A “espertocracia” educacional

Machado de Assis, mulato, gago e epilético, um dos maiores ilustrados e respeitados cultores da língua pátria, conseguiu de forma exemplar unir o erudito ao popular. Em seus irretocáveis escritos, ensinava que a democracia deixa de ser uma coisa sagrada quando se transforma em “espertocracia”, o governo de todos os feitios e de todas as formas”.

Por: Gaudêncio Torquato ¹

Já de Rui Barbosa, pequena estatura, advogado, diplomata, político e jornalista, cujo nome está inscrito nos anais da história do Direito internacional, pode-se extrair uma singela lição de seu celebrado patrimônio intelectual: “a musa da gramática não conhece entranhas”.

Pois bem, esses dois curtos arremates dos renomados mestres de nossa língua escrita e falada vêm a calhar nesse momento em que a perplexidade assoma ante a barbaridade patrocinada pelo Ministério da Educação, sob a forma de uma “nova gramática”, cuja autora assim ensina: “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”, como frase adequada à linguagem oral, está correta ao ser usada em certos contextos.

Para o grande Rui, a letra da gramática não entra em curvas e evita estratagemas. Já o aforista Machado puxa a orelha dos “espertocratas”, aqueles que bagunçam ao escrever da forma como falam, usando todos os feitios e formas. E arremata de maneira cortante: “a primeira condição de quem escreve é não aborrecer”.

Aborrecimento é o que não falta, quando vemos “sábios pareceristas”, contratados pelo MEC, exibindo o argumento: seja na forma “nós pega o peixe” ou na forma “nós pegamos o peixe” -, o pescado estará na rede. Se assim é, ambas estão corretas.

Para dar mais voltas no quarteirão da polêmica, a Pasta da Educação alega que não é o Ministério da Verdade.

Donde se conclui que um doidivanas qualquer, desses que se encontram no feirão das ofertas gramaticais estapafúrdias, pode vir a propor um texto sobre a história do Brasil, sem nexo, com figurantes trocados e português estropiado. Basta que receba o “imprimatur” de outra figura extravagante, que seja docente de língua portuguesa, para ser adotado nas Escolas.

Com esse arranjo, o pacote educacional tem condições de receber o endosso da instância mais alta da Educação no país para circular nas salas de aula. Esse é o caminho percorrido pelo acervo didático que faz a cabeça da estudantada.[ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

Analisemos as questões suscitadas pela obra “Por uma Vida Melhor”, a começar pela indagação filosófica que se pinça do título da série.

Terá uma vida melhor o estudante a quem se obriga a aprender em uma gramática alternativa, onde a “norma popular” se imbrica à “norma culta”? Ou, para usar a expressão da professora Heloisa Ramos, autora do livro, sofrem os alunos que escrevem errado “preconceito linguístico”?

Primeiro, é oportuno lembrar que, mesmo concordando com a hipótese de que a língua é um organismo vivo, evolutivo, não se pode confundir uma coisa com outra, a norma oral com a norma escrita. Cada compartimento deve ser posto em seu devido lugar.

Quem troca uma por outra ou as junta na mesma gaveta gramatical o faz por alguma intenção, algo que ultrapassa as fronteiras lingüísticas. E é nesse campo que surgem os atores, aqui cognominados de doidivanas. Mais parece um grupo que considera a língua instrumento para administrar preconceitos, elevar a cidadania e o estado de espírito dos menos instruídos.

Como se pode aduzir, embute-se na questão um viés ideológico, coisa que vem se desenvolvendo no país na esteira de um populismo embalado com o celofane da demagogia.

Ora, os desprotegidos, os semi-analfabetos, os alfabetos funcionais, enfim, as massas ignaras não serão elevadas aos andares elevados da pirâmide se a elas for dada apenas a escada do pseudo nivelamento das regras da língua. Esta é, seguramente, um meio de ascensão social. Mas, seus usuários precisam entender que a chave do elevador social está guardada nos cofres normativos.

Da mesma forma, as vestimentas, os modos e costumes, a teia de amigos, as referências profissionais são motores da escalada social. Por que, então, os doidivanas da cultura e da educação investem com tanta força para elevar a norma popular da língua ao patamar da norma culta?

Não entendem que são objetos diferentes? Por que tanto esforço para defender uma feição que valida erros grosseiros?

Não há outra resposta: ideologização. Imaginam o uso da língua como arma revolucionária. O sentimento que inspira os cultores da ignorância só pode ser o de que, para melhorar a auto-estima e ter uma vida melhor, a população menos alfabetizada pode escrever como fala.

Como se a gramática normativa devesse ser arquivada para dar lugar à gramática descritiva. Sob essa abordagem, a prática de tomar sopa fazendo barulho com a boca, à moda dos nossos bisavós, também poderia ser recomendável.

As concessões demagógicas que se fazem em nome de uma “educação democrática” apenas reforçam a estrutura do atraso que abriga o ensino público básico do país, responsável pelo analfabetismo funcional que atinge um terço da população.

Avolumam-se os contingentes de jovens de 9 a 14 anos que, além de não saberem interpretar um texto, restringem-se ao exercício de copiar palavras sem se apropriar de seu significado. Os copistas constituem os batalhões avançados da “revolução” empreendida pela educação brasileira.

Pior é constatar que os “revolucionários” crêem firmemente que a escalada social deve continuar a ser puxada pela carroça do século XVII, fechando os olhos à “mobralização” da universidade brasileira.

E assim, passada a primeira década do século XXI, no auge das mudanças tecnológicas que cercam a Era da Informação, emerge um processo de embrutecimento do tecido social.

Alicerçado pela argamassa de escândalos, desprezo às leis, violência desmesurada, promessas não cumpridas. O grande Rui bem que profetizara: “a degeneração de um povo, de uma Nação ou raça começa pelo desvirtuamento da própria língua”.

¹ Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político e de comunicação @Twitter gaudtorquato
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