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João Cabral de Melo Neto – Poesia – 23/01/24

Boa noite. Ode Mineral João Cabral de Melo Neto¹ É mineral o papel onde escrever o verso; o verso que é possível não fazer. São minerais as flores e as plantas, as frutas, os bichos quando em estado de palavra. É mineral a linha do horizonte, nossos nomes, essas coisas feitas de palavras. É mineral, por fim, qualquer livro: que é mineral a palavra escrita, a fria natureza da palavra escrita. ¹João Cabral de Melo Neto * Recife, Pe. – 9 de Janeiro de 1920 + Rio de Janeiro, Rj. – 9 de Outubro de 1999

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Ezra Pound – Poesia – 24/01/24

Boa noite Tentei escrever o paraíso Ezra Pound¹ Tentei escrever o Paraíso Não se mova Deixe falar o vento Esse é o paraíso. Deixe os Deuses perdoarem O que eu fiz Deixe aqueles que eu amo tentarem perdoar O que eu fiz. ¹ Ezra Weston Loomis Pound * Idaho,USA 30 de outubro de 1885 + Veneza,Itália 1 de novembro de 1972 Poeta, músico e crítico que, junto com T. S. Eliot, foi uma das maiores figuras do movimento modernista da poesia do início do século XX. Ele foi o motor de diversos movimentos modernistas, notadamente do Imagismo e do Vorticismo.

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Manuel Graña Etcheverry – Versos na tarde – 22/01/24

Boa noite. Hoje já passou Manuel Graña Etcheverry¹ Já o dia passa. Já os livros não podem. Já a música não alcança. A evasão é inútil, solitário. Já tens o espelho a tua frente: mira-te, sozinho, fumando o cigarro, mira no quarto tua presença só. Não estão suas mãos nem seus olhos vêm, nem sua voz se aproxima, nem seu beijo, nem chega seu amor para buscar-te. Consumiste sonhos na espera: edifícios de tenues quadros que as horas gastaram pouco a pouco. E ruínas sonoras de estupendos colóquios de amor que imaginaste têm buscado sua tumba nas paredes. Não te bastou a lembrança: desejava-a vivendo e perto e em teus braços. Mas o dia se vai sem que ela venha. Hoje a paz não veio e tens medo. Não quer retratar-se em cristais nem a água do passado te refresca. Mas o dia se vai… cala-o, esqueça. Beija no ar seu rosto ausente. Hoje a paz não veio. Hoje já passou. ¹ Manuel Graña Etcheverry * Córdoba, Argentina – 1915 + Dean Funes, Argentina – 27 de maio de 2015

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Manoel de Barros – Poesia – 21/01/24

Boa noite Soberania Manoel de Barros¹ Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo do vento escorregava muito e eu não consegui pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado e disse que eu tivera um vareio da imaginação. Mas que esses vareios acabariam com os estudos. E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio. E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria das idéias e da razão pura. Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande saber. Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo — o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase: A imaginação é mais importante do que o saber. Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias asas. E vi que o homem não tem soberania nem pra ser um bentevi. ¹ Manoel Wenceslau Leite de Barros * Cuiabá, MT. – 19 de Dezembro de 1916 + Campo Grande, MS – 13 de Novembro de 2014

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Alexandre O’Neill – Poesia – 18/01/2024

Boa noite Gaivota Alexandre O’Neill ¹ Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa no desenho que fizesse, nesse céu onde o olhar é uma asa que não voa, esmorece e cai no mar. Que perfeito coração no meu peito bateria, meu amor na tua mão, nessa mão onde cabia perfeito o meu coração. Se um português marinheiro, dos sete mares andarilho, fosse quem sabe o primeiro a contar-me o que inventasse, se um olhar de novo brilho no meu olhar se enlaçasse. Que perfeito coração no meu peito bateria, meu amor na tua mão, nessa mão onde cabia perfeito o meu coração. Se ao dizer adeus à vida as aves todas do céu, me dessem na despedida o teu olhar derradeiro, esse olhar que era só teu, amor que foste o primeiro. Que perfeito coração morreria no meu peito morreria, meu amor na tua mão, nessa mão onde perfeito bateu o meu coração. ¹ Alexandre Manuel Vahía de Castro O’Neill * Lisboa, Portugal – 19 de dezembro de 1924 + Lisboa, Portugal – 21 de agosto de 1986 Descendente de irlandeses, foi um importante poeta do movimento surrealista. Autodidata, O’Neill foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa. É nesta corrente que publica a sua primeira obra, o volume de colagens A Ampola Miraculosa, mas o grupo rapidamente se desdobra e acaba. As influências surrealistas permanecem visíveis nas obras dele, que além dos livros de poesia incluem prosa, discos de poesia, traduções e antologias. Não conseguindo viver apenas da sua arte, o autor alargou a sua ação à publicidade. É da sua autoria o lema publicitário «Há mar e mar, há ir e voltar». Foi várias vezes preso pela polícia política portuguesa nos tempo da ditadura de Salazar, a PIDE.

