A democracia é um exercício difícil e permite que o contraditório se estabeleça. A divergência de opinões e conceitos, bem como visões diferentes em questões científicas, sempre foi o grande motor do desenvolvimento social em seu mais amplo espectro.

Contudo, serve também para que os intolerantes a usem para manifestar seus mais baixos instintos e desvios de condutas.

Blogueiros viram ‘saco de pancada’ e reclamam de valentões da internet

Falsa sensação de anonimato gera xingamentos e até ameaças.
Se comentários passarem dos limites, blogueiros podem entrar na Justiça.

O dono do terceiro blog mais lido do mundo cansou. Depois de três anos escrevendo sobre novas empresas e serviços de tecnologia, uma ameaça de morte e uma cuspida na cara, Michael Arrington, co-fundador do TechCrunch, decidiu dar um tempo do site.

“Escrevemos sobre tecnologia e empreendedorismo. São coisas importantes, mas não tão importantes para nos fazerem temer pela nossa segurança e a de nossas famílias”, afirmou o blogueiro em nome de todos os contribuintes da página. Apesar de seu afastamento, o TechCrunch continuará sendo atualizado.

O fato de alguém desistir da blogosfera depois de chegar ao topo do Technorati, um site com a lista dos blogs mais acessados, indica que a pressão para quem está lá em cima não é pouca. E, como mostra o desabafo de Arrington, ela vem principalmente dos leitores: pessoas que muitas vezes não economizam na agressividade e apelam até para ameaças quando discordam do blogueiro — esteja ele envolvido com temas polêmicos ou com amenidades.

Arrington afirmou ter se tornado alvo de empresas iniciantes que não recebem a atenção desejada, além de jornalistas e blogueiros concorrentes que acusam o TechCrunch “das coisas mais ridículas”. “Responder a essas acusações não vale nosso tempo: sempre achei que nosso trabalho e integridade iriam dar a resposta para tudo isso. Mas conforme crescemos e conquistamos mais sucesso, os ataques também cresceram”, contou.

No início de fevereiro, o autor de novelas Aguinaldo Silva fez um desabafo nesse mesmo tom em seu blog. “Dou aqui o meu melhor. Procuro não apenas agradar a quem me lê, mas dar informações, provocar debates, fazer pensar (…). E o meu modo de pensar, limpo e cristalino, está exposto aqui. Em troca dessa exposição, dessa sinceridade toda, o que recebo? Chutes na bunda. Agressões as mais deslavadas, e o que é pior: de pessoas que nem sequer existem! Pois em geral, todos os que entram aqui com propósitos deletérios tratam antes de resguardar com o maior cuidado suas identidades: são todas falsas.”

No post, o coautor de “Roque Santeiro”, “Vale Tudo” e autor de “Duas Caras” afirma ter questionado se valia a pena manter a página, recebendo resposta negativa de seus amigos. Depois, ele concluiu: “vou desistir do blog? Pra deixar esse bando de zé ruelas feliz da vida? Mas nem morto!”

Ciberbullying

Juliana Carpanez – do G1, em São Paulo

Erick Itakura, pesquisador do Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática da Pontifícia Universidade Católica (PUC), classifica a agressão na blogosfera como um tipo de ciberbullying — o termo define um comportamento agressivo e repetitivo adotado contra alguém no universo virtual, mesmo sem motivação aparente.

“O blogueiro exerce o direito dele de liberdade de expressão. Mas muitos leitores se incomodam e acabam querendo impor outras verdades”, afirmou o especialista, lembrando que a sensação de anonimato existente na internet facilita esse tipo de ação.

Segundo Itakura, as reações extremas na blogosfera acontecem quando alguém tem dificuldades em lidar com os sentimentos provocados pelo conteúdo postado – seja ele raiva, frustração, inveja ou admiração. “A agressão mostra que, de alguma forma, as informações tocaram a pessoa e ela não soube lidar com isso. Às vezes é mais fácil o leitor enxergar um defeito no blogueiro, que se expõe, do que nele mesmo.”

Ameaças

Rosana Hermann, 51, passou por uma situação parecida com a relatada pelo co-fundador do TechCrunch. Hoje dona do Querido Leitor, ela já chegou a fechar um blog e sair do país com a família, depois de receber uma ameaça no estilo “sei onde seus filhos estudam”.

