Os autores divergem. Além dos raros sobreviventes, as vicissitudes são tamanhas que poucos se animam a revivê-las. Menos ainda são os que têm fôlego para teorizar sobre o dantesco percurso. Dante inclusive.
O fundo do poço é irreconhecível – ou para usar uma expressão recuperada pelo escritor-filósofo Garcia Rosa em recente entrevista ao Observatório da Imprensa – é imperscrutável. Além da falta de referências o próprio conceito de fundo do poço é diabolicamente kafkiano. Elástico, portanto absurdo — chegamos ou ainda não? Agora ou daqui a pouco? Real ou imaginário ? Reversível ou irrecorrível?[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”]
Emérito sambófilo e sambólogo carioca, impregnado pelo Zeitgueist momesco afirma categórico que o fundo do poço será facilmente reconhecível pela trilha sonora: quando os blocos de rua começarem a entoar o inesquecível lamento atribuído a Wilson Batista – “Quero chorar, mas não tenho lágrimas! ” – será o sinal de que chegamos lá. Hora de encarar a tristeza brasileira que apenas Paulo Prado conseguiu enxergar. Ou tomar a saideira.
Economistas gabam-se do arsenal de exatidões para reconhecer as características e o cenário do fundo do poço. Talvez pela extensão das ruínas e o teor dos escombros. Mas não explicam como, em apenas setenta anos Alemanha e Japão, igualmente arrasados, arruinados e derrotados escapuliram do fundo do poço — sem recorrer às tentações totalitárias.
Fácil: o fundo do poço localiza-se no mapa da subjetividade e o caminho da volta, idem. Essencial: jamais resignar-se às “décadas perdidas” nem forçar prazos para coincidir com mandatos políticos ou o calendário eleitoral. O fundo do nosso poço é constituído de material fatigado, com validade vencida, irrecuperável.
Dentro de dias, com o início do ano real, assustador, carregado de ameaças e urgências jamais vistas ou experimentadas – entre elas a quarta maldição do aedes egypti, o vírus da zika — nossas históricas carências em matéria de formação, treinamento e competência serão testadas continuamente. Para sair do fundo do poço faz-se necessária uma receita clara, direta, minimalista, capaz de ser compartilhada e compreendida.
O clima de paroxismo que uma imprensa simplista, aprisionada pela inércia, só sabe amplificar, o fundo do poço afunda, movediço fica mais traiçoeiro, remoto. Com as pífias expectativas político-eleitorais do momento, é suicida esperar das urnas em Outubro algo inovador. Se o poder central se reconhece perplexo e a sociedade o vê impotente, as possibilidades de uma ação municipal efetiva são nulas.
Zerar o placar político, estimular algum tipo de empate, igualar vencidos aos vencedores, abortar as desforras que se anunciam — o fundo do poço se reconhece no exato momento em que o retorno à superfície começa a angustiar.
Outro lado: o zika rachou o lobby dos jornais
O surpreendente incentivo do “Globo” ao debate sobre a legalização do aborto em fetos microcefálicos evoluiu rapidamente para tornar-se posição do jornal. Inacreditável que um jornal tão chegado à Cúria e depois tão próximo à Opus Dei tenha superado sua histórica subserviência aos dogmas para assumir uma posição mais secularista e liberal.
Para diferenciar-se, a “Folha” rapidamente pulou para o outro lado, o lado pior: deu enorme destaque à inflexível condenação do aborto pela CNBB divulgada nos jornais de sexta-feira, 5/2.
Jogada de marketing do “Globo”? Possivelmente. Mas também uma reversão política que não pode passar desapercebida – o Globo exibe uma elasticidade que poderá mostrar-se valiosa caso sua esmagadora hegemonia na praça do Rio venha a ser eventualmente contestada nos órgãos que fiscalizam a concorrência.
Se pretende efetivamente diferenciar-se no lobby de jornalões a “Folha” deveria ter optado por questões onde sua autonomia diante dos parceiros de “O Globo” pudesse fazer a diferença em benefício dos leitores e do pluralismo do sistema de comunicação social..
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Alberto Dines é jornalista, escritor e co-fundador do Observatório da Imprensa