Tecnologia e Mídia Digital: Será que a verdade ainda importa?
Numa manhã de segunda-feira de setembro do ano passado, a Grã-Bretanha acordou com uma notícia depravada. Ilustração de Sebastien Thimbault/The Guardian O foco deste texto é a política inglesa, mas trocando personagens e situações bem que poderia ser o Brasil. * O primeiro-ministro, David Cameron, havia cometido um “ato obsceno com a cabeça de um porco morto”, segundo o jornal Daily Mail. Um famoso contemporâneo seu na Universidade de Oxford afirma que Cameron participou de uma revoltante cerimônia de iniciação, num evento da Piers Gaveston, envolvendo um porco morto. Piers Gaveston é o nome de um turbulenta sociedade estudantil que promove jantares; segundo os autores da matéria, sua fonte foi um atual parlamentar que disse ter visto provas fotográficas: “Sua extraordinária sugestão é a de que o futuro primeiro-ministro teria introduzido uma parte privada de sua anatomia no animal.”[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] A matéria, extraída de uma nova biografia de David Cameron, deflagrou um delírio imediato. Era asqueroso, era uma grande oportunidade de humilhar um primeiro-ministro elitista e muita gente achou que era verdade por ser Cameron um ex-sócio do infame Bullingdon Club, também elitista. Em poucos minutos, as hashtags #Piggate e #Hameron disparavam no Twitter e até Nicola Sturgeon [atual primeira-ministra escocesa] disse que as acusações estavam “divertindo o país inteiro”, enquanto Paddy Ashdown [político e ex-diplomata] brincou dizendo que Cameron estava “monopolizando as manchetes”. Inicialmente, a BBC recusou-se a mencionar as acusações e a residência do primeiro-ministro informou que não iria “dignificar” a matéria dando uma resposta – mas pouco tempo depois teve que divulgar um desmentido. Portanto, um homem poderoso foi sexualmente desonrado, de uma forma que nada tinha a ver com suas ideias políticas e de uma maneira à qual ele nunca poderia responder. E daí? Ele tinha que aguentar. Depois, após um dia inteiro de alegria online, aconteceu algo espantoso. Isabel Oakeshott, a jornalista do Daily Mail coautora da biografia com Lord Ashcroft, um empresário bilionário, foi à televisão e reconheceu que nem sabia se aquele enorme e escandaloso furo era verdadeiro. Ao responder a pressões para fornecer provas da denúncia assombrosa, Isabel Oakeshott reconheceu que não tinha nenhuma. “Não conseguimos chegar ao fundo das denúncias daquela fonte”, disse ela no programa Channel 4 News. “Portanto, nos limitamos a divulgar a descrição que a fonte nos deu… Não dissemos que acreditamos que seja verdade.” Em outras palavras, não havia provas de que o primeiro-ministro do Reino Unido tivesse, no passado, “introduzido uma parte privada de sua anatomia” na boca de um porco morto – uma matéria que foi divulgada em dúzias de jornais e repetida em milhões de tweets e atualizações no Facebook e que provavelmente até hoje muitas pessoas acreditam ser verdadeira. Isabel Oakeshott até foi mais longe ao tentar livrar-se de qualquer responsabilidade jornalística: “Cabe a outras pessoas decidirem se dão ou não credibilidade à história”, concluiu ela. É claro que esta não foi a primeira vez que denúncias extravagantes foram publicadas com base em provas frágeis, mas a defesa foi extraordinariamente desavergonhada. Parecia que os jornalistas já não tinham que acreditar que suas matérias fossem verdadeiras e, aparentemente, não tivessem que fornecer provas. Ao invés disso, a decisão caberia ao leitor – que nem sabe a identidade da fonte. Mas, com base em quê? Instinto visceral, intuição, disposição? A campanha contra os imigrantes Será que a verdade ainda importa? Nove meses depois de ter acordado dando risadinhas sobre hipotéticas intimidades de David Cameron com um porco, a Grã-Bretanha levantou-se, às 8 horas da manhã de 24 de junho, com a imagem muito concreta do primeiro-ministro, em frente à sua residência oficial, anunciando sua renúncia. “A população britânica votou pela saída da União Europeia e sua vontade deve ser respeitada”, declarou Cameron. “Não foi uma decisão tomada de maneira leviana. Muitas coisas foram ditas, por muitas e distintas organizações, sobre o significado desta decisão. Portanto, não devem haver dúvidas sobre o resultado.” Mas o que logo se tornaria claro é que dúvidas eram o que não faltava. Ao final de uma campanha que dominou o noticiário durante meses, subitamente era óbvio que o lado vencedor não tinha projeto algum para como e quando o Reino Unido sairia da UE – enquanto as falsas denúncias que levaram a campanha pela saída da UE a ser vitoriosa desmoronavam. Às 6:31 da manhã de 24 de junho, pouco mais de uma hora depois que o resultado do referendo se tornou conhecido, o líder do Partido Independente (Ukip), Nigel Farage, reconheceu que um Reino Unido pós-Brexit não teria 350 milhões de libras [R$ 1,5 bilhão] por semana para aplicar no National Health Service [o equivalente ao INSS] – uma denúncia-chave dos que propunham a saída da UE e que, inclusive, estava inscrita no ônibus da campanha. Algumas horas mais tarde, Daniel Hannan, político do Partido Conservador, declarou que o fluxo de imigração provavelmente não seria reduzido – outra denúncia-chave. É claro que não foi a primeira vez que políticos faltaram às promessas que haviam feito, mas talvez tenha sido a primeira vez que na manhã seguinte à vitória reconheceram que as promessas sempre haviam sido falsas. Esta foi a primeira eleição importante na era da política pós-verdade:a apática campanha a favor de ficar na UE tentou contrapor fatos às fantasias, mas logo percebeu que a circulação do fato havia sido profundamente falsificada. Os fatos inquietantes dos que defendiam ficar na UE e os especialistas preocupados foram descartados como “Projeto Medo” – e rapidamente neutralizados por “fatos” opostos: se 99 especialistas diziam que a economia iria desmoronar e alguém discordava, a BBC dizia-nos que cada lado tinha uma visão diferente da situação. (Este é um erro catastrófico que acaba ocultando a verdade e reflete como algumas pessoas divulgam as mudanças climáticas.) Michael Gove declarou no programa Sky News que “as pessoas deste país já se cansaram de especialistas”.Também comparou 10 economistas vencedores do Prêmio Nobel que assinaram uma carta aberta contra a saída da UE aos cientistas nazistas fiéis a Hitler. Durante meses, a imprensa eurocética