Por que a decisão do governo de fazer propaganda da Reforma da Previdência no Google é polêmica.
A iniciativa do Palácio do Planalto de procurar o Google para publicar anúncios sobre a Reforma da Previdência causou desconfiança nas redes sociais nas últimas semanas.
Considerada um dos maiores desafios da gestão Temer e com votação prevista para fevereiro, a medida é impopular – o que explica a procura do governo por novos meios para tentar aumentar a aceitação do projeto.
Para analistas, o passo faz parte de uma expansão nas estratégias publicitárias do governo, recorrendo à publicidade extremamente segmentada permitida por plataformas digitais – uma tendência não só para a propaganda oficial, mas para as campanhas eleitorais de 2018. A estratégia, no entanto, exige precauções, dizem eles.
As propagandas sobre a reforma têm sido alvo de críticas e questionadas judicialmente – em decisões diferentes no ano passado, juízes concluíram que as peças analisadas buscavam convencer, em vez de informar, e que não possuíam o caráter educativo ou de orientação social exigido pela Constituição. O governo nega que isso tenha ocorrido, e as decisões acabaram derrubadas (leia mais abaixo).
De acordo com a Secretaria Especial de Comunicação (Secom), o governo começou a usar o Google para campanha publicitária em dezembro último, somando anúncios na poderosa ferramenta de buscas à publicidade que vem fazendo em prol da Reforma da Previdência em redes como o Facebook, o Twitter e o YouTube (que também pertence ao Google).
O secretário responsável pela pasta, Márcio Freitas, afirmou à BBC Brasil que ela vem estudando formas de viabilizar o que chama de “parceria” com o Google, e que o principal interesse no momento é aprimorar o alcance de conteúdo oficial sobre a Reforma da Previdência.
Os anúncios promovem uma reforma “contra privilégios, a favor de todos” – como diz uma das últimas publicações do Planalto em seu perfil no Facebook.
O Google confirmou à BBC Brasil que foi procurado pelo governo e afirma que os integrantes da Secom pediram informações sobre a inserção de publicidade e sobre o funcionamento da plataforma de anúncios do Google, buscando cenários especificamente para a campanha pela Reforma da Previdência.
Não se trataria, segundo a empresa, de uma parceria, e sim da compra de publicidade, seguindo os mesmos procedimentos que a empresa de tecnologia adota com o setor privado e também com outros governos. De acordo com a assessoria de imprensa, alguns governos estaduais e municipais brasileiros já têm a prática de anunciar na plataforma.
Procurado novamente pela reportagem para esclarecer o que queria dizer com parceria, o titular da Secom não respondeu.
Mirando no alvo
O movimento é parte do chamado microtargeting político. Jargão do marketing, o microtargeting (algo como mirar um “microalvo”) ou microssegmentação é a busca da publicidade por alcançar nichos específicos do público – e se vale dos perfis que as redes sociais traçam com base nos algoritmos com que operam, mapeando os hábitos e preferências dos usuários.
É por causa do microtargeting que recebemos anúncios de hotéis em Madri depois de fazer uma busca sobre a Espanha; ou que de repente vemos na página do nosso email publicidade de eletrodomésticos parecidos com os que pesquisamos na Black Friday.
O mesmo recurso pode ser usado pelo governo federal para direcionar sua campanha pela Reforma da Previdência, que enfrenta rejeição de até 70% da população em alguns levantamentos – em dezembro, o governo comemorou uma pesquisa encomendada ao Ibope que mostrava 46% de rejeição.
Ao publicar anúncios ou impulsionar publicações específicas de órgãos públicos, o governo pode customizar o que vai oferecer para certas faixas etárias e regiões geográficas nas redes sociais, ou reagir às perguntas mais frequentes feitas no Google.
Freitas defende a estratégia, dizendo que o Google “faz uma leitura muito eficaz da relevância de determinados assuntos na internet e é capaz de perceber as dúvidas mais comuns que as pessoas têm”.
“Queremos saber quais as principais perguntas que as pessoas estão fazendo e as principais fontes de informações que consultam, para nos colocarmos dentre essas fontes e oferecer maiores esclarecimentos à sociedade”, afirma Freitas, referindo-se à publicidade oficial como um “conteúdo neutro” e não como uma peça de convencimento em massa.
