Fruto de acaso e tenacidade, a sensacional descoberta na África do Sul incita a repensar a teoria evolutiva. Uma linhagem única, de Lucy até o ser humano moderno, parece menos provável do que nunca.
A notícia movimentou a comunidade científica: numa caverna da África do Sul encontrou-se um inesperado elo perdido na evolução humana, o Homo naledi, datando de entre 100 mil e 2 milhões de anos, como anunciou a revista online eLife nesta quinta-feira (10/09).
Devido a suas dimensões e circunstâncias, o achado dos fósseis, em si, já teve algo de espetacular: após uma descoberta acidental em 2013, mais de 1.500 ossos foram retirados da Câmara Dinaledi, a 30 metros de profundidade, no sítio arqueológico conhecido como “Berço da Humanidade”. As escavações levaram 21 dias, envolvendo mais de 60 especialistas.
Mais sensacional ainda, porém, é o potencial efeito do evento sobre a ciência. Com os estudos a seu respeito ainda a pleno vapor, o Homo naledi já abala as bases teóricas da evolução, forçando a revisão de algumas quase certezas.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”]
Mas o que torna tão revolucionária essa recente adição à árvore genealógica da humanidade?
Entre Lucy e o Homo erectus
Baseado exclusivamente em erráticas exumações de fósseis, os conhecimentos sobre as origens doHomo sapiens ainda são esparsos e fragmentados.
No extremo da linha do tempo, estão os astralopitecos, primatas com características quase humanas, datando cerca de 3 milhões de anos. Seu representante mais famoso é Lucy, o esqueleto de um Australopithecus afarensisdesenterrado na Etiópia em 1974.
O ancestral cronologicamente mais próximo do homem moderno é o Homo erectus, cujos vestígios fósseis mais antigos contam 1,9 milhão de anos, e os mais recentes, 70 mil anos. Dele se sabe que usava ferramentas, sabia fazer fogo e – segundo a teoria mais em voga – se difundiu a partir da África por toda a Eurásia.
Um milhão de anos de escuridão
Entre os australopitecos e o H. erectus há uma nebulosa lacuna de aproximadamente 1 milhão de anos. Foi nesse ínterim que, misteriosamente, um ágil animal bípede se transformou num ser capaz de usar a própria mente para influenciar o meio ambiente em favor próprio – ou para a própria destruição. Como? A ciência não poupa esforços para responder isso – até hoje sem sucesso.
Ligeiramente anterior ao H. erectus é o Homo habilis, que se crê já utilizasse ferramentas. Desde a descoberta de seus fósseis na Tanzânia, na década de 1960, e mais tarde no Quênia, essa espécie é a que inaugura a incerta árvore genealógica humana, que teria raízes na África Oriental.
Antes do H. habilis, a história do homem se perde no breu do desconhecimento. Outros fósseis do gênero Homo encontrados são escassos demais para serem definidos como uma espécie. Como formulou um cientista: eles caberiam facilmente numa caixa de sapatos, e ainda haveria lugar para os calçados.
Antropólogo na contramão
O paleoantropólogo americano Lee Berger é um dos numerosos pesquisadores que dedicam a vida a desvendar o enigma da evolução humana. Contudo, tanto seus meios e hipóteses muitas vezes heterodoxos quanto um certo excesso de ambição carreirista o transformaram em persona non gratapara parte da comunidade científica.
Berger bate de frente com seus colegas, por exemplo, ao insistir que as raízes humanas se encontrariam na África do Sul, e não no leste do continente, como se tende a acreditar. Assim, depois de um achado relevante no “Berço da Humanidade” em 2008, ele contratou geólogos para continuarem a busca de fósseis, além de pedir aos praticantes do cavernismo na região sul-africana que comunicassem qualquer achado promissor.