Em outra ocasião, pagou um advogado até conseguir quebrar na Justiça o sigilo de um leitor definido por ela como “o clássico covarde na vida real, que se torna o bam-bam-bam atrevido sob o manto do anonimato”.

No segundo caso, após quebra de sigilo, ela acabou conversando com esse leitor pelo telefone — ao identificar seu perfil, Rosana acabou desistindo do processo. O homem tinha 42 anos, era um administrador de empresas desempregado, morava com os pais, era separado e justificou os meses de perseguição à blogueira dizendo que queria ser como ela.

Depois de quase dez anos na blogosfera, Rosana diz que sua reação à agressão dos leitores depende de seu estado de espírito. “Quando vejo que a pessoa realmente só quer atenção, ignoro. Quando acho que existe alguma chance de trazê-la para a ‘luz’, comento no blog. Mas aí os outros leitores reclamam, dizendo que só dou atenção para quem me ofende”, contou em entrevista ao G1.

Se o comentário feito pelo internauta for mais “pesado, patológico ou perigoso”, ela o repassa a seu advogado, para que ele tome medidas legais.

O advogado Marcel Leonardi, especialista em direito digital, não vê problemas quando as críticas feitas em um blog são dirigidas ao conteúdo postado, e não à pessoa – nestes casos, eles diz que o debate é válido e está dentro dos limites da liberdade de manifestação de pensamento. No entanto, quando o leitor passa a ofender o blogueiro pessoalmente e vice-versa, pode-se cogitar os crimes de calúnia, injúria ou difamação.

Se isso acontecer e o blogueiro quiser entrar com uma ação judicial, Leonardi aconselha a não apagar o comentário. A informação preservada permite descobrir, com auxílio da Justiça, o endereço IP de quem publicou o texto. Assim, é possível identificar o responsável pela ofensa e tomar as medidas cabíveis.

Opinião

O jornalista Vitor Birner, 40, diz ser diariamente agredido nos comentários postados no Blog do Birner, uma página para fãs de futebol. “Há várias formar de agressão. O leitor mente a meu respeito, diz que falei o que não falei, fiz o que não fiz, penso o que não penso. E eu aprovo os comentários na gigantesca maiorias das vezes, por achar que as pessoas devem mostrar quem são”, contou ao G1. Segundo ele, também há muitas colocações interessantes, de pessoas inteligentes em sua página. “O blog é um local de informação e opinião. Ter de tudo faz parte.”

No mesmo endereço virtual desde 2007, Birner geralmente releva as agressões. No entanto, confessa que vez ou outra tem “seus dias” e responde às provocações deixadas na página. “Quando dizem que manipulo as informações, recomendo que não voltem ao meu blog. Se não acreditam no que escrevo, não devem perder seu tempo precioso de vida comigo.”

A estratégia de Renê Fraga, 25 anos, é tentar entender os leitores do Google Discovery — mesmo aqueles mais agressivos. Ele diz sempre tentar oferecer um espaço para que o usuário da página expresse suas idéias.

“O trabalho do blogueiro é público e estamos envolvidos com diferentes tipos de pessoas. Por isso, é sempre importante manter uma conversação entre todos os envolvidos na blogosfera, respeitando suas opiniões”, defende.

Sem comentários

Já o Te Dou Um Dado?, com informações sobre o universo das celebridades, adota a direção oposta. A página criada por três blogueiros em abril de 2007 era aberta para comentários, mas com o tempo eles foram fechados. “Como a voz do povo definitivamente não é a voz de Deus, acabamos com essa história”, contou Ana Paula Barbi, a Polly, uma das criadoras do site.

A falta de espaço para comentários não impede, no entanto, que pessoas dispostas a agredir mandem e-mails para os blogueiros, muitas vezes com endereços falsos. “Quando ficaram sabendo que sofri uma parada respiratória, choveram mensagens. Mas o número de e-mails desejando melhoras foi infinitamente maior do que os xingando e celebrando minha quase-morte.”

Polly garante nunca se ofender com esse tipo de agressão, alegando que as pessoas não sabem xingar direito. “Elas não são criativas. É sempre aquela história de ‘você é gorda’. Poxa, jura? Valeu o toque, nunca tinha reparado”, ironizou a blogueira. “Grande parte desse recalque vem de uma vontade enorme de ser igual a nós. A pessoa queria muito ter um blog legal, mas não consegue e então apela para a agressão”, continuou, ecoando a explicação do psicólogo Erick Itakura.

Juliana Carpanez – do G1, em São Paulo

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