“O objetivo fundamental do governo é que as pessoas tenham acesso a informações corretas sobre a Reforma da Previdência. Precisamos evitar que informações de baixa qualidade, as fake news, se propaguem, e formular campanhas para disseminar conteúdo neutro e correto para a sociedade brasileira”, diz, argumentando que a ferramenta é “amplamente usada hoje no mercado por diversas empresas e governos”, e que está mais do que na hora de o governo federal utilizar essa tecnologia.
‘Não há tentativa de direcionamento’
Especialistas dizem que não há restrições legais para que a publicidade oficial seja direcionada para determinados nichos a partir dos perfis que revelamos nas redes sociais, mas alertam que é preciso transparência no uso e no monitoramento desses mecanismos.
Professor de inovação e tecnologia da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Fabro Steibel diz que governos de países como França, EUA e Reino Unido também usam o Google e redes sociais para inserir anúncios de suas ações.
Ele alerta que, assim como em outros meios, a publicidade oficial deve servir a informar de forma objetiva, sem tentar convencer. E ressalta que o conteúdo oficial precisa estar discriminado claramente como tal.
O Google ressalta que os anúncios são explicitamente indicados como publicidade e não interferem na “busca orgânica”, ou seja, a área central de resultados relacionados às palavras-chave digitadas pelo usuário. Os resultados que aparecem primeiro na busca são os mais relevantes de acordo com o algoritmo da plataforma.
De 2016 para cá, de acordo com a Secom, o governo federal gastou R$ 103,6 milhões com agências de propaganda para formular campanhas sobre a Reforma da Previdência. Ao longo de 2017, o percentual investido em inserções na internet correspondeu a 9,78% do total da verba publicitária da Secom.
Márcio de Freitas afirmou não ter ainda “uma proposta concreta” de quanto o governo deve investir em publicidade digital para a Reforma da Previdência nos próximos meses, afirmando estar estudando ainda quais serão as melhores ferramentas.
“Não há qualquer tentativa de direcionamento”, afirma o secretário de Comunicação Social. “Isso nem é possível. Na página do Google você não pode direcionar as pessoas para um lugar. Mas você pode entender o que as pessoas estão pesquisando sobre um assunto, o que querem saber, e oferecer as respostas corretas”, diz Freitas.
Neutralidade questionada
A neutralidade da publicidade oficial sobre Reforma da Previdência foi posta à prova três vezes no ano passado.
Em momentos diferentes, duas juízas determinaram a suspensão da propaganda oficial considerando que buscava convencer em vez de informar, e que não possuía o caráter educativo ou de orientação social exigido pela lei.
As suspensões foram revertidas por tribunais regionais federais.
Em dezembro, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a suspensão da veiculação da propaganda do governo Temer em favor da reforma, questionando o uso de verba suplementar de R$ 99 milhões, aprovada pelo Congresso, em “campanha estratégica de convencimento público”.
Dodge argumentou que a propaganda “não explicita de maneira clara e transparente a totalidade dos dados pertinentes ao tema”.
Neste mês, a Advocacia-Geral da União (AGU) defendeu a legitimidade das campanhas oficiais perante o STF, referindo-se aos argumentos da Procuradoria como “frágeis alegações”.
Diante do esforço do governo para aprovar a reforma, a notícia sobre uma reunião do governo Temer com o Google como parte da ofensiva gerou polêmica nas redes sociais nas últimas semanas.
Opositores da reforma reclamaram, e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) postou um banner em suas redes sociais com os dizeres “Temer estuda parceria com o Google para te enganar”, seguido da palavra “Goolpe” escrita nas mesmas cores e estilo do logotipo da empresa.
‘Transparência é essencial’
Professor de inovação e tecnologia da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Fabro Steibel afirma que é natural o governo querer usar plataformas digitais para publicidade, já que detêm grande potencial de alcance – e, para se comunicar bem, os governos têm de ir aonde o povo está.
Entretanto, ampliar o uso de publicidade oficial na internet demanda um debate sobre as regras do jogo, garantindo transparência no uso dos meios digitais e estabelecendo salvaguardas, afirma.
“O governo tem o dever de informar. Se informa bem, ganha transparência e está prestando contas”, diz Steibel.
“O que não pode é usar dinheiro público para fazer campanha. Isso é proibido por lei. O governo tem o dever de se comunicar e fornecer informações objetivas, que ajudem as pessoas a entender e se posicionar sobre a Reforma da Previdência. Aquele espaço não pode ser usado para dizer que a reforma é excelente, para convencer, em vez de informar”, ressalta o professor da ESPM.
