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Como universidades podem dar a presos acesso à educação

Mais da metade da população carcerária brasileira é formada por jovens entre 18 e 29 anos de idade Dos mais de 700 mil presos no Brasil, 75% estudaram apenas até o ensino fundamental. Um ex-detento do Carandiru, hoje professor da USP, e uma de suas alunas dão exemplos de como universidades podem mudar esse cenário. Desde os anos 2000, o professor Roberto da Silva, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), tenta aproximar a a maior universidade pública do Brasil da população privada de liberdade. Em suas pesquisas, o educador se ocupa da formação de professores e da produção de material didático apropriado para o ensino formal em presídios e na Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente). Ele já ganhou nove prêmios em reconhecimento aos seus esforços para promover educação para presos e recentemente participou da publicação do livro Didática no Cárcere (Editoria Giostri, 2018). “Estou empenhado em fazer a USP assumir a responsabilidade pela educação nas prisões que estão no seu território de influência, São Paulo capital, onde há cerca de 10 mil presos, entre adolescentes, mulheres e homens”, conta Silva. Uma das iniciativas já promovidas pelo professor foi a a de levar adolescentes internos da Fundação Casa para frequentarem aulas na USP junto com os alunos regularmente matriculados nos cursos da universidade. Escoltados, os adolescentes assistiam aulas duas vezes por semana. O educador conta que os menores eram participativos dentro da sala de aula, onde eram incentivados a estudar. Mas muitos abandonavam os estudos depois que saíam da Fundação Casa por motivos como ter que trabalhar para ajudar na renda familiar. Professor da USP desde 2009, Silva só pôde concluir o Ensino Médio aos 30 anos de idade, já que passou pelo menos 16 anos de sua juventude na Fundação Casa e na Casa de Detenção de São Paulo, o extinto Carandiru. Depois de ser condenado a 36 anos de prisão na década de 1970, Silva começou a ver a própria vida mudar quando conseguiu um trabalho no setor administrativo do Carandiru. Além de diminuir a pena para um quinto, o trabalho o colocou em contato com a leitura. “Como eu tinha acesso aos prontuários, comecei a ler esses documentos e a conversar com os presos a respeito da situação deles, tentando ajudá-los com informações sobre seus casos”, lembra. Para conseguir orientar os colegas, Silva buscava o apoio de estudantes de Direito da USP que desenvolviam trabalho de extensão universitária no Carandiru e enviava cartas para editoras e professores pedindo livros e assinaturas de jornal. “Comecei a ler praticamente tudo que me caía nas mãos: Filosofia, Ciência Política, Teologia, etc”, lembra. “A partir da leitura, comecei a querer saber quem eu era, qual era o meu potencial, e entender minha condição de condenado, se era mesmo criminoso como a Justiça e a polícia afirmavam que eu era.” Em 1984, após mais de dez anos na prisão, ele foi solto. “Apesar do conhecimento que adquiri na cadeia por conta própria, saí dali com a mesma escolaridade que entrei, porque educação de detentos não era preocupação de nenhum setor da sociedade”, afirma, contando que até os 28 anos, idade com que saiu da cadeia, tinha estudado somente até a 5ª série do antigo 1º grau. Em 1993, Silva foi aprovado no vestibular de Pedagogia da Universidade Federal do Mato Grosso. Em 1998, tornou-se mestre em Educação; e em 2001, doutor. Todos os títulos foram obtidos pela USP, com pesquisas sobre como a educação pode ajudar a recuperar presos e menores infratores. Nível educacional e prisões O Brasil tem a terceira maior população encarcerada do mundo, com cerca de 727 mil pessoas presas, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). O número equivale aproximadamente à população de cidades como João Pessoa, na Paraíba, ou Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Menos de 1% dessa população tem graduação, enquanto 75% não chegaram ao ensino médio. Mais da metade, 55%, são jovens entre 18 