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Misha Gleeny: “Os grandes traficantes brasileiros não moram nas favelas”

Escritor autor de livro sobre o Nem da Rocinha critica política de guerra às drogas. Os caminhos da cocaína desde que a folha da coca é colhida por camponeses latino-americanos até chegar às narinas dos exigentes consumidores da Europa ou dos Estados Unidos deixam um rastro de morte no terceiro mundo. E o Brasil, com seus 50.000 homicídios anuais, não é exceção.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Não se trata, no entanto, de óbitos provocados pela overdose da droga. São uma consequência direta das infinitas batalhas por rotas e mercados, embates travados em nome da chamada “guerra às drogas”. Crítico da política proibicionista liderada por Washington e Europa e imposta aos países produtores e distribuidores, o jornalista inglês Misha Gleeny, que já mergulhou na rede do crime organizado transnacional em McMáfia (Companhia das Letras), agora aborda a o impacto do “fracasso da guerra às drogas” na vida de um indivíduo em particular: o traficante de drogas Nem da Rocinha. Sua história é contada no livro O Dono do Morro: Um homem e a batalha pelo Rio (Companhia das Letras). O autor, que estará na Feira Literária Internacional de Paraty este ano, conversou com o EL PAÍS no final de junho. MAIS INFORMAÇÕES Subiu o morro como Antônio, desceu como Nem da Rocinha “A Rocinha não precisa de teleférico, mas sim de saneamento básico” “Há lugar do Rio em que a polícia é despótica, sufoca a vida dos jovens” A ‘tropa de elite’ é suspeita de ter papel no assassinato de Amarildo Pergunta. Qual a diferença entre o traficante que atua na favela, como o Nem, e o grande traficante, como o mexicano El Chapo Guzmán? Resposta. Existem dois tipos básicos de traficantes no Brasil. O primeiro são os traficantes como o Nem, que atuam na ponta do varejo e distribuem a droga nas áreas urbanas ao longo da costa brasileira. A cocaína vem da Bolívia, Peru ou Colômbia, e parte dela é entregue nas cidades, levada pelos matutos. Eles se encarregam de levar a droga na mochila, de ônibus ou carro, e são parte fundamental do abastecimento das cidades. Cerca de 50% da droga vendida no varejo é entregue para as facções criminosas pelos matutos, que são pessoas de diversas nacionalidades, e não são especialmente ricos. O Nem, no contexto doméstico do tráfico de drogas do Rio de Janeiro, era uma figura muito importante. Mas o papel do Nem não tem nada a ver com o papel do El Chapo Guzmán no México, por exemplo. O Chapo faz parte do segundo tipo de traficante, que atua no atacado, que abastece os mercados mais ricos. Esse segundo perfil também existe no Brasil, só que os Chapos do Brasil não têm a mesma origem social que o mexicano, que nasceu em um bairro pobre. Quem faz esse serviço no Brasil costuma ser pessoas de classe média e classe alta que têm negócios legítimos operando, geralmente nas áreas de transporte e agricultura. Acontece que os lucros desses negócios são multiplicados quando eles utilizam essa rede de logística para transportar toneladas de cocaína através do país. Já descobriram carregamentos de cocaína dentro de carne bovina brasileira que seria exportada pra Espanha, por exemplo. As drogas atravessam o Brasil e deixam o país principalmente pelos portos de Santos e do Rio de Janeiro, e são vendidas no atacado para uma variedade de destinos como países do oeste da África, Espanha, os Balcãs, Holanda e Irlanda. Essa é a função primária do Brasil no mercado global da cocaína: entregar a droga das áreas de produção em grandes quantidades para outros países. P. São perfis completamente distintos de traficantes no atacado e no varejo… R. Esses dois perfis de traficantes tem muito pouco a ver entre si. Os lucros do negócio doméstico do tráfico de cocaína que abastece o Brasil – o país é o segundo maior consumidor de cocaína do mundo – não chegam nem perto do negócio de exportar a cocaína para a Europa. As margens de lucro