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Regime militar brasileiro e as ditaduras do cone sul

É rotineira a associação do regime militar brasileiro com as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai). Nada mais falso. Por Marco Antônio Villa¹ O regime militar brasileiro teve características próprias, independentes até da Guerra Fria. Fez parte de uma tradição anti- democrática solidamente enraizada e que nasceu com o positivismo, no final do Império. O desprezo pela democracia foi um espectro que rondou o nosso país durante cem anos de república. Tanto os setores conservadores como os chamados progressistas transformaram a democracia em um obstáculo à solução dos grandes problemas nacionais, especialmente nos momentos de crise política.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos. Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições para os governos estaduais em 1982. Mas as diferenças são maiores. Enquanto a ditadura argentina fechou cursos universitários, no Brasil ocorreu justamente o contrário. Houve uma expansão do ensino público de terceiro grau por meio das universidades federais, sem esquecer várias universidades públicas estaduais que foram criadas no período, como a Unicamp e a Unesp, em São Paulo. Ocorreu enorme expansão na pós-graduação por meio da ação do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior),especialmente, e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), em São Paulo. Ou seja, os governos militares incentivaram a formação de quadros científicos em todas as áreas do conhecimento concedendo bolsas de estudos no Brasil e no exterior. As ditaduras do Cone Sul agiram dessa forma? A Embrafilme – que teve importante papel no desenvolvimento do cinema nacional – foi criada no auge do regime militar, em 1969. Financiou a fundo perdido centenas de filmes, inclusive de obras críticas ao governo (o ministro Celso Amorim presidiu a Embrafilme durante o regime militar). A Funarte foi criada em 1975 -quem pode negar sua importância no desenvolvimento da música, das artes plásticas e do teatro brasileiros? E seus projetos de grande êxito, como o Pixinguinha, criado em 1977, para difundir a música nacional? No Brasil, naquele período, circularam jornais independentes – da imprensa alternativa – com críticas ao regime (evidentemente, não deve ser esquecida a ação nefasta da censura contra esses periódicos). Isso ocorreu no Chile de Pinochet? E os festivais de música popular e as canções-protesto? Na Argentina de Videla esse fato se repetiu? E o teatro de protesto? A ditadura argentina privatizou e desindustrializou a economia. Quem não se recorda do ministro Martinez de Hoz? Já o regime militar brasileiro estatizou grande parte da economia. Somente o presidente Ernesto Geisel criou mais de uma centena de estatais. Os governos militares industrializaram o país, modernizaram a infraestrutura, romperam os pontos de estrangulamento e criaram as condições para o salto recente do Brasil, como por meio das descobertas da Petrobras nas bacias de Santos e de Campos nos anos 1970. É sabido que o crescimento econômico foi feito sem critérios, concentrou renda, criou privilégios nas empresas estatais (que foram denunciados, ainda em 1976, nas célebres reportagens de Ricardo Kotscho sobre as mordomias) e estabeleceu uma relação nociva com as empreiteiras de obras públicas. Porém, é inegável que se enfrentaram e se venceram vários desafios econômicos e sociais. É curioso o processo de alguns intelectuais de tentarem representar o papel de justiceiros do regime militar. Acaba sendo uma ópera-bufa. Estranhamente, omitiram-se quando colegas foram aposentados compulsoriamente pelo AI-5, como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Emilia Viotti da Costa, entre outros; ou quando colegas foram presos e condenados pela “Justiça Militar”, como Caio Prado Júnior. Muitos fizeram carreira acadêmica aproveitando-se desse vazio e “resistiram” silenciosamente. A história do regime militar ainda está presa numa armadilha. De um lado, pelos seus adversários. Alguns auferem altos dividendos por meio de generosas aposentadorias e necessitam reforçar o caráter retrógrado e repressivo do regime, como meio de justificar as benesses. De outro, por civis (estes, esquecidos nas polêmicas e que alçaram altos voos com a redemocratização) e militares que participaram da repressão e que necessitam ampliar a ação opositora – especialmente dos grupos de luta armada – como justificativa às graves violações dos direitos humanos. ¹MARCO ANTONIO VILLA, 52, é professor de história do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor,entre outros livros, de “Jango, um Perfil”.

