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Ejacular em pescoço não é crime. É somente contravenção?

A perversa lógica que libertou o homem que ejaculou em uma passageira Cartaz da campanha do tumblr #MeuCorpoNãoÉPúblico PAULA FERNANDES Juiz em São Paulo diz que não houve violência ou crime de estupro contra mulher em ônibus Libertação de agressor, com 17 passagens por conduta semelhante, acende debate sobre lei [ad name=”Retangulo – Anuncios – Duplo”] Cíntia Souza viajava de ônibus na Avenida Paulista, no coração de São Paulo, quando recebeu um jato de esperma no pescoço. Aconteceu no dia 29 e o agressor, Diego Ferreira de Novais, foi detido em flagrante pelo motorista e pelo cobrador do ônibus que ouviram os gritos da vítima e o impediram de fugir e também de ser linchado pelos outros passageiros do ônibus. Menos de 24 horas depois, Novais, que tem 17 passagens na polícia por condutas semelhantes, foi libertado pela Justiça, provocando indignação com a decisão e um debate sobre as dificuldades do sistema brasileiro em punir os crimes sexuais e proteger efetivamente as mulheres de novos abusos. A discussão passa, de acordo com especialistas, tanto por ajustar a tipificação de estupro como por combater o machismo no Judiciário e defender monitoramentos e atenção especializada para criminosos sexuais. Na terça-feira, o suspeito foi levado para a delegacia, onde foi feito o Boletim de Ocorrência. No dia seguinte, em uma audiência custódia, ele foi liberado. O juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto, que assinou a decisão, entendeu que não houve “constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus surpreendida pela ejaculação do indiciado”. O magistrado também descaracterizou o ato como crime de estupro. Segundo seu entendimento, que seguiu a linha do promotor do caso, o que houve foi importunação ofensiva ao pudor, que não é considerado um crime e sim uma contravenção penal, cuja pena é o pagamento de uma multa. Em entrevista à rádio Jovem Pan, a vítima se indigna. “Como é possível uma lei de 1941 proteger mulheres do nosso século?”, questiona Cíntia. A professora associada de direito penal e criminologia da UFRJ, Luciana Boiteux explica que existe uma lacuna legal na lei de estupro que respalda a decisão tomada pelo juiz. “Não há como acusá-lo de estupro de acordo com a lei penal em vigor. Contudo, houve, sim, constrangimento e essa atitude dele [o suspeito] é inaceitável”, afirma a advogada ao EL PAÍS. O termo constrangimento é utilizado judicialmente para indicar que a relação foi forçada, não consentida. Em 2009, a lei de estupro brasileira passou por uma alteração. Tornou-se um crime hediondo e foi unificada com a lei de atentado violento ao pudor, aumentando sua abrangência. Mas por prever uma pena mais dura, juízes geralmente optam por enquadrar alguns altos como contravenção penal, que foi o que aconteceu com Novais. Para Boiteux, o problema é que não existe um delito intermediário: ou o acusado é julgado por estupro, com uma pena muito alta, ou apenas paga uma multa e é posto em liberdade. Silvia Chakian, promotora de Justiça do Estado de São Paulo ouvida pela Agência Pública, concorda: “Essa decisão demonstra uma dificuldade que nós temos, justamente porque não há uma graduação entre um crime muito grave, o de estupro, e outro que tem uma pena ínfima, que é a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor”, diz. Junto com a discussão legal sobre a tipificação do crime, está o debate sobre a reincidência do suspeito e possibilidade de aplicação da prisão preventiva, já que ele tinha várias passagens pela polícia por condutas similares. Se não poderia ter determinado que a detenção continuasse, o juiz Souza Neto tampouco encaminhou o acusado a algum tipo de monitoramento ou atenção especializada, apesar de afirmar na decisão que ele necessitava de tratamento psiquiátrico. Depois que foi solto, Novais não retornou para a casa e, segundo familiares, ele teria viajado para a Bahia. O pai do suspeito disso ao canal SBT que o filho tinha ainda histórico de violência. Os especialistas consultados pelo EL PAÍS também veem no episódio reflexo de características machistas no sistema de Justiça brasileiro e defendem programas de educação e não apenas a solução da prisão como uma resposta efetiva. “É muito difícil tentar convencer a vítima de um crime sexual que o direito penal não resolve. Ela tem todos os motivos para querer uma punição rigorosa e rápida”, ressalta André Augusto Bezerra, que é juiz e presidente da Associação Juízes para a Democracia. “A resposta do Estado para essa pessoa, muito mais do que a punição rápida, é dar a segurança para essa vítima de que ela será ouvida pelo Estado, será ouvida pelo sistema de Justiça e se for provado o fato, a pessoa será condenada”, segue ele, lembrando que as mulheres não sentem confiança no Estado a ponto de fazer denúncias de crimes sexuais, temendo reações adversas e condutas inadequadas a começar pela própria polícia. “É imprescindível o debate de gênero nas escolas como mecanismo de prevenção contra a violência machista”, argumenta Boiteux. Os dois elogiam o curso anunciado também nesta semana pelo Ministério Público de São Paulo cujo objetivo é fazer com que homens que pratiquem atos como os sofridos por Cíntia ou encoxadas no transporte público sejam direcionados para uma espécie de curso de reciclagem, onde discutam o machismo na sociedade. A iniciativa já é aplicada em casos de violência doméstica. ElPais

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Pobre e negra: de faxineira a juíza