Ele afirma que é necessário estabelecer mecanismos claros e um sistema transparente para que a publicidade digital possa ser monitorada pela sociedade e pelos órgãos competentes. O problema não é o uso, é o uso sem transparência:
“O governo não pode cair no erro de que é só colocar o conteúdo na internet. É preciso dar transparência para que outros agentes possam monitorar”, diz Steibel.
Ele afirma, por exemplo, que é preciso ter transparência em relação às palavras contratadas nas buscas do Google e aos anúncios que engatilhariam, para assegurar que recursos públicos não sejam usados para direcionar pesquisas a conteúdos com tons de campanha política, nem que personifiquem políticas públicas, associando-as a determinado “pai” ou autor político.
“Imagina, por exemplo, se uma busca das palavras “reforma da previdência” trouxesse um vídeo com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia”, exemplifica. “Os recursos são usados em nome de uma política de governo, e não de uma campanha. O foco não pode ser o político. Tem que ser o público.”
Assim como ocorre nos outros meios, nas plataformas digitais é preciso demarcar claramente quando um conteúdo é produzido pelo governo.
Ele lembra a polêmica gerada no ano passado, quando o governo contratou jovens influenciadores para falar bem da Reforma da Previdência no YouTube, gerando críticas de publicidade disfarçada. “Como você pega influenciadores que têm confiança de um segmento jovem e não deixa explícito de quem vem os recursos?”, critica o professor.
“Propaganda política tem que ter um grau de transparência maior que as outras. Tanto é que a propaganda eleitoral e partidária começam com uma tela azul. Tem que ter uma camada a mais que sinalize claramente: ‘eu sou uma propaganda de governo.'”
“A boa notícia disso é que históricos digitais são excelentes para transparência. Quando anuncio no Facebook, no Google, tenho acesso a todo um relatório de impacto mostrando como aquilo foi usado.”
Microtargeting para campanhas em 2018
Steibel afirma que se preocupa menos com o uso do microtargeting na publicidade sobre Reforma da Previdência do que com o uso sistemático pelo governo a partir de agora, “para todo tipo de política” – e também por políticos em campanha.
“Estamos criando uma cauda longa entre o governo, e o microtarget que merece atenção. A discussão não é só sobre Previdência, é sobre 2018. Essa primeira experiência deixará um legado”, diz Steibel.
Com a autorização do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para propaganda política na internet, o debate se volta para as campanhas para presidente, governadores, senadores e deputados em outubro deste ano.
Em março, o órgão vai publicar as regras finais para campanha na internet, estabelecendo diretrizes para que candidatos, partidos e coligações anunciem ou impulsionem publicações em sites como Twitter, Facebook, Instagram, Google e YouTube.
Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) e professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), diz que a expectativa é que empresas criem peças publicitárias para públicos muito específicos nas campanhas deste ano.
“A rede alcançou hoje uma sofisticação muito maior em entender o sentimento das pessoas a partir do que elas veem e de como reagem”, afirma, dando o exemplo dos recursos permitidos pelo Facebook ao desmembrar o simples ato do ‘curtir’ para reagir a uma postagem, permitindo expressar raiva, alegria, tristeza.
“Um usuário pode reagir a notícias sobre a condenação do (ex-presidente) Lula, por exemplo, dizendo que amou ou que está furiosa. Essa sofisticação torna mais fácil o microtargeting politico”, aponta.
Ele considera que a customização têm aspectos positivos para a publicidade política, como a possibilidade de que uma mensagem chegar para quem realmente se interessa pelos temas defendidos pelo candidato.
Além disso, como a propaganda na internet costuma ser mais barata e mais focada, isso pode favorecer pequenos candidatos. Porém, diz que o movimento demanda atenção redobrada, pelo temor de que abusos sejam cometidos.
De acordo com Souza, os EUA viram a “consagração” dessa estratégia na campanha eleitoral de Trump, em 2016, com a estratégia de customizar e direcionar o discurso da campanha ao eleitorado simpático às ideias do republicano. Agora seria a vez do Brasil, com as eleições de 2018.
“O microtargeting político não é uma ficção científica, já é parte da nossa realidade. As ferramentas para fazer endereçamento politico estão embedadas nas redes sociais, estão no próprio desenvolvimento das redes. É preciso que as pessoas estejam cientes disso”, diz o professor.
“Esse tipo de direcionamento da publicidade como um todo já existe. E o que se está fazendo cada vez mais é seu uso com finalidade política.”
Júlia Dias Carneiro/BBC