‘O extremismo está em declínio’, diz historiador
O historiador e cientista político francês Jean-Pierre Filiu, professor visitante na Universidade Columbia, em Nova York, afirma que vitória de revoluções pacíficas e democráticas em países árabes como Egito e Tunísia é a derrota da al-Qaeda e do movimento jihadista.
“É uma catástrofe para a al-Qaeda. Todas as coisas pelas quais os manifestantes lutam são anátema para os jihadistas: eleições livres, transparência, poder para o povo”, diz Filiu, autor dos livros “O apocalipse do Islã” e “As fronteiras da jihad” (Editora Fayard).
Para o historiador, especialista em jihadismo, a ideia de que o Oriente Médio é refém da alternativa entre as últimas ditaduras e regimes extremistas islâmicos é completamente equivocada. Segundo ele, o extremismo está em declínio.
Filiu acredita que a “pedagogia do pluralismo” de uma coalizão será benéfica para a Irmandade Muçulmana. “Ser minoria faz muito bem à cabeça e ao coração de gente que é um pouco rígida”, diz.
Professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, Filiu, de 49 anos, viveu durante 20 anos no Oriente Médio. Em Nova York, ele trabalha no seu próximo livro, “A revolução árabe: 10 lições sobre o levante democrático”, e atende com um sorriso de alívio os alunos.
“Quando esses meninos me procuravam, eu sentia tanta pena deles, iam passar 20 anos com Mubarak, com a polícia secreta, o medo; agora eles participam da festa nas ruas do Egito.”[ad#Retangulo – Anuncios – Direita]
A outra diferença é que seus colegas não torcem mais o nariz quando Filiu manda os alunos pesquisarem no Facebook.
O que o senhor espera ver no Oriente Médio nas próximas semana e meses? O senhor acredita que o exemplo dado pelo Egito tenha ressonância e se repita em outros países da região rapidamente?
O que acontece sempre que você está diante de um momento histórico é que nada do passado pode ser usado para interpretar ou analisar o que é radicalmente novo. Não acredito em efeito dominó. A comparação com a queda do Muro de Berlim em 1989 não é válida, porque ali havia um comando central, a União Soviética, e o fato de que a União Soviética estava se desmantelando levou mecanicamente à liberação de todos aqueles países.
No caso atual, temos a sociedade civil confrontando o regime, com uma coragem incrível, e temos um processo de emulação. As duas revoluções, na Tunísia, e no Egito, têm um enorme poder de emulação porque o medo foi derrotado, e o povo descobriu que aquilo com o que sonhava é possível.
São eventos de uma magnitude tal que serão sentidos em toda a região, mas isso não significa que a cada semana, ou a cada mês outro regime cairá. O que é certo é que se trata de uma nova era, e nesta nova era os governantes sabem que o tempo de impunidade absoluta acabou.
Olhando para o futuro, o senhor vê candidatos a presidente surgindo com força, como Amr Moussa, que anunciou sua renúncia da presidência da Liga Árabe ou o prêmio Nobel Mohamed ElBaradei? O senhor acha que os partidos de oposição conseguirão se organizar a tempo para a eleição?
Não devemos olhar para isso com olhos do passado. A era dos líderes salvadores terminou. Esses jovens não querem um líder, um modelo.
Mas alguém terá que assumir o poder, não?
Este problema é nosso, não deles. Nosso problema, nossa ansiedade, é ver alguém no lugar de Mubarak. Os egípcios não estão nem aí. Eles não fizeram esta revolução para substituir um Mubarak por outro. Se não entendermos esta mensagem, estaremos interpretando o movimento de uma maneira totalmente errada.
Se houver pressa em chegar a uma conclusão de que agora é ElBaradei ou Moussa, corre-se o risco de cair nos mesmos erros do passado. Temos que entender que essa geração é jovem não apenas porque usa o Facebook ou o Twitter, ela é jovem porque não quer um pai que diga a ela o que é certo e o que é errado. A questão mais importante, para eles, certamente não é ter um líder.
Tudo tem que ser reconstruído. Vai levar muito tempo, não se constrói um partido político ou um sindicato num piscar de olhos, nem mesmo uma ONG. Eles querem imediatamente o fim do estado de emergência, que gera vulnerabilidade a todos.
Mas não estão correndo para encontrar um salvador. Eles estão sendo muito maduros, querem antes desmanchar esse aparelho de repressão. Para eles, o mais importante é a eleição para o Parlamento, não o voto para presidente. É fascinante ver como essa pressa vem de fora, não de dentro do Egito.
Um dos motivos pelos quais os países ocidentais têm pressa é o medo que o extremismo cresça no Oriente Médio. Mas o senhor escreveu que a vitória de movimentos pacíficos na região vai desestabilizar a al-Qaeda, certo?
Fernanda Godoy/O Globo
É uma catástrofe para a al-Qaeda. Em primeiro lugar, porque o movimento pela democracia é um sucesso, e eles são um fracasso. O que a al-Qaeda conseguiu em 20 anos? Nada. Pior do que nada: conseguiu guerra civil no Iraque, guerra civil no Paquistão, ocupação prolongada no Afeganistão.
Do outro lado, um movimento pacífico, sem motivação islâmica, sem bandeira verde, e, em menos de um mês, o ditador caiu. Em segundo lugar, todas as coisas pelas quais os manifestantes lutam são anátema para os jihadistas: eleições livres, transparência, responsabilidade dos governantes, poder para o povo. A al-Qaeda está tão chocada que não consegue dizer uma palavra, e, quando diz algo, é terrível.