crescem exponencialmente com a exportação. O perfil social dos envolvidos no tráfico do atacado no Brasil não tem nada a ver com a figura do bandido morador de favela que existe no imaginário da população. O perfil social dos envolvidos no tráfico do atacado no Brasil não tem nada a ver com a figura do bandido morador de favela que existe no imaginário da população. A única pessoa que circulou pelos dois mercados, atacado e varejo, foi o Fernandinho Beira-Mar, do Comando Vermelho [o traficante foi preso em 2002 na Colômbia, e havia construído uma rede de contatos com guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia para comprar e exportar a droga pelo Brasil]. P. Qual a marca da gestão do Nem na Rocinha? R. A Rocinha é uma favela muito fácil de defender, ela tem praticamente duas entradas, uma na parte alta e outra na baixa. Isso significa que o Nem não precisou investir tantos recursos na defesa da favela, em armas. Ele pode simplesmente investir mais recursos no negócio da cocaína, e ele aliou isso a uma redução da violência e do uso ostensivo de armas na comunidade. Isso fez com que as pessoas se sentissem seguras para comprar a droga lá, ele atraiu muitos consumidores de classe média que se abasteciam lá por saber que a favela era pacífica. Logo o faturamento bruto do tráfico subiu muito sob sua gestão. E ele investia parte desses recursos em duas outras coisas: primeiro na comunidade. Para que ela se sinta cuidada, feliz, próspera, ele injetava dinheiro na favela e fez com que a economia local florescesse. E, em segundo lugar, usava o dinheiro para corromper a polícia. Investigadores me disseram que ele tinha informantes na Polícia Civil e na Militar, gente de médio escalão, que o alertava sobre batidas e operações na Rocinha. Tudo isso para garantir seu poder político na comunidade. P. A impressão que se tem ao ler o livro era de que o Nem era um traficante que evitava a violência. Isso

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Olimpídas: Tiro na favela. Esporte olímpico na Rio 2016?

A cem dias dos Jogos no Brasil, moradores das favelas do Rio de Janeiro sofrem o aumento da violência policial. Vitor Santiago Borges, ferido pela polícia, com sua mãe no complexo da Maré. AF Rodrigues Por Angel Gonzalo da Anistias Internacional * Conheci Vitor Santiago Borges, de 30 anos, prostrado em sua cama, em um quarto de dois metros por três no qual nos apinhávamos –eu, sua mãe (sentada em uma cadeira) e quatro colegas da Anistia Internacional (espalhados no pouco espaço livre que havia no chão).[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Vive com os pais em uma humilde casa da comunidade de Vila do Pinheiro, pertencente ao Conjunto de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro, em um primeiro andar com degraus íngremes. MAIS INFORMAÇÕES Tiro na favela. Esporte olímpico na Rio 2016? Rio de Janeiro: 16 vítimas de balas perdidas em apenas dez dias No Rio de Janeiro, a vida vale 30 reais “Eu prometi ao meu filho que a sua morte não ficaria impune” Brasil, um país em “permanente violação de direitos humanos” Vitor ficou paraplégico depois que um grupo de soldados das Forças Armadas que ocupavam a Maré atirou no carro no qual voltava para casa, com quatro amigos, em 13 de fevereiro de 2015. A cama em que agora tem de passar todo o dia foi doada por sua comunidade. A cadeira de rodas, também. Não recebeu nenhuma indenização do Estado. Eram duas da madrugada e os rapazes (um deles, militar) regressavam depois de ver uma partida de futebol de seu time, o Flamengo. Os cinco viajavam em um carro que cruzou sem problemas um primeiro posto de controle do Exército. Seguiu avançando e, de repente, se escutaram os disparos. “Não lembro de nada. Somente o ruído dos tiros. E a dor que senti. E o sangue, claro. Muito sangue.” Não sabe quantos foram os tiros, mas que apenas cessaram quando seu amigo, sargento da Aeronáutica, conseguiu identificar-se. Vitor foi atingindo por pelo menos duas balas de fuzil. Uma o acertou na