Você violaria a lei mesmo ocupando um cargo com um salário de 500 mil por mês, como gerente da maior companhia de esterco do mundo? Pergunta o diabo.
Se olharmos o fato racionalmente, pelas lentes do neodarwinismo e da neurociência, a resposta é “não!”. Prevalece, diz o interrogado, a minha isenção em relação às propinas e ofertas fora da curva. Fico preso ao meu cargo. E, tal como um ator de novela, eu seria devotado ao meu papel.
Mas, continua o diabo, e se o diretor da peça por ambição, ideologia, incompetência e mediocridade entender que o drama, digamos, uma comédia tivesse que virar uma tragédia e, para tanto, embaralhasse o texto da peça?
Nesse caso, insiste o demo, você toparia deixar de lado a isenção devida ao papel e ao enredo, embolsando, além do seu maravilhoso salário, imensas fortunas recebidas “por fora”, recursos adicionados a, por exemplo, uma refinaria de esterco em construção?
Ou seja, você diria um “não” ao seu compromisso moral com a empresa e toparia ter uma invejável conta bancária, uma cobertura em Ipanema e uma offshore num paraíso fiscal socialista? Além de garantir uma vida de nobre para seus filhinhos?[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”]
Bem, nesse caso — pondera o interrogado pigarreando —, sabedor do objetivo de sabotar a peça e compreendendo que o esterco é matéria valiosa e procurada, eu começaria a duvidar.
Como assim?
Eis um dado crítico. No nosso país, a isenção não é apenas uma questão de seguir uma lei e honrar um cargo. Ela varia de acordo com quem você se enturma. Se o aval para abandonar a isenção ética vem de um adversário, surge a letra da lei; mas se ele vem de um companheiro — eu, como a grande maioria, faço de tudo! A regra legal será dispensada e englobada por um outro tipo de ética. Pois, neste caso, a dominação patrimonial ou carismática, fundada na ética da tradição familiar e do dar e receber, neutralizaria a esfera burocrática, justificando a tentação da falcatrua. A lei se curva diante dos amigos. Ademais, ela é, por natureza, desigual, pois protege quem ocupa certos cargos.
Então — insiste satanás, que está na lista dos 50 a serem investigados — nessas circunstâncias, a não isenção da isenção é uma norma?
Sim, porque o sistema atua por meio de múltiplas éticas e cada cargo ou pessoa as invoca em momentos e circunstâncias diferenciadas.
Então, ficar isento é impossível? Conclui o demônio.
Não, mas é recomendável. Como aquele famoso personagem da “Montanha Mágica”, de Thomas Mann, o campo chamado de “político” no Brasil, se caracteriza pelo hábito da falta de hábito. Deste modo, o bom político, como o bom malandro, tem como referência o velho Pedro Malasartes: ele não é isento porque ele segue a ética de jamais ser isento. O malandro, você conhece isso muito bem, só é honesto por malandragem!
Como acreditar em isenções se o Executivo aparelhou a até não mais poder todo o sistema, inclusive o Judiciário? Em quem acreditar ou confiar eis a questão?
Sobrou o Legislativo, que entra em conflito com o Executivo por falta do que um sensível político nordestino (eles são craques…) chamou falta absoluta de gosto pela “pequena política” abominada pela presidente.
Como seguir normas, prosseguiu o interrogado, num sistema também legitimado pelo patrimonialismo e, nele, pelas simpatias pessoais que cruzam todas as fronteiras debaixo de uma ética de simpatias, afinidades e favores? Tudo isso que somente agora, devido ao tamanho do escândalo, começa a ser politizado por via jurídica, no Brasil?
Realmente, diz o cão, num mundo de barões que, no entanto, amam a legitimidade da jurisprudência teológica lusa, o dono (ou dona) do país tem que aparar arestas. Se não se faz esse papel, o sistema entra em crise. Ele emperra não por uma ausência de ética, mas pela invocação de todas elas simultaneamente.
O diabo afirma: Lula foi capaz de governar embaralhando todas as isenções. Usou todas as éticas e hoje acena com a força bruta. É dessa liberdade sem freio, herança de um viés escravocrata e aristocrático, que faz nascer essa insuportável ambiguidade política na forma de populismo e demagogia. Delas resulta não um povo governado, mas possuído (ou patriarcalmente “cuidado”) numa perversão da democracia. Dilma, porém, não consegue se comunicar…
Mas eu quero confessar! Explodiu o interrogado. Eu roubo em nome do partido para ajudar o povo pobre.
Então, arrisca satanás, a corrupção se legitima em nome de uma causa maior. Mas como jogar se os times se confundem e não há isenção? Se empresas importantes foram sujeito e objeto de acordos escusos com o governo? E a parte lúcida do estádio clama por normas sem as quais não há vida civilizada?
Os exércitos acionados por Lula já destruíram um centro de pesquisa convocando ao palco o mais tenebroso ator da política: a violência. Com ela, e disso eu entendo! — advertiu o diabo —, não há isenção ou salvação!
Por: Roberto da Matta, Antropólogo