Na terça-feira, uma reportagem de Vandson Lima e Andréa Jubé, do jornal Valor Econômico, trouxe uma notícia preocupante, mas não surpreendente. O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que responde a nove inquéritos no Supremo Tribunal Federal, no âmbito da Operação Lava Jato, articula mudanças nas regras da delação premiada. Segundo a reportagem, o presidente do Senado quer enxertar em um dos nove projetos em tramitação no Congresso Nacional que dispõem sobre a matéria pelo menos três mudanças: dar um prazo de 45 dias para que os delatores apresentem provas documentais, ou elas perderão a validade; proibir acordo de delação premiada para quem já se encontre preso; e, em terceiro lugar, anular as delações cujos conteúdos tenham sido noticiados. Entre as três, a terceira mudança é a mais escabrosa.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Não surpreende que os políticos tentem minar o potencial investigativo das delações premiadas. Renan Calheiros é só mais um. Não surpreende que queiram enquadrar a imprensa. Mas que preocupa, preocupa. As investidas contra o direito do cidadão de se informar estão a cada dia mais mirabolantes e ameaçadoras. Esta, agora, de se aproveitar de uma informação jornalística publicada para anular o depoimento de uma delação premiada é perversamente escarnecedora. Se emplacar, o presidente do Senado vai ferir de morte dois coelhos com um tiro só: o primeiro é a delação premiada propriamente dita; o segundo, a liberdade de imprensa. Para começar, vai ferir o direito que a sociedade tem de, por meio do Ministério Público e da Polícia Federal, fiscalizar o poder (e as tramoias do poder). Pare para pensar um pouco. Se já estivesse valendo, essa restrição teria matado dezenas de delações premiadas em curso, todas elas detestadas por centenas de políticos profissionais. Sopa no mel. A delação de Delcídio Amaral, ex-líder do governo Dilma Rousseff no Senado Federal, teria virado arquivo morto. Muitas outras iriam para a mesma cova. A função investigativa do Ministério Público e da Polícia Federal teria sido gravemente prejudicada. E por quê? Ora, porque um jornalista fez o trabalho que a sociedade legitimamente espera que ele faça: publicou o que descobriu. Para continuar, o sonho de consumo de Renan Calheiros fere de morte também a liberdade de imprensa, pois aterrorizaria as redações com a ameaça de pôr nelas a culpa pelo malogro das investigações. Tradição liberticida O Brasil tem tradição liberticida. Até hoje, vira e mexe, alguém aparece com a ideia de punir o repórter que revelou passagens de alto interesse público num processo em segredo de Justiça. Atenção a esse ponto. A mentalidade autoritária não se contenta com o direito (legal e legítimo), que já existe, de se processar um órgão de imprensa que tenha devassado a intimidade de alguém. Insatisfeitos, pleiteiam a punição da reportagem que revele aspectos de alto interesse público num processo protegido pelo sigilo de Justiça, mesmo quando esses aspectos não arranham a intimidade das partes envolvidas. O sonho de consumo de Renan Calheiros se inscreve nessa tradição. As mentes autoritárias não admitem o óbvio: o sigilo de Justiça deve ser guardado, sim, mas pela Justiça e por seus magistrados, não pelos jornalistas. A estes não cabe o dever funcional de preservar o sigilo de Justiça. Ao contrário, o dever do jornalista é descobrir segredos que escondam informações de interesse público e transmiti-las ao cidadão o quanto antes. O mesmo raciocínio vale para segredos de Estado. Se descobertos por editores e repórteres, e se são de interesse público, o dever das redações é publicá-los. São incontáveis os exemplos históricos que demonstram que o cumprimento desse dever fortalece a democracia. Lembremos os papéis do Pentágono e o caso Watergate, nos Estados Unidos. No Brasil, lembremos a Operação Boi Barrica (que rendeu a este jornal uma censura judicial até hoje não revogada pelo Supremo Tribunal Federal), além de inúmeras boas reportagens que contribuíram para o esclarecimento dos crimes de tortura (no tempo da ditadura militar), de desvios no governo Collor, dos escândalos do governo Fernando Henrique Cardoso (os bastidores da aprovação da reeleição dele mesmo, entre outros) e, mais recentemente, dos crimes ligados aos processos do mensalão e do petrolão. Se não puder publicar segredos do Estado (do Judiciário, do Executivo e do Legislativo), o que restará à imprensa? Publicar horóscopo, Os Lusíadas, receitas de bolo e, quem sabe, resenhas literárias sobre as obras completas de José Sarney? Já sabemos que punir jornalistas que cumpram o seu dever é uma forma indireta de punir a sociedade. Agora, o presidente do Senado parece inovar. Vai direto ao ponto: pune diretamente a sociedade sem ter de passar pelo intermediário. O jornalista publicou uma notícia sobre uma delação premiada? Simples. Jogue-se no lixo toda a investigação. Consequentemente, puna-se o Ministério Público, puna-se a Polícia Federal, e, de quebra, puna-se o cidadão. Mas Renan, como já foi dito, é apenas mais um. Entre os projetos que conspiram contra a liberdade de imprensa como um atalho para acabar com o potencial das delações premiadas está o do deputado Wadih Damous (PT-RJ). A proposta que ele apresentou (4.372/16) nem disfarça: “Constitui crime divulgar o conteúdo dos depoimentos colhidos no âmbito do acordo de colaboração premiada, pendente ou não de homologação judicial”. A pena é de 1 ano a 4 anos de reclusão, além de multa. O nobre deputado pode até alegar que o alvo de seu projeto não é o repórter, mas o servidor público que entregou o documento ao repórter. A alegação será vã. Do modo como foi redigido, não há margem para dúvida: o projeto, se aprovado, vai ajudar a encarcerar jornalistas que trabalharam direito. Os investigados da Lava Jato agradecem. A gente se preocupa. ¹ Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP