A disputa política por influência digital vem ganhando escala no Brasil desde as eleições de 2014 e já prepara terreno para a batalha do próximo ano.
O arsenal virá de empresas como a Stilingue, que varre a internet com um software de inteligência artificial capaz de ler textos em português – já usado para fazer previsões sobre as votações no Congresso -, e da Cambridge Analytica, a polêmica consultoria que trabalhou na campanha de Donald Trump e que desembarca no Brasil neste ano.
Companhias como essas processam toneladas de informação que vêm da rede e de bancos de dados para, por exemplo, mapear os perfis de eleitores. A prática é uma estratégia antiga dos marqueteiros, que sabem que a recepção de conteúdo pelos seres humanos é seletiva – pessoas com orientação progressista dificilmente dão atenção a discursos autoritários, por exemplo – e que, por isso, precisam adaptar o discurso de seus candidatos para elevar seu alcance e, em última instância, conseguir votos.
A diferença é que agora é possível ir além da divisão demográfica e ideológica, da direita e esquerda, e agrupar os brasileiros usando como critérios seus sentimentos – medos, desejos e ambições.
Aprendendo português
Batizado de War Room, o software da Stilingue vem sendo construído há quatro anos através do que a ciência da computação chama de “processamento de linguagem natural”. Em Ouro Preto (MG), o time de 35 desenvolvedores alimenta o computador com textos em português para ensiná-lo a entender e interpretar a língua, identificando padrões comuns.
Com a tecnologia, eles monitoram redes sociais – Facebook, Twitter, Instagram -, influenciadores e fazem análise do que é publicado na imprensa.
Para a política, as aplicações dessa vigilância robotizada vão desde gestão de imagem do candidato (a ferramenta consegue inclusive fazer reconhecimento facial para identificar memes, que à priori não são capturados nas leituras textuais) a psicometria – a análise de personalidade dos eleitores, útil na formulação do discurso político -, e ao chamado “community management”.
Neste último caso, como o programa consegue identificar aqueles que são a favor e contra determinado tema, os candidatos teriam chance de fazer um “corpo a corpo” virtual para tentar, por exemplo, convencer os indecisos.
A empresa tem dois clientes pré-candidatos a cargos do Executivo, que contrataram o “pacote completo”, conta seu presidente, Rodrigo Helcer, sem dar maiores detalhes. Com formação na área de administração, o paulistano é sócio de dois mineiros com experiência em computação.
“A inteligência artificial permite que a gente automatize um trabalho que antes era bastante operacional em uma escala muito maior. A mudança é comparável com a invenção do microscópio, que permitiu a descoberta de um mundo completamente novo, que antes era invisível”, ele afirma.
Esse tipo de tecnologia vem sendo usada em diversos países – e campanhas políticas – há alguns anos, mas o número de softwares capazes de ler em português, segundo Helcer, ainda é pequeno.
A empresa conta com 50 funcionários em Ouro Preto e dez em São Paulo, cidade que concentra as atividades administrativas. Além da equipe robusta de desenvolvedores, a companhia tem uma relação próxima com polos tecnológicos como o da Universidade de São Paulo (USP), do campus da USP em São Carlos, da PUC do Rio Grande do Sul, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal de Lavras.
Monitor do Congresso
Um dos serviços já prestados aos clientes, que vão da indústria de bens de consumo às assessorias de comunicação, é o monitoramento do Congresso. O acompanhamento diário das atividades virtuais dos 513 deputados federais tem função, por exemplo, de prever resultados de votações na Câmara.
Exemplo recente nesse sentido foi a tramitação da reforma da Previdência na Comissão Especial da Casa. A análise feita a partir da interpretação de entrevistas e manifestações nas redes sociais dos 37 membros acertou o resultado com erro de dois votos.
Reportagem veiculada um dia antes em um jornal de São Paulo, diz Helcer, baseada nas declarações dadas pelos próprios parlamentares aos repórteres por telefone e por e-mail, errou quatro votos.
Brasileiros em 12 versões
Colocar os eleitores no divã é uma das especialidades da Cambridge Analytica. Com escritórios em Londres, Washington, Nova York e, mais recentemente, México, Malásia e Brasil, a empresa de ‘big data’ por trás da campanha de Donald Trump à Casa Branca no ano passado tem entre os investidores o bilionário Robert Mercer, que apoiou a candidatura do republicano.