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Anistia e Comissão da Verdade

Golpe de mestre: depois de aprovar a Comissão da Verdade, o governo pretende revogar a Lei de Anistia. Com assinatura de apoio de todos os ex-ministros da pasta, a ministra da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Maria do Rosário, divulgou uma carta-aberta aos deputados em que declara que o país está correndo contra o tempo para que a memória das vítimas da ditadura militar não seja esquecida. No manifesto, Maria do Rosário e os ex-ministros apoiam o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade e defendem que o direito à memória e à verdade é uma “conquista” que não pode ser negada. “O Congresso Nacional tem em suas mãos a oportunidade de aprovar esse projeto seguindo os passos já trilhados para a consolidação do regime democrático em nosso país”, diz trecho da carta. “Nosso desafio, hoje, é uma corrida contra o tempo: as memórias ainda vivas não podem ser esquecidas e, somente conhecendo as práticas de violação desse passado recente, evitaremos violações no futuro”, assinalam os ministros. Além de Maria do Rosário, assinam a carta os ex-ministros Paulo Vannuchi, José Gregori, Gilberto Vergne Sabóia, Paulo Sérgio Pinheiro, Nilmário Miranda e Mário Mamede. O ministro da Defesa, Celso Amorim, também participou da reunião, mas saiu do encontro sem falar com a imprensa. O Projeto de Lei 7.376 foi enviado pelo Executivo, em maio, à Câmara dos Deputados e, depois de ter passado pelas comissões de Direitos Humanos e Minorias e a de Relações Exteriores e Defesa Nacional, já houve três pedidos para a inclusão da proposta, na ordem do dia, para análise do plenário. O projeto cria a Comissão da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República.[ad#Retangulo – Anuncios – Direita] Como se sabe, a proposta é polêmica por vários motivos. De início, não conta com apoio integral das Forças Armadas, porque só pretende investigar crimes dos militares, deixando de lado os cometidos pelos militantes da luta armada. Além disso, os militares já destruíram todos os documentos que os poderiam incriminar. Por isso, a Comissão da Verdade não terá em que se basear na investigação, a não ser pelos depoimentos de militantes. Mas quem liga para isso? GOVERNO USA ESTRATÉGIA ARDILOSA A estratégia do governo é aprovar primeiro a Comissão da Verdade, para num segundo lance mudar a Lei de Anistia para punir quem torturou, matou e desapareceu com opositores do regime militar. O militares ainda desconhecem essa intenção do governo e estão aceitando a Comissão da Verdade porque ela não terá efeitos punitivos, porque o Supremo já reconheceu a constitucionalidade da Lei da Anistia. Quando souberem que o governo depois pretende mudar a Lei da Anistia, será tarde demais. Já existe o projeto, que é de autoria da deputada Luiza Erundina (PSB-SP). A proposta já esteve três vezes para ser votada na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, mas foi retirado de pauta. Na manhã de ontem, o PSOL tentou incluí-la na pauta, mas foi derrotado pela base do governo. O PT liderou a mobilização para evitar a votação. Foi na semana passada que o líder do PT na Câmara, Paulo Teixeira (SP), e o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), que faz parte da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, reuniram-se com o ministro da Defesa, Celso Amorim, e decidiram pela estratégia de “congelar” o projeto de Erundina até que seja instalada a Comissão da Verdade. A proposta da deputada está destinada a gerar problemas, quer seja aprovada ou rejeitada. Se passar, criará reações de setores militares, já incomodados com a Comissão da Verdade. Se não passar, o governo terá de se explicar junto à militância dos direitos humanos e parentes dos desaparecidos e perseguidos políticos. Os militares, é claro, resistem a qualquer revisão da Lei da Anistia. A assessoria parlamentar do Comando do Exército já elaborou uma nota técnica contra o projeto de Erundina e a distribuiu aos deputados da comissão. “O projeto quer fazer não a interpretação autêntica, mas restritiva quanto ao alcance dos efeitos da anistia, ferindo de morte o verdadeiro espírito da lei.O projeto vai produzir efeitos retroativos, atingindo fatos passados. Implica em desequilíbrio e desarmonia”, diz a nota técnica do Comando do Exército. Os militares argumentam que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, em abril de 2010, que a lei de 1979 vale para todos, inclusive para crimes cometidos por agentes públicos, militares e civis. Independentemente da mobilização dos militares, alguns parlamentares de esquerda são contra a revisão da Lei da Anistia. Alfredo Sirkis (PV-RJ), por exemplo, um ex-guerrilheiro e que atuou na luta armada, é a favor da Comissão da Verdade, mas não da mudança da Lei da Anistia para punir agentes do Estado que atuaram na ditadura. “Tenho absoluta autoridade para falar desse assunto e não admito ser patrulhado pela esquerda. Esses fatos ocorreram há 40 anos. Reabrir essa questão nesse momento será julgamento daqueles que eram personagens secundários. É reabrir um confronto que não interessa”- diz Alfredo Sirkis, que integra a Comissão de Defesa Nacional e votará contra o projeto de Erundina. Carlos Newton/Tribuna da Imprensa

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