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Mallarmé – Poesia – 17/01/24

Boa noite Angústia Mallarmé Não vim domar teu corpo esta noite, ó cadela Que encerras os pecados de um povo, ou cavar Em teus cabelos torpes a triste procela No incurável fastio em meu beijo a vazar: Busco em teu leito o sono atroz sem devaneios Pairando sob ignotas telas do remorso, E que possas gozar após negros enleios, Tu que acima do nada sabes mais que os mortos: Pois o Vício, a roer minha nata nobreza, Tal como a ti marcou-me de esterilidade, Mas enquanto teu seio de pedra é cidade. De um coração que crime algum fere com presas, Pálido, fujo, nulo, envolto em meu sudário, Com medo de morrer pois durmo solitário. ¹Étienne Mallarmé * Paris, França – 18 de Março de 1842 d.C + Valvins, França – 09 de Setembro de 1898 d.C

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Silvia Plath – Poesia – 16/01/24

Boa noite Palavras Sylvia Plath¹ Golpes, De machado na madeira, E os ecos! Ecos que partem A galope. A seiva Jorra como pranto, como Água lutando Para repor seu espelho sobre a rocha Que cai e rola, Crânio branco Comido pelas ervas. Anos depois, na estrada, Encontro Essas palavras secas e sem rédeas, Bater de cascos incansável. Enquanto Do fundo do poço, estrelas fixas Decidem uma vida. ¹Sylvia Plath * Boston, Usa – 1932 d.C + Primrose Hill, Londres – 11 de fevereiro de 1963 d.C

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Abgar Renault – Versos na tarde – 18/02/2017

Boa noite. Encantamento Abgar Renault¹ Ante o deslumbramento do teu vulto sou ferido de atônita surpresa e vejo que uma auréola de beleza dissolve em lua a treva em que me oculto. Estás em cada reza do meu culto, sonhas na minha lânguida tristeza, e, disperso por toda a natureza, paira o deslumbramento do teu vulto. É tua vida a minha própria vida, e trago em mim tua alma adormecida… Mas, num mistério surdo que me assombra, Tu és, às minhas mãos, fluida, fugace, como um sonho que nunca se sonhasse ou como a sombra vã de uma outra sombra… ¹Abgar de Castro Araújo Renault * Barbacena, MG. – 15 de abril de 1901 + Rio de Janeiro, RJ. – 31 de dezembro de 1995

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Helena Verdugo Afonso – Poesia – 12/01/24

Boa noite Insatisfeita Helena Verdugo Afonso Enfim, posso morrer! Já te beijei a linda boca perfumada e quente, num beijo longo, divinal, fremente, um beijo aonde toda me entreguei… Não me conheço agora. Já nem sei se fiz bem, se fiz mal. Minha alma ardente sofria por um bem que tinha ausente, e morro na ventura em que fiquei… É assim, o meu amor: eu, que vivera, na crença de esperança já perdida, tenho de ti o bem que apetecera! Por esse beijo, vivo tão dorida, que, para ser feliz, antes valera ficar a desejá-lo toda a vida! Helena Verdugo Afonso * Angola

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Else Lasker-Schüler – Poesia – 08/01/24

Boa noite Umas canção Else Lasker-Schüler ¹ Por detrás dos meus olhos há águas Tenho de as chorar todas. Tenho sempre um desejo de me elevar voando, E de partir com as aves migratórias. Respirar cores com os ventos Nos grandes ares. Oh, como estou triste… O rosto da lua bem o sabe. Por isso, à minha volta há muita devoção aveludada E madrugada a aproximar-se. Quando as minhas asas se quebraram Contra o teu coração de pedra, Caíram os melros, como rosas de luto, Dos altos arbustos azuis. Todo o chilreio reprimido Quer jubilar de novo E eu tenho um desejo de me elevar voando, E de partir com as aves migratórias. ¹ Else Lasker-Schüler * Elberfeld, Wuppertal, Alemanha – 1869 + Jerusalem, 1945 Foi uma figura enigmática e única, no contexto das primeiras décadas do século XX e da poesia alemã do chamado Expressionismo, onde claramente não cabe. Estranheza, exotismo, fantasia sem limites e alguma ponta de loucura poderão ajudar a dar perfil a uma mulher que, oriunda de uma família de judeus assimilados e marcada por dois casamentos breves, cedo escolhe um caminho que a levará a inventar mundos próprios, alimentados pelas visões de um ‘Oriente de Deus’ — judeu, árabe, egípcio, oriental sem mais — que não tem paralelo em nenhum outro poeta da época. Ao inventar mundos e a assumir máscaras várias: Jussuf (José), príncipe de Tebas, Tino, princesa de Bagdad, Robinson, o índio Jaguar Azul… A autobiografia que fornece em 1919 ao organizador da mais célebre antologia de poesia do Expressionismo (Menscheitsdämmerung/ Aurora da Humanidade, de Kurt Pinthus) é sintomática da indistinção entre lenda e vida que marcará a existência e a obra de Else Lasker-Schüler: “Nasci em Tebas (Egito), embora tenha visto a luz do mundo em Elberfeld, na Renânia. Fui à escola até aos onze anos, tornei-me Robinson, vivi cinco anos no Oriente, e desde então vegeto.”

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