O braço iraquiano da al-Qaeda divulgou um comunicado no dia 8 de fevereiro insultando os manifestantes egípcios, por “adorar os ídolos podres do patriotismo e da democracia infiel”. Eles não podem estar mais fora de contato com a realidade. Eles sempre disseram que esses regimes não importavam, que eles tinham que atacar o inimigo distante, o World Trade Center, para desestabilizar o Egito ou outros países.
E aqui temos uma revolução feita pelo povo, genuinamente local, dizendo ao Ocidente: “Não interfiram, não estamos pedindo sua ajuda.” Esse movimento tem um grande potencial para amizade e até aliança com o Ocidente. Ele é o oposto do jihadismo, e funcionou. Mas não dou a al-Qaeda por terminada, eles mostraram capacidade de se renovar muitas vezes.
Depois do sucesso da revolução, se esses governos eleitos livremente trouxerem melhores condições de vida às pessoas, o extremismo ficará mais debilitado?
Precisamos prestar atenção em duas coisas: o jihadismo está em alerta e vai aproveitar qualquer oportunidade para se relançar. A oportunidade para eles é a repressão, é um banho de sangue. Eles podem tentar provocações, como o assassinato de um líder de um movimento democrático que provocasse uma dinâmica de confronto. Agora é o momento de deter esse tipo de provocação contra-revolucionária, porque isso poderia abrir um ciclo de violência que poderia botar o processo democrático em risco.
E a Irmandade Muçulmana?
A Irmandade Muçulmana sabe que tem que ser uma aliada da coalizão. A questão não é apenas paz versus violência. A questão é a pedagogia do pluralismo. Ser minoria faz muito bem à cabeça e ao coração de gente que é um pouco rígida. Numa coalizão você tem que negociar e se dá conta de que não é o dono da verdade.
Abaixo da superfície, a Irmandade é muito diversificada, e, no momento em que entrar numa coalizão, a diversidade dessas cores vai aparecer. É claro que haverá tensões, mas, se o processo evoluir bem, essa tendência democrática dominará a radical. O modelo é a Turquia, que obteve sucesso nessa processo.
Por que o senhor acha que ouvimos, durante os 18 dias de protestos, tantas expressões de preocupação e de medo no Ocidente, e não tantas de esperança? Na sexta-feira, o chanceler de Portugal, Luís Amado, disse na ONU que a Europa deveria se preparar para um Egito islamizado, e aceitar isso sem medo.
A ideia de que a alternativa é entre autoritarismo e islamização é completamente errada. Já estamos no pós-Islã. Mas como estamos sempre atrasados, muitas pessoas estão dizendo, com boas intenções, que, afinal de contas, a islamização não é tão má, mas essa não é a questão! Acabou! O problema do debate sobre o Islã no Ocidente é tão marcado por clichês e preconceitos. As pessoas misturam tudo: o véu, a política, sharia, tudo. No mundo muçulmano, as pessoas querem ter mais Islã em suas vidas: comida islâmica, banco islâmico, um monte de coisas, mas isso não significa que queiram um governo islâmico.
Foi positivo para o movimento que a vitória não tenha dependido de ajuda externa?
Claro. A atitude ideal para quem está de fora é uma neutralidade benevolente, mas tem que ser benevolente.
E talvez a contribuição mais importante do Ocidente tenha sido pressionar o Exército para que não houvesse uma repressão violenta, não?
Sim, e a mesma coisa aconteceu na Tunísia. Mas isso não é interferência, é abrir o campo das possibilidades. Não é mandar um avião para retirar Mubarak, como já aconteceu no passado. De qualquer forma, estamos no amanhecer de algo muito diferente. Seja graças aos EUA ou não, para esses ditadores o jogo acabou.
O fato de que essa geração tem acesso à mídia ocidental, de que as pessoas tenham ficado felizes com a cobertura, tenham beijado e agradecido a repórteres de emissoras americanas nas ruas, isso muda algo na relação com o Ocidente?
O ambiente é muito positivo, porque houve neutralidade e houve empatia. Em segundo lugar, porque houve um eco do que foi mostrado no Ocidente pela mídia, que fez um trabalho maravilhoso. Mas não somos o centro do mundo. O que a mídia ocidental fez é o que a Al Jazeera vem fazendo há dez anos.
Os herois das ruas árabes, os que são festejados e protegidos pelos manifestantes são os repórteres da Al Jazeera. São eles que estão na vanguarda. Mas o potencial para amizade é enorme. Hospitalidade é a chave para esses países. O conceito de xenofobia é totalmente estranho à essa civilização, é uma cultura da generosidade.
O senhor acha que a Argélia é agora o país mais vulnerável?
Acho que a Argélia é a chave para muitas questões, porque foi na Argélia que parte dos sonhos que vemos hoje foi enterrada com um banho de sangue. A ideia de alternativa entre ditadura e islamização vem da suspensão do processo eleitoral na Argélia, em janeiro de 1999. Argélia é a chave para mostrar que outro futuro é possível, diferente dessa alternativa terrível. É isso o que os manifestantes na Argélia estão dizendo.
Mas, quando um regime é capaz de sobreviver quase intocado a um pesadelo desses, é claro que ele tem muita capacidade de se regenerar e cooptar. O Iêmen vai ter que se ajustar, e o presidente já disse que não vai concorrer de novo. A ideia de transmissão de poder de pai para filho acabou em todos os lugares.
Na Jordânia, a demanda principal é ter um primeiro-ministro escolhido pelo Parlamento, não pelo rei. E a Líbia está ansiosa, mas é um país tão opaco, nunca se sabe. Mas, com certeza, entre e o Egito e a Tunísia, eles não estão conseguindo dormir.
Fernanda Godoy/O Globo