e 29 anos de idade. Para lidar enfrentar o problema do baixo nível educacional da população encarcerada no Brasil, em 2010, o Governo Federal estabeleceu o Plano Estadual de Educação em Prisões, para o qual os estados tiveram de elaborar projetos de expansão da oferta de educação de seus presídios. “Porém, o que existe são apenas diretrizes do Ministério da Educação. Não há projetos sérios de educação formal nos presídios”, afirma Patrick Cacicedo, defensor público do estado de São Paulo. “O que existem são apenas atividades informais, em grande parte por iniciativa dos próprios presos, que repassam aos demais algum conhecimento ou ofício que possuem, assumindo a figura do preso-monitor.” Ex-detento do Carandiru, o professor da USP Roberto da Silva pesquisa como a educação pode ajudar a recuperar presos e menores infratores Na contramão do Plano Estadual, em 2017 o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária retirou a obrigatoriedade dos presídios de terem tanto áreas de serviço, como lavanderia e cozinha, quanto escolas e espaços de ensino. “Segundo essa atual política, para um presídio ser inaugurado, basta ter celas e um número mínimo de agentes penitenciários. Pouco importa se há uma equipe mínima de saúde, educação ou assistência social no local”, afirma Cacicedo. A média nacional de presos que estudam nas unidades prisionais é de apenas 13% e, isso quando se contabilizam atividades de leitura como sendo atividades de estudos. Cacicedo chama atenção para o fato de que os estados que vivem grandes crises carcerárias são os que têm presos com atividade educacional quase nula. “No Rio Grande do Norte, onde está a Penitenciária de Alcaçuz, por exemplo, apenas 2% dos presos participam de alguma atividade educacional”, diz. Em janeiro de 2017, a Penitenciária de Alcaçuz viveu uma das maiores rebeliões de presos do Brasil, que resultou em 26 mortes. Exemplo na Paraíba Em 2013, a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) inaugurou o primeiro campus universitário dentro de um presídio, o Campus Avançado do Complexo Penitenciário de Serrotão, em Campina Grande. Com o objetivo de oferecer educação e ensino técnico aos mil detentos e cem detentas do Complexo de Serrotão, o Campus Avançado da UEPB tem

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De faxineira à advogada: um exemplo

‘Fico pensando em leis enquanto limpo privadas’: a advogada que virou faxineira em São Paulo Rosana da Silva exibe um pedido de emprego todos os dias na Vila Mariana, bairro da zona sul de São Paulo | Foto: Leandro Machado/BBC Brasil Todos os dias, a advogada Rosana da Silva, de 54 anos, senta-se em um banquinho de plástico em um cruzamento da zona sul de São Paulo e levanta uma placa de papelão com um anúncio: “Faxina. Sete horas. R$ 60.” Há quem pare e olhe, curioso. Há quem tire fotos e publique nas redes sociais ou anote o número dela para um serviço futuro. Mas a trajetória de Rosana é mais complexa do que o pedido público de emprego: ela era secretária, trabalhou para pagar a faculdade de Direito e formou-se advogada, mas entrou em uma derrocada que a levou às ruas e à faxina. “Quando conto minha história às pessoas que me contratam, a frase que mais ouço é ‘não acredito’”, diz ela, sentada na esquina. “Ou acham que sou doida, e não existe nada pior do que ser considerada doida”, acrescenta. Fracasso profissional Ela se formou em Direito em 1995 na Unifieo, uma universidade particular em Osasco, na Grande São Paulo. Pagou o curso com seu salário de secretária, com a “dureza de gente pobre”, nas palavras dela. Em seguida, conseguiu seu registro na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) com a inscrição 139416, número que ela cita de cor dez anos depois de ter abandonado a carreira. Os primeiros passos como advogada foram em um pequeno escritório que montou com amigos da faculdade. Depois, conseguiu entrar em uma banca de colegas renomados da área de Direito bancário, no centro da cidade. Rosana conta que foi esse trabalho que fez girar a espiral que a levou ao fracasso profissional. “Nesse