A importância de ser esquelético
Em 2013, os cavernistas amadores Steven Tucker e Rick Hunter exploravam o sistema espeleológico de Rising Star. Apesar de esse labirinto de canais e cavernas a quase de 50 quilômetros a noroeste de Johanesburgo estar bastante bem mapeado, ambos esperavam encontrar uma passagem menos conhecida. Além disso, sabiam do apelo de Lee Berger.
Por um misto de curiosidade e acaso, a uma profundidade de 30 metros os dois se depararam com a Câmara Dinaledi (naledi significa “estrela”, no idioma sesotho). Lá, a 90 metros da entrada, detectaram os primeiros fósseis do improvável elo perdido.
Um acaso feliz foi Tucker e Hunter serem extremamente magros, praticamente só ossos e músculos, pois, no caminho até o Homo naledi, eles tiveram que atravessar passagens medindo apenas 18 centímetros de largura. Um pouco mais de gordura, e o tesouro de Rising Star talvez ainda permanecesse oculto por muito tempo.
Quase humano – mas nem tanto
Depois dessa primeira revelação, Berger conquistou o apoio Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, da National Geographic Society e da Fundação Nacional Sul-Africana de Pesquisa para a exploração.
Nos trabalhos de escavação subsequentes, vieram à tona cerca de 1.550 fósseis – inclusive 190 dentes de aspecto surpreendentemente humano –, pertencentes a um total de 15 indivíduos. Tal abundância de vestígios é inédita: as demais espécies de Homo são conhecidas, em geral, apenas por fragmentos de esqueletos.
Ainda assim, o H. naledi continua guardando numerosos mistérios. Um dos principais é a idade dos fósseis, que pode ser de 100 mil a 3 milhões de anos. Essa incerteza impede que se avalie com precisão o papel dessa espécie no trajeto evolutivo até o Homo sapiens.
Sua aparência também apresenta uma desconcertante combinação de características simiescas e humanas. Os hominídeos adultos eram relativamente esbeltos, com até 1,5 metro de altura e pesando por volta de 45 quilos. Suas pernas eram mais longas e rosto mais caracteristicamente humano do que os de outros hominídeos. As palmas das mãos, polegares, pulsos eram bem semelhantes aos dos seres humanos, e os pés, praticamente indistinguíveis destes.
Por outro lado, seus dedos eram curvados, sendo ainda adaptados a escalar árvores, da mesma forma que os ombros e a pélvis. Além disso, apesar de o crânio apresentar forma humanoide, seu cérebro não era maior do que uma laranja.
Rituais fúnebres?
Um detalhe desconcerta em especial os pesquisadores envolvidos no projeto: o exame do terreno e, sobretudo, a ausência de outras entradas indicam que os 15 indivíduos teriam sido depositados após a morte na quase inacessível Câmara Dinaledi. Isso significaria que o Homo naledi já praticava rituais fúnebres – uma atividade até então considerada exclusiva doHomo sapiens e do Neandertal.
Três tentativas de determinar a idade do achado já foram realizadas, sem sucesso, e a quarta está em andamento. Caso tenha 2 milhões de anos ou mais, esta será a primeira aparição do gênero Homo documentada por mais do que uns poucos fragmentos. Se contar menos de 1 milhão de anos, será preciso repensar toda a evolução humana.
Evolução: corrente trançada, árvore ramificada
Para a antropóloga Tracy Kivell, da Universidade de Kent, a constatação central é que “essa ideia de que temos essa linhagem única, uma linha desde Lucy, indo até o Homo habilis, Homo erectus e até os humanos, simplesmente não é mais uma hipótese viável”, comentou ao site britânico Wired. “A árvore evolutiva é muito cheia de galhos.”
O visionário pai de todo o projeto, o paleoantropólogo Lee Berger, comentou à TV americana CNN estar certo de que “ainda há centenas, se não milhares de restos de Homo naledi” no fundo do complexo espeleológico na África do Sul.
Também para ele a evolução não é linear, e sim “uma corrente trançada”: “A descoberta absolutamente coloca em questão o que nos torna humanos. E eu não acho que ainda possamos dizer que sabemos o que é que torna.”
DW