca prestei atenção no detalhe – o que é um erro meu. Por isso, decidi por um critério bem simples para 2016 em diante.
Só voto em candidatos que tenham plataformas vida real, Brasil de verdade, longe da marquetagem que mobiliza todos os nossos sentimentos e nenhuma das nossas razões. Gente que realmente tenha história de fazer coisas com impacto, comprometida com o médio e com o longo prazo.
Precisamos mostrar, ao longo dos próximos anos, que valorizamos, sim, políticos que fazem grandes obras que não vemos. Precisamos, nas organizações das quais fazemos parte, colocar esgoto em pauta, borrifador na área. Sim, eles não são bonitos nem rendem grandes fotos, mas têm um efeito fabuloso ao longo do tempo. Já tentei até pensar em como deixar esgoto bonito ou borrifador charmoso, para ver se aceleramos esse processo. Se tiver dicas, é só me falar pelo Twitter ou pelo Facebook.
Enquanto isso, me resta acreditar que, uma hora, vamos levar isso a sério. Há, ao menos, um exemplo no passado. Fizemos o SUS, como eu disse no meu último texto aqui na BBC Brasil. Foi uma bela e grande obra de prevenção. Se nós oferecemos saúde para todo mundo, podemos oferecer prevenção para todo mundo. É raro, mas às vezes a gente consegue colocar dinheiro naquilo que não vemos.
Leandro Beguoci/BBC