Aprendiz do Espanto
Thiago de Mello¹
Não deflorei ninguém.
A primeira mulher que eu vi desnuda
(ela era adulta de alma e de cabelos)
foi a primeira a me mostrar os astros,
mas não fui o primeiro a quem mostrou.
Eu vi o resplendor de suas nádegas
de costas para mim, era morena,
mas quando se virou ficou dourada.
Sorriu porque os seus peitos me assombraram
o olhar de adolescente desafeito
à glória da beleza corporal.
Era manhã na mata, mas estrelas
nasciam dos seus braços e subiam
pelo pescoço, eu lembro, era o pescoço
que me ensinava a soletrar segredos
guardados na clavícula.
Pedia já estirada de bruços me chamando,
que eu passeasse meus lábios pelas pétalas
orvalhadas da nuca, eram lilazes,
com as gemas de leve eu alisasse
as espáduas de espumas e esmeraldas,
queria a minha mão lhe percorrendo,
mas indo e vindo, o vale da coluna,
cuidadosa de mim, trés doucement.
Ela me inaugurou o contentamento
inefável de dar felicidade.
Tanto conhecimento só podia
ser de nascença, hoje eu calculo.
Não era um saber de experiências feito,
mas quanta ciência para transmiti-lo.
Ela era de outras águas, a fontana
de trinta anos, que veio lá do Sena
com a sina de me dar a beber
na aurora dos seus olhos, nos seus peitos,
na boca musical, no mar do ventre,
no riso de açucena, na voz densa,
nas sobrancelhas e no vão das pernas –
o mel antigo da sabedoria
de que a libido cresce quando atende,
de que a tesão se acende na ternura,
que as ante-salas se prolonguem vastas
até estar pronto para entrar no céu.
¹Amadeu Thiago de Mello
* Barreirinha, AM – 30 de março de 1926 d.C
Thiago de Mello é o nome literário de Amadeu Thiago de Mello, nascido a 30 de março de 1926, na pequenina cidade de Barreirinha, fincada à margem direita do Paraná do Ramos, braço mais comprido do Rio Amazonas, no meio do pedaço mais verde do planeta: a Amazônia.
O poeta, ainda criança, mudou-se para capital, Manaus, onde iniciou seus primeiros estudos no Grupo Escolar Barão do Rio Branco e o segundo grau no então Gyminásio Pedro II.
Concluído os estudos preliminares mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ingressou na Faculdade Nacional de Medicina. Por lídima vocação, ou por tara compulsiva, como ele prefere, abraçou o ofício de poeta abandonando o curso de medicina para se entregar, por inteiro, ao difícil e duvidoso ( em termos profissionais) caminho da arte poética.
Vivia-se o glamour dos anos 50, num Rio de Janeiro capital do país, ditando para todo Brasil não só as questões de cunho político, mas sobretudo, os eventos artísticos e acontecimentos da produção literária. Hegemonia mantida até hoje mas compartilhada com a cidade de São Paulo e seu efervescente ambiente cultural.
Em 1951, com o livro Silêncio e Palavra, irrompe vigorosamente no cenário cultural brasileiro e de pronto recebe a melhor acolhida da crítica.
Álvaro Lins, Tristão de Ataíde, Manuel Bandeira, Sérgio Milliet e José Lins do Rego, para citar alguns nomes ilustres, viram nele e em sua obra poética duas presenças que, substanciosas e duradouras, enriqueceram a literatura nacional.
“… Thiago de Mello é um poeta de verdade e, coisa rara no momento, tem o que dizer”, escreveu Sérgio Milliet.
O correr dos anos só fez confirmar suas qualidades e justificar os elogios com que fora recebido pela intelligentsia brasileira. O amadurecimento permitiu ao poeta mergulhar profundamente as raízes da sensibilidade e da consciência crítica na rica seiva humana de um povo ao mesmo tempo tão explorado, tão sofrido e tão generoso como o nosso, e sua poesia, sem perder o sóbrio lirismo que a inflamava, ganhou densidade e concentração, pondo-se por inteiro a serviço de relevantes causas sociais.
Faz Escuro, mas eu Canto; A Canção do Amor Armado; Horóscopo para os que estão vivos, Poesia Comprometida com a minha e a tua Vida; Mormaço na Floresta; Num Campo de Margaridas realizam, por isso, a bela síntese do poeta e do homem que jamais se deixou ficar indeciso em cima do muro de confortável neutralidade. O poeta e o partisan eram uma só pessoa, dedicada sem medir esforços ou riscos à luta pela emancipação do homem, tanto dos grilhões que injustas estruturas do poder econômico-político lhe impõem quanto das limitações com que individualismo, ignorância ou timidez lhe tolhem os passos.
A biografia de um poeta assim concebido e a tanto cometido não poderia jamais desenvolver-se num plano de tranqüila rotina. A de Thiago de Mello teve, por isso mesmo, suas fases sombrias e borrascosas, realçada por arbitrária prisão e longo e doloroso exílio da pátria a que tanto ama e serve.
Essas provações, que enfrentou com a serena firmeza de quem as sabe inevitáveis e delas não foge, enriqueceram-no ainda mais como poeta e ser humano. Alargando sua weltanschauung, permitiram-lhe comprovar o acerto de sua intuição de que o geral passa pelo particular e de que, como dizia seu grande colega Fernando Pessoa, tudo vale a pena/ se a alma não é pequena.
No livro mais recentemente publicado, De Uma Vez Por Todas, todas as linhas marcantes de sua poesia, o lirismo, a sensibilidade humana, a alegria de viver, a luta contra a opressão, o amor constante à Amazônia natal se reúnem harmonicamente, num tecido de rara força e beleza. O poeta não escreve seus poemas apenas em busca de elegância formal: neles se joga por inteiro, coração, cabeça e sentimento, e isso lhes dá autenticidade e força interior.
Tradutor, é responsável por versões para a língua portuguesa de T.S. Eliot, Ernesto Cardenal, Cesar Vallejo, Nicolás Guillén, Eliseo Diego e Pablo Neruda.