Com biografias bem distintas, a data nominal de morte une os dois gênios da literatura ocidental – apesar do choque de calendários. Mas uma questão central também fascina a ambos: o que é sonho, o que é realidade? William Shakespeare (esq.) e Miguel de Cervantes Saavedra: biografias e gênios literários distintos numa mesma época Dois escritores de dimensão universal, profundos e espirituosos virtuoses da pena e do papel, filhos das mais ricas potências europeias de sua época: fora isso e a data da morte – 23 de abril de 1616 –, William Shakespeare e Miguel de Cervantes Saavedra parecem não ter muito em comum. O destino lhes designou sortes e azares bem distintos.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Quanto às datas exatas do nascimento de ambos reina incerteza: Shakespeare teria vindo à luz no fim de abril de 1564 em Stratford-upon-Avon, Inglaterra; estima-se que seu colega espanhol nascera 17 anos antes em Alcalá de Henares, nas cercanias de Madri. Enquanto o inglês foi educado na prestigiosa escola de latim de sua cidade natal, lá aprendendo os fundamentos da retórica e da poesia, Cervantes, que provinha de uma família de nobres arruinados, provavelmente estudou teologia na Universidade de Salamanca. O soldado e o “furão” Logo a vida do espanhol tomou um curso aventureiro. Aos 22 anos, mudou-se para Roma – fugindo da Justiça de seu país, ao que tudo indica. No ano seguinte, alistou-se numa companhia de soldados e passou a servir como camareiro do futuro cardeal Giulio Acquaviva. Em 7 de outubro de 1571, participou da batalha naval de Lepanto, contra o Império Otomano. Em combate, foi atingido duas vezes no peito, e uma bala seccionou um nervo de sua mão esquerda, inutilizando-a, fato que lhe valeria o apelido “El Manco de Lepanto”. Cidade natal celebra William Shakespeare O Bardo de Avon, por sua vez, jamais frequentou uma universidade. Durante cerca de sete anos, no fim da juventude, perdeu-se toda pista dele. Somente em 1592 seu nome voltou a aparecer, num panfleto em que o escritor Robert Greene o tacha de “furão” e “convencido”. Tal comentário levou os pesquisadores a deduzirem que, aos 28 anos, Shakespeare já obtivera uma certa projeção como dramaturgo. Como ator, ele integrou a trupe de teatro Lord Chamberlain’s Men, rebatizada como King’s Men sob o rei James 1º. E logo brilharia na Inglaterra elisabetana com suas montagens e peças teatrais. Vida de luxo para um, prisão para o outro Por volta dessa mesma idade, em 1575, Cervantes foi capturado ao retornar com a frota naval para a Espanha e, juntamente com o irmão Rodrigo, mantido como escravo em Argel por cinco anos. Para pagar o resgate, o pai empregou toda sua fortuna, a irmã sacrificou o dote, porém só Rodrigo foi libertado. Os locais que inspiraram o famoso romance “Dom Quixote” Após quatro tentativas de fuga frustradas, em 1580 a liberdade de Miguel de Cervantes foi comprada pela ordem religiosa dos trinitários. Consta que o autor só sobreviveu às fugas por ter impressionado com sua coragem o vice-rei de Argel, que também acalentava esperança de obter por ele um resgate mais avantajado. Cervantes elaborou as experiências do cativeiro em sua primeira peça teatral, Los tratos de Argel, que, no entanto, ficou ignorada pelo público espanhol. Devido à permanente falta de sucesso e falta de dinheiro, de 1580 e 1583 ele foi novamente forçado a servir como soldado. Ao contrário do espanhol, que nunca conseguiu viver da literatura, Shakespeare cedo gozava de sucesso como escritor e negociante. Sócio do Globe Theatre e, mais tarde, do Blackfriars Theatre, com plateia coberta e mais exclusivo, ele acumulou fortuna, sendo proprietário da segunda maior casa de Stratford-upon-Avon. “O melhor livro do mundo” Nessa altura da vida, Cervantes passou a trabalhar como atacadista e fornecedor da frota de guerra da Espanha. Devido a negócios mal-sucedidos, voltou a ser preso em 1597-98 e em 1602. No cativeiro começou a escrever sua obra-prima: O engenhoso fidalgo Don Quixote de La Mancha, parodiando os romances de cavalaria populares na época, e que seria lançado em duas partes, em 1605 e 1615. Embora encontrando sucesso imediato, os lucros da publicação ou ficaram nas mãos do editor ou foram reinvestidos em edições sucessivas. Numa votação promovida pelo Instituto Nobel, em 2002, Dom Quixote foi escolhido como “melhor livro do mundo” por um júri composto por 100 autores de renome. Na história da literatura ocidental, ele marca o nascimento do romance moderno. A narrativa se presta a numerosas interpretações, e até hoje analistas disputam qual seria sua real mensagem e a que público-alvo se destinaria. Gruta em Argel onde Cervantes teria sido mantido cativo por cinco anos Realidade ou sonho? O “Bardo” retornou à Stratford natal poucos antes de morrer, aos 52 anos. Por sua vez, Cervantes ainda foi injustamente acusado de homicídio em 1605. A mais esse percalço numa vida atribulada, porém, seguiu-se uma fase de grande atividade literária, até a morte do autor, em Madri, com sintomas de diabetes. Apesar de ambos serem celebrados em 23 de abril, Shakespeare morreu dez dias depois do colega espanhol. A explicação é que, na época, seus países utilizavam sistemas de contagem de tempo distintos: enquanto a Espanha já adotara o calendário gregoriano, a Inglaterra ainda se orientava pelo juliano. Rara primeira edição das obras de Shakespeare foi encontrada em 2016 Shakespeare foi sepultado na Igreja da Santíssima Trindidade. Embora fosse sabido que Cervantes pedira para ser enterrado no Convento das Trinitárias Descalças, em gratidão pela libertação de Argel, só em 2015 seus restos mortais foram localizados num nicho da cripta do convento: as iniciais “M.C.” no caixão e os documentados ferimentos na mão e no peito permitiram a identificação. Um ponto comum entre os dois autores mortos há 400 anos: apesar da distância geográfica e das biografias díspares, ambos enfocaram repetidamente em sua obra o conflito entre ideal e realidade, tematizando a questão “O que é realidade, o que é sonho?”. Assim, enquanto em Dom Quixote, Miguel de Cervantes deixa o leitor na dúvida se seu