A parceria com a brasileira A Ponte Estratégia foi anunciada em março e tem como foco a transferência e a “tropicalização” da metodologia de segmentação psicográfica, que traça o perfil psicológico dos eleitores, diz o marqueteiro André Torretta, à frente da empresa, rebatizada de CA-Ponte.
Esse tipo de análise, ele explica, é diferente do perfil demográfico, que divide os indivíduos por classe social ou grau de instrução, por exemplo, e do perfil ideológico, que posiciona os eleitores no espectro de direita a esquerda.
Trata-se de saber do que as pessoas têm medo, o que as inspira, quais temas rejeitam e quais apoiam para adaptar a mensagem do candidato ao público – estratégia usada por Trump no ano passado.
“O cara pode ser um medroso de direita ou um medroso de esquerda. Com qualquer um desses dois eu vou poder conversar sobre armamento, por exemplo, sobre controle de fronteira”, explica Torretta, que espera dividir os brasileiros entre seis e 12 perfis.
Questionado sobre seus clientes, ele diz apenas que, “como empresário, vai onde o dinheiro está”. “Em 2018 vamos ter umas 60 boas campanhas para governo de Estado e cinco ou sete para presidente.”
Zap
O marqueteiro prefere Facebook e Twitter como fontes de informação sobre os eleitores a usá-los como plataformas de comunicação, meios para fazer a mensagem chegar a quem a campanha quer influenciar. A razão disso é, em parte, a própria legislação eleitoral brasileira, que impede que os candidatos paguem por exposição nas redes sociais. “Você é muito mais receptivo que ativo”.
Assim, o meio alternativo à TV e ao rádio nas eleições de 2018, ele afirma, será o WhatsApp . “Ele é a grande rede social no Brasil”.
Para a cientista política Luciana Veiga, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), o WhatsApp é uma plataforma mais eficiente do que as demais redes para falar aos indecisos, por exemplo. Em sua avaliação, ele passa a sensação de que é mais privado, mais “leve” e de ser um espaço em que se pode compartilhar conteúdo sem necessariamente se posicionar.
“As pessoas buscam estabilidade nas emoções. Muita gente se distancia das redes porque não está disposta a brigar. Os eleitores mais neutros acabam não sendo atingidos pelo Facebook, por exemplo”, avalia a professora.
Poluição virtual
A atmosfera mais pesada que frequentemente paira sobre as redes sociais é criada muitas vezes de forma proposital, com o objetivo de manipular opinião, dizem especialistas da área.
Eles alertam, por exemplo, para a disseminação silenciosa dos social bots, perfis controlados por inteligência artificial que se manifestam politicamente e interagem com seres humanos nas redes.
“Muitos são criados para gerar a impressão de que todo mundo fala sobre determinado tópico”, diz o professor do curso de ciência da computação da UFMG Fabricio Benevenuto, que alerta para o uso desse tipo de instrumento para espalhar notícias falsas.
Em 2013, seu grupo de pesquisa criou 120 contas-robôs no Facebook e no Twitter. Uma fração pequena foi bloqueada e alguns ganharam destaque a ponto de bater celebridades como Justin Bieber em medidores de influência como o Twitalyzer.
“Nossa preocupação é prover cada vez mais transparência, monitorar o espaço online”, diz ele, que está atualmente no Instituto Max Planck, na Alemanha. Benevenuto é também consultor da Stilingue, onde desenvolve o núcleo dedicado a detectar e filtrar os bots – que, segundo ele, já foram usados nas eleições de 2014 e de 2016.
Outra zona cinzenta e que também vem protagonizando polêmicas em eleições pelo mundo, diz o pesquisador da Universidade de Washington Daniel Arnaudo, é a coleta, compra e venda de dados pessoais na internet. Na falta de uma lei que regulamente essa prática, muitas empresas negociam informações de usuários que não fazem ideia, quando aceitam seus termos e condições, de que sua privacidade poderia ser compartilhada com outras empresas.
“Existem as informações públicas, que estão nas redes sociais, e tem esse lado ‘escuro'”, diz o americano, que estuda as leis de cibersegurança brasileiras e também está ligado ao Instituto Igarapé. A proteção de dados pessoais é tema do Projeto de Lei (PL) 5.276, que está parado na Câmara.
Camilla Veras Mota – @cavmotaDa BBC Brasil em São Paulo