coluna vertebral e outra se manteve alojada na parte posterior do ombro, e ali ficou durante vários meses depois de ser operado e receber alta. Sua mãe a mostra para nós, envolta em uma bolsinha de plástico. Ele nos aponta os orifícios de entrada, ainda visíveis em seu torso nu. Como consequência dos disparos, perdeu a perna esquerda e parte do pulmão esquerdo. Quando chegou ao hospital os médicos lhe deram 7% de chance de sobrevivência. Conseguiu, mas só depois de passar uma semana em coma e mais de três meses no hospital. Se não tivessem atirado nele, no dia seguinte teria ido à praia com a filha Beatriz, que então tinha dois anos. Havia prometido a ela, mas não pôde cumprir a promessa. Só sorri quando fala dela e nos mostra sua fotografia, em destaque em sua cama. Mal pode levantá-la desde que está nessa situação. Um dos outros filhos de Irone, sua mãe, lhe telefonou e informou do tiroteio. “Por quê? Meu filho não é um bandido. Por quê? Não é possível. Vitor é um bom garoto. É músico e muito trabalhador. Nunca se meteu em confusão.” A versão das autoridades difere da de Vítor. Afirmam que o carro no qual viajava quis atropelar um soldado que tentava bloquear sua passagem. De concreto, apresentaram acusações contra o condutor do veículo. O amigo militar de Vitor nega essa versão. Vitor passou de vítima de um tiroteio a testemunha de uma tentativa de atropelamento. O mundo de cabeça para baixo. Assim são as coisas na Maré. Ao contrário de outras favelas, não está localizada num morro, mas na parte plana e se assemelha a qualquer bairro marginal de qualquer outra grande cidade latino-americana. No entanto, é um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro. Ali vivem cerca de 140.000 pessoas com poucos recursos e escasso acesso a serviços básicos, distribuídas em 16 comunidades. Suas ruas e acessos estão controlados por bandos de traficantes, forças de segurança ou paramilitares organizados em milícias. A maioria da população sobrevive como pode a essa situação. Há um clima assustador de violência e drogas em plena luz do dia. Essa rede de submoradias se situa no norte, junto à principal via de acesso do aeroporto internacional ao centro. Foi ocupada em abril de 2014 por 2.700 soldados da Força de Pacificação, unidade federal. Chegaram “para garantir a lei e a ordem” pouco antes da celebração da Copa do Mundo de futebol em meados de 2014. O Mundial durou um mês. Os militares permaneceram ali um ano e dois meses. Além das Forças Armadas e da Polícia Militar, existe uma corporação específica para recuperar o controle do Estado em territórios onde o narcotráfico e as milícias ditam suas normas paralelamente às instituições. Trata-se das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) e fazem parte da paisagem de dezenas de favelas do Rio desde 2008. No entanto, para os moradores seus resultados não são alentadores. As operações policiais para pacificar zonas de elevada criminalidade só se justificam se podem garantir os direitos de todos os cidadãos, a começar pelos moradores dos bairros marginalizados, algo que não tem ocorrido. Organizações de defesa dos direitos humanos, como a Anistia Internacional, criticam a permanência do Exército e da Polícia Militar nas favelas. O que conseguiu foi aumentar as violações de direitos humanos e militarizar a vida cotidiana em algumas das comunidades mais pobres. As Forças Armadas não contam com formação adequada para esse tipo de operação e têm pouca experiência em dialogar com a sociedade civil. Podia ter acontecido com qualquer um. Mas aconteceu comigo. E destruíram a minha vida O Brasil possui uma das cifras de homicídios mais elevadas do mundo. Talvez por isso a mãe de Vitor considere que seu filho teve sorte. Entre 2005 e 2014 foram registrados 5.132 casos de homicídios cometidos por agentes que estavam em serviço no Rio. Em 2015, foram pelo menos 307 as pessoas que morreram em mãos dos agentes em operações policiais. Desde

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