Café de sempre
Gustavo Vasconcelos
Levito um vulto nocturno em rua estreita e mal iluminada. Esquinas que pingam chuvas recentes escondem-me os passos apenas suficientemente rápidos.
Fujo do dia que já acorda e sento-me na mesa 7 do café de sempre. Sai um café curto para a 7, presume o empregado de sempre. Engana-se. Mas na ausência de algo melhor que seja uma bica que me ajude a viver acordado esta manhã recém-nascida.
Fita-me por um momento como se nunca me tivesse visto. Como se soubesse o que só nós sabemos.
De facto, hoje não é uma manhã banal. Esta noite amei a mulher que amo. A que sempre amei em segredo. Finalmente fomos quase eternos. Amámo-nos intensamente junto ao fogo que roubava o oxigénio que nos faltava. Fui persuasivo o bastante para cederes aos meus desejos mais insondáveis. Momentos decerto irrepetíveis mesmo agora que te tenho só para mim. Sei que serás minha para sempre. Mesmo tu que já amaste todos os homens menos a mim. Posso não ter sido o primeiro mas estou certo que serei o último amor da tua vida.
Folheio o matutino por entre tragos intermitentes no café escaldante.
É então que lá fora as luzes azuis giram reflexos desiguais nas paredes ainda pouco iluminadas.
Desvio o olhar para o jornal como se não quisesse saber. Mas só encontro na página aberta ao acaso uma fotografia conhecida debaixo de um procura-se demasiado obeso para passar despercebido. Eu. No meu pior. Melhor assim.
Certamente seguiram-me os passos lentos e ensanguentados pelo húmido empedrado. Já o previa. Podiam ao menos deixar-me terminar o meu café de sempre. O tempo agora pouco importa. Para mim, pouco. Para ti, nada.
De que outra forma poderia ter a certeza de ser o último a quem amaste?
Nota do Editor – Mantida a grafia do português de Portugal.
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