Tecnicamente, é um filme muito bem feito, uma fotografia linda, reforçando de forma bem clara aspectos de chiaroscuro e com uma forte influência da pintura contemporânea ao filme. Mas mais impressionante é a riqueza musical: Marais, St. Colombe são muito tocados, mas também Lully, Couperin e muita música original (no devido estilo do barroco francês!) composta e tocada por Jordi Savall, cujo talento aprofunda ainda mais o filme.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”]

Sinopse

O filme começa em uma situação que qualquer pessoa que faz música já experimentou: as notas estão certas, a partitura está sendo fidedignamente reproduzida, mas ainda assim, o resultado não é agradável, o resultado não é musical. Toda pessoa que já tocou algum instrumento já foi criticada por tocar errado, mesmo estando aparentemente certa. Desta forma, a cena tem uma insuspeita familiaridade com todos.

Em um primeiro momento o professor explica: “Toute note doit finir en mourant” e os músicos começam tocando, de maneira praticamente idêntica e Marais, irritado, resolve dar uma aula para seus músicos, sobre como tocar, “Marin Marais fait sa leçon!”. Mas, antes de falar tecnicamente sobre música, Marais resolve contar a história de sua aprendizagem.

A história básica é de como o gambista Marin Marais, após ter tido aulas com todos os grandes gambistas da corte francesa, se aproxima do compositor e gambista misantropo St. Colombe.

Considerado por todos o melhor gambista de seu tempo, ele tinha, desde a morte de sua esposa, abandonado toda a vida da corte e passado a viver austeramente com suas duas filhas, a quem ele ensina toda sua arte,  em uma propriedade rural do interior da França. Depois de uma breve exibição de Marais, St. Colombe resiste, mas acaba aceitando-o como aluno. Marais envolve-se amorosamente com uma das suas filhas, mas não consegue cativar o professor, que sempre o trata de maneira rude.

Marais acaba por se afastar do mestre e indo viver na corte, onde ele consegue a posição de chefe da orquestra de Lully, assumindo sua posição de compositor da corte depois da morte do grande italiano. Ele rejeita a filha de St. Colombe, grávida dele, por alguma beldade da corte. Algum tempo depois, com a gravidez tendo resultado em uma criança natimorta, a filha está gravemente doente e pede para que Marais toque para ela uma peça que ele havia composto para ela anos antes, ele toca e, logo depois de sair, ela se suicida.

Guillaume Depardieu como o jovem Marin Marais

Tempos depois, Marais, algo desiludido com sua vida na corte, sente vontade de ouvir a música de St. Colombe e volta, escondido, para ouvi-lo – agora sozinho, já que sua outra filha tinha se casado. Em uma dessas noites, Marais surpreende St. Colombe conversando com sua esposa (que sempre lhe aparecia em visões) e decide ir falar com ele. Ao contrário das outras vezes em que acolhera Marais rudemente, agora St. Colombe decide lhe dar não uma última lição, como tinha sido pedido, mas suaprimeira lição sobre música.

E é essa lição que ele repete a seus músicos. O Marais jovem que tocava para St. Colombe estava tão errado quanto os músicos da sua orquestra que tentavam tocar para ele. St. Colombe dizia repetidamente: “Vous faisez de la musique, mais vous n’êtes pas musicien”. O talento ele tinha, o conhecimento técnico estava lá, mas faltava algo. E o filme fala desse algo.

Jean-Pierre Marielle como Sainte Colombe


Análise

O filme não trata da vida anterior de st. Colombe, ela é sutilmente deixada de lado, mas parece que o evento central da sua vida foi a morte de sua esposa. Desde então, ele passou a se concentrar cada vez mais na música e a dar cada vez menos valor às coisas de fora da música. Porque a música é a única coisa capaz não de superar, mas de sublimar a dor da perda da sua mulher.

Marais, ainda mais do que st. Colombe, viveu uma vida de ostentação, ele chegou a abandonar seu mestre e seu primeiro amor para a suntuosidade de Versalhes. Depois de algum tempo, o filme não é claro, mas é claramente depois da morte de Madeleine, essa vida deixou de ser suficiente para ele. Nessa desilusão ele retorna toda noite em segredo à propriedade de St. Colombe para ouvir sua música – ela lhe tinha bem mais a dizer do que os rococós de Versalhes.

Marais tinha tido também a sua experiência com a morte, a da morte da filha de seu mestre, que é em grande parte por sua culpa. É somente a partir dessa experiência com o sofrimento e da desilusão com a pompa real que st. Colombe aceita ensinar música para Marais.

“A música é uma linguagem que só consegue se exprimir quando as palavras não podem, nesse sentido, ela não é humana. Para que é a música?” St. Colombe pergunta para Marais, “você já descobriu que não é para o Rei”. E Marais responde com todos os lugares comuns: “glória, fama, para si mesmo, para Deus, para um amor, para os males do amor”. Só depois de muitas tentativas, que ele percebe: a música fala com tudo aquilo que não tem palavra. E a principal metáfora que o filme usa é a da linguagem dos mortos, é com a música que St. Colombe reencontra sua antiga esposa, e é somente depois da sua própria experiência com a morte de Madeleine, que Marais vai conseguir finalmente aprender a ser um musicista. “Eu vou te ensinar duas airs que podem ressuscitar os mortos”, e assim termina a formação de Marais.

Não que o filme queira dizer que a música barroca era uma espécie de scéance espírita bem avant la lettre, os mortos são apenas um símbolo. É óbvio que a linguagem dos mortos no filme serve como metáfora para aquilo que a música tem de mais essencial: é a linguagem do indizível. A música só consegue exprimir aquilo que não tem palavras para se exprimir, por isso que é tão difícil falar sobre música, porque ela, quando está sendo música em seu mais alto grau, recusa as próprias palavras. E o filme deixa isso bem claro.

Por este motivo, por ser uma longa reflexão sobre a natureza da música, que o filme tem um valor tão elevado. Filmes sobre músicos existem aos montes, mas filmes sobre a música, que eu conheço, somente este. E poucas obras, mesmo as filosóficas, conseguiram falar sobre musica de uma forma tão profunda.
Por Bruno Gripp