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Ledo Ivo – Poesia – 12/08/2023

Boa noite A Queimada Ledo Ivo ¹ Queime tudo o que puder: as cartas de amor as contas telefônicas o rol de roupas sujas as escrituras e certidões as inconfidências dos confrades ressentidos a confissão interrompida o poema erótico que ratifica a impotência e anuncia a arteriosclerose os recortes antigos e as fotografias amareladas. Não deixe aos herdeiros esfaimados nenhuma herança de papel. Seja como os lobos: more num covil e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados. Viva e morra fechado como um caracol. Diga sempre não à escória eletrônica. Destrua os poemas inacabados, os rascunhos, as variantes e os fragmentos que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas. Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha. Não confie a ninguém o seu segredo. A verdade não pode ser dita. Lêdo Ivo * Maceió, AL – 18 de Fevereiro de 1924 +Sevilha, Espanha – 23 de dezembro de 2012

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Hannah Arendt – Poesia – 29/11/23

Boa noite Poema Hannah Arendt Consoladora, inclina-te suavemente para o meu coração. Dá-se, silenciosa, alívio para a dor. Coloca tua sombra sobre tudo por demais brilhante — Dá-me a exaustão, cobre o brilho. Deixa-me teu silêncio, teu abrandamento refrescante. Deixa-me embrulhar em tua escuridão tudo o que é mau. Quando a claridade doer com novas visões Dá-me a força para seguir adiante com firmeza Não chore pela suave tristeza Quando o olhar de quem não tem lar Ainda o corteja envergonhado. Sinta como a história mais pura Ainda oculta tudo. Sinta o movimento mais tenro De gratidão e fidelidade. E você saberá: sempre, O amor renovado será dado.

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Octávio Paz – Poesia – 07/07/23

Boa noite Isto e Isto e Isto Octavio Paz¹ O surrealismo tem sido a maçã de fogo na árvore da sintaxe O surrealismo tem sido a camélia de cinza entre os peitos da adolescente possuída pelo espectro de Orestes O surrealismo tem sido o prato de lentilhas que o olhar do filho pródigo transforma em festim fumegante de rei canibal O surrealismo tem sido o bálsamo de Ferrabrás que apaga os sinais do pecado original e o umbigo da linguagem O surrealismo tem sido a cusparada na hóstia e o cravo de dinamite no confessionário e o abre-te sésamo das caixas de segurança e das grades dos manicômios O surrealismo tem sido a chama ébria que guia os passos do sonâmbulo que caminha na ponta dos pés sobre o fio de sombra que traça a folha da guilhotina no pescoço dos justiçados O surrealismo tem sido o prego ardente na fronte do geômetra e o vento forte que à meia-noite levanta o lençol das virgens O surrealismo tem sido o pão selvagem que paralisa o ventre da Companhia de Jesus até que a obriga a vomitar todos os seus gatos e seus diabos encarcerados O surrealismo tem sido o punhado de sal que dissolve as velhas moedinhas do realismo socialista O surrealismo tem sido a coroa de papelão do crítico sem cabeça e a víbora que desliza entre as pernas da mulher do crítico O surrealismo tem sido a lepra do ocidente cristão e o açoite de nove cordas que desenha o caminho de saída para outras terras e outras línguas e outras almas sobre o lombo do nacionalismo embrutecido e embrutecedor O surrealismo tem sido o discurso da criança soterrada em cada homem e a aspersão de sílabas de leite de leoas sobre os ossos calcinados de Giordano Bruno O surrealismo tem sido as botas de sete léguas dos foragidos das prisões da razão dialética e a tocha de Pulgarcito que corta os nós da trepadeira venenosa que cobre os muros das revoluções petrificadas do século XX O surrealismo tem sido isto e isto e isto Trad. Antônio Moura ¹Octavio Paz * Cidade do México, México – 31 de Março de 1914 d.C. + Cidade do México, México – 20 de Abril de 1998 d.C.

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J.G de Araújo Jorge – Poesia – 23/06/2023

Boa noite Quando chegares J.G de Araújo Jorge Não sei se voltarás sei que te espero. Chegues quando chegares, ainda estarei de pé, mesmo sem dia, mesmo que seja noite, ainda estarei de pé. A gente sempre fica acordado nessa agonia, à espera de um amor que acabou sendo fé… Chegues quando chegares, se houver tempo, colheremos ainda frutos, como ontem, a sós; se for tarde demais, nos deitaremos à sombra e perguntaremos por nós…

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Saramar Mendes – Poesia – 21/06/23

Amores vãos Saramar Mendes Bebo o meu vinho entre sombras brindando à cidade e seus argênteos fantasmas. Não renego a agonia das noites dentro dos meus olhos baços, mas tranco a alma na gaveta de baixo e assisto a passagem espectral da madrugada barganhando com outros desesperados a taça, o frio e os açoites do vento ou da dor. Escapo da ausência das flores admirando néons escondida num canto de alguma rua. Esqueço meu nome antes mesmo da morte, à espera de um amanhecer que nunca acontece. “Lá fora tudo arde”. Aqui, zumbem vozes esquecidas curvadas até a mudez sobre as íntimas feridas de amores vãos.

