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A crise infindável como instrumento de poder: uma conversa com Giorgio Agamben

Em meio a repercussões apaixonadas e críticas difamatórios ao artigo Um “Império latino” contra a híper potência alemã, o filósofo Giorgio Agamben discute a atual crise econômica (que tem atuado como instrumento de dominação) em entrevista traduzida em primeira mão pelo Blog da Boitempo. Dirk Schümer entrevista Giorgio Agamben ¹ Segundo o autor de O reino e a glória e Opus dei, ao voltarmos nossas reflexões à União Europeia, não devemos esquecer a “verdade dolorosa, porém óbvia” de que a constituição europeia é ilegítima, pois nunca foi votada pelo povo que deveria representar. ***** Professor Agamben, quando você propôs a ideia de um “Império latino” contra a dominação germânica na Europa, você imaginava a poderosa repercussão que esta contenção teria? De lá pra cá, seu artigo foi traduzido para inúmeras línguas e vem sendo discutido fervorosamente no mundo inteiro. Não, não esperava. Mas acredito no poder das palavras, quando ditas no momento certo. A fratura na União Européia se dá realmente entre as economias e modos de vida do norte ‘germânico’ e do sul ‘latino’? Gostaria de deixar claro de antemão que minha tese tem sido desvirtuada por jornalistas e, portanto, mal interpretada. O título “Que o império latino contra-ataque!” foi fornecido pelos editores do Libération e absorvido pela imprensa alemã. Eu nunca disse isso. Como poderia contrapor a cultura latina à alemã quando qualquer europeu inteligente sabe que a cultura italiana da Renascença ou a cultura da Grécia clássica é hoje completamente parte da cultura alemã, que a reconcebeu e reapropriou? Então nada de ‘Império latino’ dominante? Nada de alemães incultos? Na Europa, a identidade de toda cultura está sempre nas fronteiras. Alemães como Winckelmann ou Hölderlin poderiam ser mais gregos que os gregos. E um fiorentino como Dante poderia sentir-se tão alemão quanto o imperador Frederico II da Suábia. Isto é justamente o que faz a Europa: uma peculiaridade que repetidamente se sobrepõe a fronteiras nacionais e culturais. Minha crítica não se dirigia à Alemanha, mas sim à forma pela qual a União Europeia foi construída, isto é, sob uma base exclusivamente econômica. De forma que não foram ignoradas apenas nossas raízes espirituais e culturais, mas também nossas raízes políticas e legais. Se isto foi tomado como uma critica à Alemanha, é só porque a Alemanha, em virtude de sua posição dominante e a despeito de sua tradição filosófica excepcional, parece incapaz, no atual momento, de conceber uma Europa baseada em qualquer coisa que não apenas o Euro e a economia. De que forma a União Europeia negou suas raízes políticas e legais? Quando falamos da Europa hoje, nos deparamos com a repressão gigantesca de uma verdade dolorosa, porém óbvia: a dita constituição europeia é ilegítima. O texto a que damos esse nome nunca foi votado pelo povo. Ou quando chegou a ser posto em votação, como na França e na Holanda em 2005, foi frontalmente rejeitado. Em termos legais, portanto, o que temos aqui não é uma constituição, mas, pelo contrário, um tratado entre governos: lei internacional, não lei constitucional. Recentemente, o altamente respeitado jurista alemão Dieter Grimm chamou atenção para o fato de que a constituição europeia carece do fundamental – o elemento democrático – já que cidadãos europeus não foram autorizados a decidir sobre ela. E agora todo o projeto de ratificação pelo povo foi tacitamente posto em gelo fino. Este é, de fato, o famoso ‘déficit democrático’ no sistema europeu… Não devemos perder isso de vista. Jornalistas, particularmente na Alemanha, têm me acusado de não entender nada de democracia, mas eles deveriam considerar antes de mais nada que a UE é uma comunidade baseada em tratados entre Estados, e simplesmente disfarçada com uma constituição democrática. A ideia de um poder constituinte na Europa é um espectro que ninguém mais arrisca evocar. Mas é só com uma constituição válida que as instituições europeias podem restabelecer sua legitimidade. Isso significa que você vê a União Europeia como um corpo ilegal? Não ilegal, mas ilegítimo. “Legalidade” é uma questão das regras para exercício do poder; “legitimidade” é o princípio que subjaz a essas regras. Tratados legais certamente não são apenas formalidades, mas refletem uma realidade social. É compreensível, portanto, que uma instituição sem uma constituição seja incapaz de seguir uma política genuína, mas que cada Estado europeu continua agindo de acordo com seu interesse egoísta – e hoje isso evidentemente significa interesse sobretudo econômico. O menor denominador comum de unidade é alcançado quando a Europa aparece como vassala dos Estados Unidos e participa de guerras que de forma alguma são de interesse comum, sem falar na vontade do povo. Vários países dos Estados fundadores da UE – como a Itália, com suas várias bases militares americanas – estão mais para protetorados que para Estados soberanos. Na política e no militarismo existe uma Aliança Altântica, mas certamente não há uma Europa. Você preferiria então um Império latino a cujo modo de vida os alemães teriam de se adaptar, à UE… Não, foi talvez de forma um tanto provocativa que assumi o projeto de Alexander Kojève de um “Império latino”. Na Idade Média, as pessoas ao menos sabiam que a unidade de diferentes sociedades políticas tinha de significar mais do que uma sociedade puramente política. Na época, o vínculo unificador era buscado no cristianismo. Hoje acredito que essa legitimação deve ser buscada na história da Europa e de suas tradições culturais. Diferente dos asiáticos e dos americanos, para quem a história significa algo completamente diferente, europeus sempre encontram sua verdade em um diálogo com seu passado. O passado para nós significa não apenas herança cultural e tradição, mas uma condição antropológica básica. Se ignorássemos nossa própria história, poderíamos apenas acessar o passado arqueologicamente. O passado, para nós, tornar-se-ia uma forma de vida distinta. A Europa tem uma relação especial com suas cidades, seus tesouros artísticos, suas paisagens. É disso que a Europa é realmente feita. É nisso que reside sua sobrevivência. Então a Europa é antes de mais nada uma forma de vida, uma sensação histórica de vida?

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