Poucas horas depois da absolvição dos quatro policiais que haviam sido filmados espancando um homem negro em Los Angeles, o centro da segunda maior cidade dos Estados Unidos seria tomado por uma multidão que saqueava lojas, incendiava prédios e assaltava motoristas.
O ano era 1992, e a revolta com a decisão judicial desencadearia o maior levante da história recente dos Estados Unidos, encerrado seis dias depois com um saldo de 63 mortos, mais de 11 mil detidos e um prejuízo de cerca de US$ 1 bilhão.
De lá para cá, a polícia de Los Angeles foi submetida a uma refoma considerada por especialistas um exemplo de sucesso. As mudanças foram impostas pelo Departamento de Justiça do governo americano – que se valeu de uma lei que lhe permite intervir em forças estaduais ou municipais que cometam abusos sistemáticos – após o espancamento do operário Rodney King, que havia se recusado a encostar o carro numa abordagem policial.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”]
King sobreviveu aos golpes dos agentes, mas a insurreição forçaria a polícia de Los Angeles a rever uma série de práticas que haviam lhe rendido a fama de ser uma das mais racistas e violentas forças de segurança dos Estados Unidos.
A experiência é lembrada num momento em que pipocam pelo país protestos contra a violência policial e o modo como as corporações tratam negros e latinos. As manifestações foram impulsionadas pela absolvição dos policiais que em 2014 mataram o jovem Michael Brown em Ferguson, Missouri, e o vendedor ambulante Eric Garner em Staten Island, Nova York. Como Rodney King, os dois estavam desarmados e eram negros.
Força de ocupação
A intervenção na polícia de Los Angeles, que durou de 2000 a 2013, teve como objetivo reduzir o uso da força, criar mecanismos para punir abusos e melhorar sua relação com os moradores.
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Contrariando previsões de que as ações poderiam favorecer os criminosos, os índices de violência na cidade despencaram durante a reforma. A taxa de homicídios, que na década de 1980 chegou a 34,2 por 100 mil habitantes ao ano, baixou em 2013 para 6,3 (no Brasil, o índice em 2013 foi de 25,2).
A queda foi acompanhada pela melhora na opinião dos moradores sobre a corporação. Segundo um estudo da Escola John F. Kennedy da Universidade Harvard, em 2005 menos da metade dos habitantes considerava a atuação da polícia boa ou excelente. Já em 2009 as avaliações positivas eram compartilhadas por 83% da população.
“Antes da reforma, a polícia operava como uma força de ocupação num território estrangeiro, reprimindo as pessoas nos bairros pobres”, disse à BBC Brasil Joe Domanick, diretor do Centro de Mídia, Crime e Justiça na Faculdade John Jay, em Nova York, e autor do livro “Azul: a ruína e a redenção da Polícia de Los Angeles”.
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Após a intervenção, Domanick diz que a corporação passou a enfocar um modelo de policiamento comunitário, cultivando laços com líderes locais e ativistas. A mudança de postura, segundo ele, é evidente em conjuntos habitacionais onde policiais foram alocados permanentemente.
“Esses policiais não estão lá para prender as pessoas, para dar voz de prisão a alguém que esteja fumando um baseado. É claro que agirão se presenciarem algo grave, mas eles estão lá para se aproximar da comunidade e manter os jovens longe das grades.”
Com a nova estratégia, diz Domanick, moradores passaram a cooperar mais com as investigações e ajudar a polícia a combater ameaças maiores, como a ação de gangues na vizinhança.
Combate a abusos
A reforma também fortaleceu os três órgãos encarregados de investigar abusos na corporação. A ação gerou temores de que policiais pudessem deixar de executar suas funções para evitar punições, mas o estudo da Escola John F. Kennedy mostra o contrário.
Segundo a pesquisa, a partir de 2002, a polícia ampliou tanto o número de abordagens quanto o de prisões. Houve ainda um crescimento na proporção de detidos que acabaram denunciados pela Promotoria, o que indica que a polícia passou não só a deter mais, mas também melhor.
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“A reforma da polícia de Los Angeles deu certo porque houve uma combinação entre supervisão externa e liderança”, diz à BBC Brasil Christine M. Cole, vice-presidente e diretora executiva do Instituto de Crime e Justiça de Harvard e uma das autoras do estudo.
O principal líder do processo foi William Bratton, que comandou a corporação entre 2002 e 2009. Em 2014, Bratton assumiu pela segunda vez a chefia da polícia de Nova York, onde ordenou uma redução drástica na aplicação do “stop-and-frisk”. Esse método de abordagem e revista de pessoas tidas como suspeitas era alvo de críticas na cidade por ser aplicado desproporcionalmente em negros e latinos.
Já a supervisão da reforma coube a quatro atores: um juiz federal, um representante do governo federal, uma comissão formada por civis e um inspetor independente.
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Cotas para mulheres e minorias
Com a reforma, a polícia também alterou seu processo de contratação. Para acabar com o predomínio de homens brancos em seus quadros – o que, acreditava-se, alimentava a desconfiança em relação às minorias e perpetuava comportamentos racistas –, foram definidas cotas para mulheres, negros e latinos.
Desde 2005, há mais latinos do que brancos na corporação, assim como no resto de Los Angeles. O número de policiais negros tem se mantido estável (7,2%) em patamar próximo ao percentual do grupo na cidade. Já a proporção de mulheres ainda é baixa (19%), embora crescente.
Nem todos, porém, ficaram satisfeitos com a reforma. No fim de 2014, quando os protestos nacionais pela morte de Michael Brown chegaram às ruas de Los Angeles, manifestantes também criticaram a polícia local.
Uma das organizadoras locais do movimento Black Lives Matter (“As vidas dos negros importam”, o principal slogan dos protestos), Melina Abdullah diz que a reforma não alterou a essência da corporação. “A Polícia de Los Angeles continua sendo uma das que mais matam no país”, afirmou.
Ela diz que muitos policiais que cometem abusos continuam em seus cargos e que, embora tenha deixado de ser majoritariamente branca, a corporação mantém um “desprezo pelas vidas dos negros”.
Procurada pela BBC Brasil, a polícia de Los Angeles não se pronunciou sobre as críticas.
As queixas indicam que, apesar das mudanças, a corporação não está imune a um debate mais amplo sobre racismo e violência policial nos Estados Unidos e não foi capaz de vencer integralmente a batalha pela confiança dos moradores.
João Fellet/BBC Brasil em Washington