Capital italiana reflete caos social e político do país, com resquícios do passado na arquitetura e nas cabeças. E quando Salvini adota retórica ultradireitista, nostálgicos do fascismo se sentem cada vez mais à vontade.
“As pessoas aqui não estão interessadas em entender o que está acontecendo em torno delas, elas só querem viver a própria vida”, diz o proprietário Pietro Di Placidi, fumando um cigarro à sombra da Hostaria Lo Sgobbone, mantida por sua família no bairro Flaminio, em Roma.
Assim como outros residentes críticos desse distrito construído durante o regime fascista (1922-1943), ele acredita que uma mistura de individualismo, cultura arraigada e complexas estruturas de poder estão entravando uma mudança positiva na capital italiana.
As principais reivindicações dos romanos, sob a prefeita Virginia Raggi, do antissistema Movimento Cinco Estrelas, são infraestrutura eficiente e sistema de coleta de lixo eficaz. Em julho, médicos alertaram sobre os riscos de saúde decorrentes da continuada emergência de resíduos, que também afetou zonas mais abastadas do norte da metrópole, como Flaminio.
Como costuma ocorrer em Roma, o bairro é uma mistura de épocas diferentes. Por um lado, abriga dois locais culturais de ponta: o complexo Parco della Musica, projetado por Renzo Piano, e o MAXXI (Museu Nacional de Arte do Século 21), de Zaha Hadid.
Contudo Flaminio também está pleno de arquitetura fascista e racionalista. Para parte dos moradores, retornar ao passado é um modo de encontrar resquícios de glórias antigas em tempos adversos.
Umas centenas de metros afastado do restaurante Lo Sgobbone, vê-se o Obelisco a Benito Mussolini, com “Mussolini Dux” ainda gravado no mármore branco. O monumento de 17 metros de altura se localiza perto de uma rua popular, por onde centenas de transeuntes passam todos os dias. A apenas três minutos a pé, está Foro Italico, o estádio da cidade, denominado Foro Mussolini durante a era fascista.
O debate sobre se as autoridades deveriam intervir para remover a gravação do obelisco, é recorrente. Alguns até já propuseram demolir o complexo esportivo. Ali foi celebrada a lenda do tênis Rafael Nadal como “Imperador”, em maio, após vencer seu nono título.
“Não creio que derrubar monumentos ou obras arquitetônicas de valor vá nos proteger do fascismo ou do neofascismo”, duvida Alessandra Tarquini, docente de história contemporânea na Universidade La Sapienza. “Se é praticável, podemos pô-los em museus, se não, como no caso do Foro Italico ou da EUR [outro bairro erguido durante o fascismo], devemos deixá-los onde estão.”
Edifícios fascistas são encontrados por todo o país. Em julho, Roberto Canali, prefeito de extrema direita de Predappio, no centro da Itália, local de nascença de Mussolini, anunciou plano de abrir a cripta do ditador aos turistas durante todo o ano. No momento, os visitantes, em grande parte neofascistas, só podem visitar o local três vezes por ano. Canali alega que a medida ajudaria o comércio local.
“Não acho que o que estamos vivenciando na Itália, no nível político, seja fascismo”, avalia Tarquini. “Os políticos atuais me parecem populistas de direita, comprometidos em defender um mundo que não existe mais, preocupados em perder a identidade, soberania e poder aquisitivo.”
Nos últimos meses, fizeram manchete em Roma diversos crimes relacionados ao radicalismo de direita. Em junho, um homem do Gâmbia teve que ficar hospitalizado um mês, após ser agredido no centro da capital por dois homens ligados à ultradireita.
Em 7 de agosto, o torcedor de futebol Fabrizio Piscitelli – autoproclamado fascista conhecido como “Diabolik” ou “rei do ultras de extrema direita” –, foi abatido a tiros num parque do sudeste da cidade. Nos últimos 12 meses, grupos militantes têm repetidamente pichado slogans como “Fascismo vive” nos escritórios do Partido Democrático (PD), de centro-esquerda.
“Fato é que [o ministro do Interior Matteo] Salvini não é um fascista”, afirma Tarquini. “No entanto, quando um membro destacado do governo, como Salvini, usa o léxico fascista, dando uma piscadela para o eleitorado radical de direita, é provável que os saudosistas do fascismo se sintam mais livres para expressar suas opiniões.”
Stefano Moreschini, dono de uma banca de jornais em Flaminio, não tem os calendários de Mussolini tradicionalmente vendidos na capital italiana no fim do ano. Entretanto ele compra e vende discos com discursos do ditador, velhas canções fascistas e música de Richard Wagner, assim como revistas ultradireitistas.
“Há muitos nostálgicos nas vizinhanças. Não só os mais velhos, mas também quarentões. Eles reagem desse jeito porque a política nacional tornou o país irreconhecível”, explica Moreschini, acrescentando que diversificou a oferta de sua banca para incluir suvenires fascistas por causa da queda de faturamento.
“Uns anos atrás, eu vendia 150 exemplares do [jornal publicado em Roma] Il Messaggero, agora são uns 50. Mas sempre vendo todas as cópias do Primato Nazionale“, relata, referindo-se ao jornal mensal de extrema direita nacionalista fundado em Milão há seis anos.
Não é possível prever se pode ocorrer um retorno dos fascistas, mas está claro que as atuais fragilidades políticas, associadas a emergências regionais e a claudicante economia italiana, estão aumentando a visibilidade das ideias ultradireitistas.
“No fim das contas, os fascistas nunca desapareceram de verdade”, pontifica Pietro Di Placidi, enquanto limpa a Hostaria Lo Sgobbone, depois que a freguesia da hora de almoço se foi.