Lésbicos do armário virtual A garantia do anonimato é uma proteção contra ditaduras e um recurso fundamental para a imprensa denunciar corrupção e crimes em democracias. O caso bizarro da falsa blogueira lésbica síria, que por sua vez contou com ajuda de uma falsa lésbica americana do site GLS LezGet Real, não vai ser lembrado apenas por ter colocado em risco vidas não virtuais. Deve provocar reflexão sobre a credulidade no mundo online e sobre a política de identidade. Há cinco meses, o americano Tom MacMaster, casado, 40 anos, estudante de pós-graduação da Universidade de Edimburgo, na Escócia, se identificou como Amina Abdullah Arraf e decidiu criar o blog Gay Girl in Damascus (Menina Gay em Damasco). Paula Brooks, responsável pela edição do LezGetReal, ajudou a colocar o blog no ar. A personagem inventada por MacMaster era irresistível para a imaginação ocidental. Uma sírio-americana vivendo sob a opressão de um regime assassino e se arriscando para encorajar gays do mundo árabe a sair do armário. No dia 6 de junho, um post supostamente assinado por um primo de Amina afirmava que ela tinha sido capturada por membros do Partido Baath, do presidente sírio, Bashar Assad. A mídia tradicional denunciou o sequestro de Amina e o site Libertem Amina Abdallah atraiu 14 mil seguidores no Facebook. Mas Paula Brooks ficou desconfiada e, ao investigar a origem do servidor do blog chegou a Tom MacMaster, na Escócia. Ele confessou ser um romancista fracassado e justificou a fraude como exercício de imaginação literária inspirado pela rejeição de sua ficção. No dia seguinte, foi a vez de Paula Brooks sair do armário virtual como Bill Graber, um veterano militar do Estado de Ohio, casado e com 58 anos. Paula Brooks é o nome da mulher de Graber, que não tinha a menor ideia das atividades paralelas do marido. Comparado ao pilantra MacMaster, Graber não passa de um ladrão de galinha. MacMaster não só instigou sírios a se arriscar procurando Amina. Ele roubou a foto de uma mulher real que identificou como Amina e forjou uma relação romântica online com uma franco-canadense, numa troca de mais de mil emails. Bill Graber diz que editava o LezGetReal sob pseudônimo porque havia testemunhado as agruras vividas por um casal de amigas lésbicas. E estava convencido de que jamais teria credibilidade como um ex-militar heterossexual, de um Estado conservador, escrevendo sobre a vida gay. Ele está certo, embora não se absolva da desonestidade. Na Europa e nos Estados Unidos, a correção política multicultural tende a conferir legitimidade gratuita a narrativas pessoais de opressão. Num momento em que 20 milhões de pessoas estão registradas para criar avatares no mundo virtual do Second Life, a identidade, para muitos, deixou de ser um substantivo singular. Chego a pensar se o deputado Anthony Weiner, que caiu em desgraça e renunciou por tuitar fotos de seu pênis para um punhado de mulheres, não começa a parecer um exemplo de coragem para a era digital. Afinal ele não fotografou o órgão alheio. Há um aspecto curioso da indignação da comunidade gay com Bill Graber. Alguns comentários levam a crer que a mentira foi mais nociva porque ele falsificou a identidade de uma lésbica. Se ele fosse uma lésbica se apresentando como outra, quem sabe, estaria perdoado porque sua condição de minoria ainda seria legítima. Há pouco mais de 400 anos, William Shakespeare criou charadas sexuais deliciosas. Viola, de Noite de Reis, se apresenta como homem (seu irmão Cesário) para o amado duque Orsino e desperta a paixão da Lady Olívia. Tudo acaba bem na quadrilha da troca de papeis. O poder da narrativa de ficção nos joga nos braços dos personagens. A outra possível lição do Aminagate é a importância de não se encarar a blogosfera e a mídia social com lentes de Polyanna. Evgeny Morozov, um acadêmico visitante da Universidade Stanford, alerta para a falácia da utopia cibernética, em The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom (A Ilusão da Net: O Lado Negro da Liberdade na Internet). Ele aponta uma falta de senso crítico na mídia tradicional, que vê nos blogueiros e internautas de sociedades autoritárias militantes do bem. Morozov mostra que a Internet é usada com enorme eficácia como arma de repressão por governos como o iraniano e o chinês. Não há escassez de extremistas online que dispensam apoio oficial. Hoje, as palavras “realidade” e “virtual” andam de braços dados. Até o momento em que o soldado sírio de carne e osso derruba sua porta de madeira, na madrugada. Lúcia Guimarães/O Estado de S.Paulo