escritório, eu sofri assédio moral por parte dos dois donos. Me humilhavam: imagina você ser chamada de burra o tempo todo, de incompetente, de drogada. Foram três anos”, afirma. Ela diz que nunca usou entorpecentes. Rosana da Silva está há dez anos sem pagar a anuidade da OAB, o que a impede de retomar a carreira | Foto: Reprodução/OAB-SP Rosana prefere que os nomes dos dois advogados não sejam citados nesta reportagem. Diz que processou os antigos patrões e que fez representações contra eles na comissão de ética da OAB-SP, mas nunca conseguiu vencer os processos. Ela costuma carregar a papelada de algumas ações em sua mochila – tem medo de que eles desapareçam. Procurada pela reportagem, a OAB-SP afirmou que não comenta casos que correm em sigilo. Depois da publicação da reportagem, a instituição procurou a BBC Brasil informando que irá incluir Rosana em um programa de assistência financeira e médica a advogados que passam por dificuldades. ‘Todas as portas fechadas’ Rosana nasceu em Itanhaém, no litoral paulista, mas foi criada por parentes, longe dos pais. Sempre viveu praticamente sozinha e só retomou contato com um dos irmãos depois que ele viu uma foto sua na internet, há pouco mais de um ano. Ela nunca mais conseguiu um trabalho como advogada depois que saiu de seu último escritório. Hoje, acredita que foi perseguida pela OAB, onde seus patrões tinham influência, diz. Nada que Rosana fazia dava certo – tentou dar aulas, mas também foi demitida. “Em São Paulo, o mundo do Direito é muito pequeno. Você fica conhecida como a pessoa que processou os patrões, suas chances diminuem”, conta. Ela resolveu se mudar para Florianópolis, pois não encontrou emprego nem apoio em sua família adotiva. “Pensei: será que não estou tornando um problema pequeno em algo muito grande?”, conta a advogada, que chegou a passar em psicólogos para entender porque sua carreira não deslanchava. “Achei que, se eu saísse de São Paulo, talvez conseguisse me reerguer.” Mas ela não conseguiu. O dinheiro acabou, o aluguel acumulou e Rosana foi viver nas ruas, onde ficou por sete anos. Começou as faxinas para conseguir comer. “Não sobrou mais nada para mim porque a sociedade fechou todas as portas”, diz. ‘Morro de fome, mas pago o aluguel’ Rosana precisa fazer dez faxinas de R$ 60 para conseguir pagar o aluguel do quarto onde mora, na zona sul de São Paulo | Foto: Leandro Machado/BBC Brasil Viver nas ruas não é algo de que Rosana se orgulha – ela costuma dizer perdeu sua cidadania quando deixou de ter um endereço fixo. “Como conseguir um emprego se você diz que tem 54 anos e não mora em lugar nenhum? As empresas têm uma cartilha de desculpas para não te contratar.” Foi por isso que ela criou a placa com o anúncio. Com ela, elimina-se qualquer questionamento sobre seu histórico – Rosana torna-se apenas mais uma pessoa em busca de trabalho. Ela cobra R$ 60 por sete horas de limpeza – um preço baixo no centro expandido de São Paulo. O piso mensal dos trabalhadores domésticos na cidade é de R$ 1.140 por três dias de trabalho semanais, segundo o sindicato da categoria. Segundo os últimos dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes ao trimestre que compreende os meses de setembro, outubro e novembro de 2017, o índice de desemprego no Brasil está em 12% – o que equivale a 12,6 milhões de pessoas. Rosana precisa fazer ao menos dez faxinas por mês para conseguir pagar o aluguel de um quartinho com cama, fogão e geladeira. Tem meses que não consegue – seu irmão costuma ajudá-la. “Eu morro de fome, mas pago o aluguel. Não volto para a rua de jeito nenhum”, diz. Esse medo se justifica: ela conta já ter enfrentado episódios de assédio e tentativas de estupro – uma vez, por exemplo, um homem invadiu a barraca onde dormia com uma arma, conta. “Na rua, o homem te enxerga como propriedade”, afirma. “Ele diz: ‘como assim você está nessa situação e não quer nada comigo?’ Cara, porque ninguém entende quando uma mulher decide viver sozinha?” Outra dificuldade é escapar de uma rotina de violências e

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