Ronaldo fenômeno, João Carlos Martins e a resiliência

Por Gilberto Dimentein

O Fenômeno Ronaldo.

O desempenho do jogador nos últimos jogos provocou interesse e gerou especulações de uma vaga na seleção.

NA NOITE da quarta-feira passada, Ronaldo voltava a brilhar com a camisa do Corinthians, enquanto o João Carlos Martins conseguia tocar piano com os dedos da mão esquerda. O jogador com o pé e o pianista com a mão, em ambientes tão distintos, com o barulho do estádio de futebol e a silenciosa sala de concertos, foram cercados pela admiração da plateia. Especialista em educação, o psiquiatra Içami Tima diz que foram mostrados, naquela noite, dois exemplos de resiliência, a capacidade de superar adversidades -a resiliência, na visão dele, deveria ser um dos principais pontos a serem debatidos por pais e professores se quiserem ver a prosperidade de seus filhos e alunos. “Um dos nossos males é a falta de resiliência dos jovens, a fragilidade para lidar com a frustração.”

O desempenho de Ronaldo nos dois últimos jogos do Corinthians provocou um interesse em todo o país, em meio a especulações de que talvez, quem sabe, ele tenha uma vaga na seleção -uma hipótese impensável até poucos dias atrás. Ronaldo sofreu três contusões e, por muito tempo, ficou no limbo, lembrado mais por seu peso ou por escândalos sexuais. Para voltar a mexer os dedos da mão esquerda, João Carlos se submeteu a dolorosas operações. Não faz muito tempo, aquele que era considerado um dos melhores intérpretes perdeu o movimento das mãos e, como Ronaldo, teve seu nome ligado a escândalos -no caso do pianista, a ligação era com verbas escusas das campanhas de Paulo Maluf. Tantas operações e escândalos teriam acabado com muitas carreiras, mas o jogador e o pianista são salvos por um heroísmo pessoal de quem não se deixa abater -apesar de perder as batalhas. Assim, na quarta-feira, João Carlos estava executando a “Heroica”, de Beethoven -um compositor que, apesar de perder a audiência, não perdeu a música.

Para Içami Tiba, a resiliência não é um traço genético, mas um comportamento aprendido, a começar na convivência familiar. Parte dessa percepção se deve à sua herança japonesa. “Entre os japoneses, é normal se falar a palavra aguentar.” A resiliência dos imigrantes e migrantes diminui, porém, quando as novas gerações já nascem cercadas de conforto e a garra se dilui.

Para o psiquiatra, o problema estaria se agravando, com um excesso de indulgência dos pais e educadores. “O pior que um pai poder fazer pelo filho é tentar fazer tudo por ele. Será um adulto fraco e com pouca habilidade de lidar com a frustração.” Volta-se à discussão sobre os perigos da falta de limite.

A psicóloga Rosely Sayão concorda com a ideia de que a resiliência é essencialmente construída. Trabalhando com pais e estudantes, ela tem observado que aqueles que desenvolvem desde cedo a autonomia também são mais resilientes.

“Isso explica as dificuldades de crianças mimadas quando se tornam adultas.” Ela está espantada como muitos educadores nem sequer sabem o significado da palavra resiliência, há décadas um objeto de estudo de psicólogos. Há dez anos, na minha coluna da quarta-feira, tenho falando de pessoas que fazem a diferença na cidade de São Paulo -ou seja, gente que, para chegar lá, apanhou de todos os lados. Um traço óbvio delas é a autonomia precoce. Na semana passada, minha personagem foi Gica Mesiara, nascida na periferia e estudante de escola pública que, para atingir seu sonho de ser paisagista, perdeu o cabelo. “É o meu troféu”, orgulha-se.

Há, na sociedade, um culto ao prazer -e um prazer em tempo real, traduzido em consumo. O aprendizado tanto dentro como fora da escola implica necessariamente desgaste e aborrecimento em nome de um projeto futuro. É mais um entre tantos obstáculos para se combater o abuso com álcool e drogas.

A reverência excessiva ao mundo das celebridades (a maioria delas nunca fez nada que preste) transmite a mensagem de que alguém vale não pelo que faz, mas por quanto aparece.
O resultado aparece, por exemplo, quando os alunos se frustram na universidade, porque, afinal, são obrigados a focar com mais profundidade no assunto. Ou na rejeição a livros e obras de artes mais complexas, que exigem raciocínio. Ou, pior, quando são obrigados a lidar com a disciplina do trabalho.

Entre educadores, imagina-se até que, com truques tecnológicos, se poderia levar o aluno a aprender como se não aprendesse, apenas se divertiria. É algo parecido a supor que se pode perder peso alegremente, sem dieta e exercício. Olhar-se no espelho e sentir o corpo esbelto dá prazer, mas a caminhada, na balança, é um sacrifício.

Prova disso é que, se Ronaldo não se esforçar no treino (e na balança), ele voltará a ser lembrado mais pelo peso do que pelos gols. E deixará de significar qualquer fenômeno.
PS – O termo resiliência foi importado da física pela psicologia -é o poder dos materiais de voltar ao estado natural depois de um choque. É uma área de estudos especialmente valiosa para sociedades que passaram ou passam pela violência. Para entender melhor, selecionei alguns artigos no meu site.

Folha de São Paulo

Share the Post:

Artigos relacionados