Fernando Pessoa – Versos na tarde – 16/02/2013
Hora absurda Fernando Pessoa ¹ O teu silêncio é uma nau com todas as velas [ pandas… Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu [ sorriso… E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e [ as andas Com que me finjo mais alto e ao pé de [ qualquer paraíso… Meu coração é uma ânfora que cai e que se [ parte… O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, [ a um canto… Minha idéia de ti é um cadáver que o mar [ traz à praia…, e entanto Tu és a tela irreal em que erro em cor a [ minha arte… Abre todas as portas e que o vento varra a [ idéia Que temos de que um fumo perfuma de ócio [ os salões… Minha alma é uma caverna enchida p’la maré [ cheia, E a minha idéia de te sonhar uma caravana [ de histriões… Chove ouro baço, mas não no lá fora… É em [ mim… Sou a Hora, E a Hora é de assombros e toda ela [ escombros dela… Na minha atenção há uma viúva pobre que [ nunca chora… No meu céu interior nunca houve uma única [ estrela… Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca [ chegar a um porto… A chuva miúda é vazia… A Hora sabe a ter [ sido… Não haver qualquer coisa como leitos para as [ naus!… Absorto Em se alhear de si, teu olhar é uma praga [ sem sentido… Todas as minhas horas são feitas de jaspe [ negro, Minhas ânsias todas talhadas num mármore [ que não há, Não é alegria nem dor esta dor com que me [ alegro, E a minha bondade inversa não é nem boa [ nem má… Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos [ caminhos… Os pendões das vitórias medievais nem [ chegaram às cruzadas… Puseram in-fólios úteis entre as pedras das [ barricadas… E a erva cresceu nas vias férreas com viços [ daninhos… Ah, como esta hora é velha!… E todas as [ naus partiram! Na praia só um cabo morto e uns restos de [ vela falam Do Longe, das horas do Sul, de onde os [ nossos sonhos tiram Aquela angústia de sonhar mais que até para [ si calam… O palácio está em ruínas… Dói ver no parque [ o abandono Da fonte sem repuxo… Ninguém ergue o [ olhar da estrada E sente saudades de si ante aquele [ lugar-outono… Esta paisagem é um manuscrito com a frase [ mais bela cortada… A doida partiu todos os candelabros glabros, Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, [ muitas… E a minha alma é aquela luz que não mais [ haverá nos candelabros… E que querem ao lago aziago minhas ânsias, [ brisas fortuitas?… Porque me aflijo e me enfermo?… Deitam-se [ nuas ao luar. Todas as ninfas… Veio o sol e já tinham [ partido… O teu silêncio que me embala é a idéia de [ naufragar, E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo [ fingido… Já não há caudas de pavões todas olhos nos [ jardins de outrora As próprias sombras estão mais tristes… [ Ainda Há rastos de vestes de aias (parece) no chão, [ e ainda chora Um como que eco de passos pela alameda que [ eis finda… Todos os ocasos fundiram-se na minha [ alma… As relvas de todos os prados foram frescas [ sob meus pés frios… Secou em teu olhar a idéia de te julgares [ calma, E eu ver isso em ti e um porto sem navios… Ergueram-se a um tempo todos os remos… [ Pelo ouro das searas Passou uma saudade de não serem o mar… [ Em frente Ao meu trono de alheamento há gestos com [ pedras raras… Minha alma é una lâmpada que se apagou e [ ainda está quente… Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao [ sol! Todas as princesas sentiram o seio [ oprimido… Da última janela do castelo só um girassol Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas [ no nosso sentido… Sermos, e não sermos mais!… Ó leões [ nascidos na jaula!… Repique de sinos para além, no Outro Vale… [ Perto?… Arde o colégio e uma criança ficou fechada na [ aula… Porque não há-de ser o Norte o Sul?… O que [ está descoberto?… E eu deliro… De repente pauso no que [ penso… Fito-te E o teu silêncio é uma cegueira minha… [ Fito-te e sonho… Há cousas rubras e cobras no modo como [ medito-te, E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor [ de medonho… Para que não ter por ti desprezo? Por que não [ perdê-lo?… Ah, deixa que eu te ignore… O teu silêncio é [ um leque — Um leque fechado, um leque que aberto seria [ tão belo, tão belo, Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora [ não peque… Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos [ os peitos… Murcharam mais flores do que as que havia [ no jardim… O meu amar-te é uma catedral de silêncios [ eleitos, E os meus sonhos uma escada sem princípio [ mas com fim… Alguém vai entrar pela porta… Sente-se o ar [ sorrir… Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de [ virgens que tecem.. Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher [ que há de vir, O perfume que os crisântemos teriam, se o [ tivessem… É preciso destruir o propósito de todas as [ pontes, Vestir de alheamento as paisagens de todas [ as terras, Endireitar à força a curva dos horizontes, E gemer por ter de viver, com um ruído [ brusco de serras… Há tão pouca gente que ame as paisagens [ que não existem!… Saber que continuará a haver o mesmo [ mundo amanhã — como nos desalegra!… Que o meu ouvir