De faxineira a juíza, a história de uma mulher pobre e negra no Brasil Adriana Queiroz pagou parte dos seus estudos como limpadora de um hospital e escreveu um livro. A luz do quarto de Adriana Queiroz estava sempre acessa nas madrugadas. Ela trabalhava durante o dia, estudava às noites e rezava para que quem apenas a via como uma mulher negra, pobre e filha de analfabetos não quebrasse seu sonho. Adriana não queria ser o que os outros esperavam dela, ela queria ser juíza em um país onde a taxa de analfabetismo das mulheres negras (14%) mais que duplica a das brancas (5,8%), segundo o IBGE.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Duplo”] Adriana, com 38 anos, é hoje titular da 1ª Vara Cível e da Vara de Infância e da Juventude de Quirinópolis, em Goiás. Tem cinco pós-graduações, estuda Letras nas horas vagas, mas já foi faxineira. Ela teve que se esforçar muito mais que a maioria dos seus colegas de aula para vestir a toga. E conseguiu. Hoje conta suas conquistas em um livro que acabou de lançar, Dez passos para alcançar seus sonhos – A história real da ex-faxineira que se tornou juíza de direito. Os pais de Adriana eram trabalhadores rurais no sertão da Bahia e se mudaram para Tupã, um município de 63.000 habitantes no interior de São Paulo, em busca de uma vida melhor. O orçamento familiar aumentou, o pai virou motorista de ônibus e a mãe vendedora ambulante, mas pagar uma faculdade era ainda um sonho de outra classe social. “A vida deles sempre foi muita dura. Meus pais sofreram muito, eles queriam me dar o que eles não alcançaram, mas não tinham condições. Ninguém na minha família tinha condições de me ajudar”, lembra a juíza em uma conversa por Skype. A magistrada, que sempre estudou em escola pública, foi a terceira classificada no vestibular para cursar direito, mas a única faculdade de sua cidade era privada. Não tinha como pagar, muito menos como cogitar uma universidade pública em outra cidade. “Eu soube do resultado da prova numa sexta e, na segunda, já tinha que fazer a matricula ou perdia a vaga. Tive três dias para decidir o que fazer, ver se teria que abandonar”. Ela resolveu, em seguida, pedir conselho e emprego a um professor da cidade. Ele, que trabalhava no corpo administrativo da Santa Casa, conseguiu uma vaga para ela na instituição. De faxineira. Adriana se orgulha daqueles seis meses que limpou o hospital, mas o salário mínimo que recebia não era suficiente para pagar a mensalidade da universidade e ainda ouvia chacota dos colegas. “Força nos braços, advogadinha!”, lhe gritavam. “Esse episódio é muito marcante para mim, justamente por esse preconceito de que alguém que exerce um cargo como eu exercia não possa sonhar alto”. Faltavam horas para o prazo da matrícula expirar quando Adriana plantou-se na frente do diretor da faculdade. Compartilhou seu sonho de estudar. “Ele se sensibilizou e me concedeu uma bolsa de 50% e diluiu o valor da matrícula nas mensalidades. Assim, durante o dia trabalhava na limpeza e à noite ia estudar”. Para espanto dos seus conhecidos e familiares, durante a faculdade, Adriana resolveu ser juíza. “Quando anunciei isso as pessoas ficaram espantadas. Não era comum no meu contexto almejar um cargo tão alto. É como se fosse algo inacreditável, faziam questão de frisar que eu era pobre e negra, como se não tivesse nenhuma chance”, lamenta. Decidida, em 2002, terminou os estudos, pediu demissão na Santa Casa, onde já tinha sido promovida ao corpo administrativo e guardou suas coisas em duas sacolas plásticas. Partia para a capital para se preparar. “Eu não tinha nem mala”, relata. Após alugar um quartinho no bairro da Liberdade e se matricular no curso preparatório para o concurso da magistratura o dinheiro da conta dava para, no máximo, mais dois meses. “Foi um momento muito crítico, o dinheiro estava acabando e eu não tinha conseguido trabalho”, conta Adriana. “Eu me vi de novo nesse dilema de ter ou não que abandonar”. Não precisou. O diretor do curso, o procurador Damásio de Jesus, viu nela uma “pessoa incomum”. “Logo à primeira vista, olhando nos olhos daquela jovem advogada de 24 anos, tive certeza de que estava diante uma lutadora, uma pessoa incomum, de alguém que, sem dúvida, estava fadada a um grande futuro”, destaca o jurista no prefácio do livro. Damásio ofereceu para ela uma bolsa de 100% do curso durante dois anos e a empregou na biblioteca da instituição. “Fiquei sete anos estudando, sábados, domingos e feriados. Quando as pessoas iam viajar, eu ficava na biblioteca. Depois de inúmeras reprovações, eu consegui. Em janeiro de 2011 passei o concurso e me tornei juíza em Goiânia”. Caçula de seis irmãos, a única deles que tem ensino superior, Adriana quer motivar agora com o livro a todas as pessoas que, assim como ela, “sonham, mas estão desacreditadas”. “É possível romper os paradigmas sociais”, encoraja. “Eu, particularmente, não sofro racismo hoje. Mas sim vivencio a grande surpresa das pessoas quando me veem. Porque quando o advogado vai procurar o juiz, ele não espera encontrar alguém como eu. Eu não me importo. Eu fico feliz de ter quebrado esse paradigma”.  

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