A praga do politicamente correto

Contra o ”politicamente correto”!
João Mellão Neto – O Estado de S.Paulo

Iniciei minha vida profissional, como jornalista, em 1980. Ainda estávamos no regime militar – que hoje é conhecido como ditadura.

Não havia mais censura.

O cerceamento da nossa liberdade de expressão era mais sutil.

E provinha dos dois lados.

Num deles estava o poder. No outro, a “patrulha ideológica” da oposição.

O pessoal do poder achava que tudo o que fazia era certo.

Se alguém discordasse, só podia ser por ignorância ou má-fé. Já a patrulha entendia o mesmo, só que com os sinais trocados.

Mas havia ao menos certa ética na lide. Mil vezes ouvimos de nossos mestres do jornalismo: “Informação é informação; opinião é opinião. Misturar as duas coisas é antiprofissional. Distorcer a primeira para valorizar a segunda, então, é imoral”.

Tudo bem. Em momentos de exceção, como aqueles, o maniqueísmo brotava naturalmente. Ser radical parecia ser a única saída. Era comum ouvir frases do tipo: “Quem não é meu amigo é meu inimigo”. Ou até: “Quem é inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Era preto ou branco. Não existia cinza.[ad#Retangulo – Anuncios – Direita]

O que me surpreende hoje em dia é que, depois de 26 anos de convivência democrática, ainda haja gente que pense assim. A “patrulha” agora tem um nome mais pomposo: “correção política”. Quer dizer, abolição do nosso vocabulário de todas as palavras que tragam embutidos algum preconceito ou discriminação. Ou seja, quase tudo.

Imaginemos, por exemplo, o diálogo num hotel.

“Boa noite, senhor, queira, por favor, preencher a ficha.”

“Hum… Não vai dar! Chamou-me de senhor, isso quer dizer que me prejulgou, tachando-me de idoso. Ou, no mínimo, de alguém com status social superior ao seu…”

“Desculpe-me, quis apenas ser respeitoso…”

“Eu vim aqui à procura de um quarto, não de respeito. Quem gosta de tratamento cerimonioso ou é aristocrata ou, pior, burguês metido a nobre.”

“Como, então, devo chamá-lo?”

“Cidadão, camarada, companheiro, qualquer coisa assim… Ah, e a sua ficha está incorreta. No item sexo constam apenas duas alternativas.”

“E existe alguma outra?”

“Várias! Escreva apenas “orientação sexual” e deixe um espaço em branco para ser preenchido.”

“A coisa está ficando preta!”

“Você não deve usar essa expressão. Ela define um quadro confuso, aludindo aos negros. Perdão, afrodescendentes.”

“Ai, meu Deus!”

“Essa sua exclamação também é excludente. Tem muita gente no mundo que acredita em outro deus. Como outros que cultuam vários deuses e também os que não acreditam em deus nenhum. De mais a mais, por que o seu deus atenderia, particularmente ao seu chamado?”

“E chamar alguém de t. d., isso pode?”

“Só se não for com sentido ofensivo ou depreciativo.”

“Com licença. Eu tenho de trabalhar.”

“O que você quis dizer com isso? Que eu não tenho trabalho? Só porque me visto como um estudante?”

Qual é a razão da minha implicância com o conceito de “politicamente correto”?

É que, no Brasil, o que era só uma recomendação acabou por se tornar um dogma. Não se pode chamar sequer de religião. Isso porque, apesar de cada uma delas reivindicar exclusividade sobre a palavra divina, todas aceitam coexistir de maneira pacífica. Já os fiéis do “politicamente correto”, não! Eles primam pela intolerância.

Não é porque não se concorda com uma pessoa que se adquire o direito de excomungá-la. A campanha difamatória que alguns órgãos da imprensa fizeram, dias atrás, contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é um bom exemplo disso. Tratou-se, a meu ver, de mais um caso de má conduta profissional. Simplesmente lhe atribuíram palavras que não eram dele e foram ao Congresso perguntar a opinião dos inquilinos que lá se encontravam: “Excelência, o que achou de FHC afirmar que não quer mais saber do povão?”.

A resposta era previsível. Já estava implícita na pergunta. Acontece que ele jamais afirmou isso. É incrível que até experientes políticos aliados tenham caído nessa armadilha.

Li e reli várias vezes o longo artigo que ele publicou. O que pude entender é que o que ele pretendeu foi dar um belo pito na oposição: quem a exerce não pode lutar com as mesmas armas que o governo. Vai perder, porque o poder sempre tem os melhores instrumentos. Não se trata de fazer mais, mas de fazer diferente. E FHC apresentou várias sugestões nesse sentido. Em nenhum trecho de seu texto ele afirmou que a população mais carente devia ser deixada de lado. Resumiu-se a recomendar a seu partido que procurasse conhecer melhor o pensamento e os hábitos da nova classe C – ou “novas camadas possuidoras”, no dialeto uspiano.

Mas foi essa a interpretação leviana que os tais “politicamente corretos” da imprensa repassaram ao público. Tentaram induzir a ideia de que o ex-presidente não passa de um “liberal com propensões elitistas”.

Ora, se disserem isso de mim, é verdade! Mas FHC não cabe nesse figurino. Ele é e sempre foi um convicto social-democrata.

Ah, não é correto uma pessoa pública, como Fernando Henrique Cardoso, referir-se ao povo como “povão”? Então, por que nunca protestaram contra as abundantes expressões “politicamente incorretas” de Lula? Como se pertencer ao PT fosse desculpa para alguma coisa…

Ora, pessoal, numa democracia é fundamental que os que estão no governo governem, que os opositores se oponham e que a imprensa noticiosa noticie. Somente assim o “povão” se torna apto a julgar. Embaralhar tudo isso só dá confusão: o discurso dos governistas é de oposição, os oposicionistas não se assumem. E os repórteres distorcem as reportagens.

É por isso que ninguém pode ter o direito de policiar as ideias de ninguém. Abaixo a ditadura! E abaixo o “politicamente correto”, também!

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