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Adélia Prado – Poesia – 01/06/23

Boa noite Dolores Adélia Prado Hoje me deu tristeza, sofri três tipos de medo acrescido do fato irreversível: não sou mais jovem. Discuti política, feminismo, a pertinência da reforma penal, mas ao fim dos assuntos tirava do bolso meu caquinho de espelho e enchia os olhos de lágrimas: não sou mais jovem. As ciências não me deram socorro, não tenho por definitivo consolo o respeito dos moços. Fui no Livro Sagrado buscar perdão pra minha carne soberba e lá estava escrito: “Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada, se tornou capaz de ter uma descendência…” Se alguém me fixasse, insisti ainda, num quadro, numa poesia… e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos… Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques, das que jamais verão seu nome impresso e no entanto sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas não recusam casamento, antes acham sexo agradável, condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo e varrer a casa de manhã. Uma tal esperança imploro a Deus.

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Versos na tarde – Otacílio Colares – 27/04/23

Boa noite Amigos Otacílio Colares Amigos valham os bons, poucos que sejam, que nisto pouco importa a quantidade, pois quase sempre é de infidelidade o tom daqueles que demais cortejam. Amigos versos fácil não bafejam, pois sabem que o que conta é qualidade e na alma infundem só sinceridade, quando de alguém a face acaso beijam. Amigos quer-se-os como os vinhos raros – sutis no odor, no paladar, discretos, quanto mais simples, tanto mais amados. E de assim serem poucos, são tão caros que, quais doces pecados, e secretos, são no íntimo do peito conservados.O

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Maria do Rosário Pedreira – Poesia – 15/02/24

Boa noite. Maria do Rosário Pedreira Esta manhã encontrei o teu nome Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo doeu-me onde antes os teus dedos foram aves de verão e a tua boca deixou um rasto de canções. No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração que era o resto da vida – como um peixe respira na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos, mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota as forças, são frios os batentes nas portas da manhã. ¹Maria do Rosário Pedreira *Lisboa, Portugal – 1959

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Walt Whitman – Poesia – 08/02/24

Boa noite. Até à Vista – Extrato Walt Whitman¹ …fiz o meu próprio caminho, Cantei o corpo e a alma, a guerra e a paz, as canções da vida e da morte, E as canções do nascimento, mostrando que há muitos e muitos nascimentos. ¹Walt Whitman * Long Island, Usa – 31 de Maio de 1819 d.C + Long Island, Usa – 26 de Março de 1819 d.C

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Fernando Pessoa – Poesia – 29/01/24

Boa noite. Meu pensamento é um rio subterrâneo Fernando Pessoa¹ Meu pensamento é um rio subterrâneo. Para que terras vai e donde vem? Não sei… Na noite em que o meu ser o tem Emerge dele um ruído subitâneo De origens no Mistério extraviadas De eu compreendê-las…, misteriosas fontes Habitando a distância de ermos montes Onde os momentos são a Deus chegados… De vez em quando luze em minha mágoa Como um farol num mar desconhecido Um movimento de correr, perdido Em mim, um pálido soluço de água… E eu relembro de tempos mais antigos Que a minha consciência da ilusão Águas divinas percorrendo o chão De verdores uníssonos e amigos, E a ideia de uma Pátria anterior À forma consciente do meu ser Dói me no que desejo, e vem bater Como uma onda de encontro à minha dor. Escuto o… Ao longe, no meu vago tacto Da minha alma, perdido som incerto, Como um eterno rio indescoberto, Mais que a ideia de rio certo e abstracto… E p′ra onde é que ele vai, que se extravia Do meu ouvi lo? A que cavernas desce? Em que frios de Assombro é que arrefece? De que névoas soturnas se anuvia? Não sei… Eu perco o… E outra vez regressa A luz e a cor do mundo claro e actual, E na interior distância do meu Real Como se a alma acabasse, o rio cessa… ¹ Fernando Antonio Nogueira Pessoa * Lisboa, Portugal – 13 de Junho de 1888 d.C + Lisboa, Portugal – 30 de Novembro de 1935 d.C

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