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Manoel de Barros – Poesia – 21/01/24

Boa noite Soberania Manoel de Barros¹ Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo do vento escorregava muito e eu não consegui pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado e disse que eu tivera um vareio da imaginação. Mas que esses vareios acabariam com os estudos. E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio. E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria das idéias e da razão pura. Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande saber. Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo — o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase: A imaginação é mais importante do que o saber. Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias asas. E vi que o homem não tem soberania nem pra ser um bentevi. ¹ Manoel Wenceslau Leite de Barros * Cuiabá, MT. – 19 de Dezembro de 1916 + Campo Grande, MS – 13 de Novembro de 2014

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Manoel de Barros – Poesia – 30/10/23

Boa noite O menino que carregava água na peneira Manoel de Barros ¹ Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos. Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque gostava de carregar água na peneira descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos. ¹ Manoel Wenceslau Leite de Barros * Cuiabá, MT. – 19 de Dezembro de 1916 d.C + Campo Grande, Mato Grosso do Sul – 13 de novembro de 2014 d.C

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Manoel de Barros – Poesia – 24/06/24

Boa noite A namorada Manoel de Barros ¹ Havia um muro alto entre nossas casas. Difícil de mandar recado para ela. Não havia e-mail. O pai era uma onça. A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por um cordão E pinchava a pedra no quintal da casa dela. Se a namorada respondesse pela mesma pedra Era uma glória! Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da goiabeira E então era agonia. No tempo do onça era assim. ¹ Manoel Wenceslau Leite de Barros * Cuiabá, MT. – 19 de Dezembro de 1916 +Campo Grande, MS. – 13 de novembro de 2014

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Manoel de Barros – Versos na tarde – 17/01/2017

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada de “O Guardador de Águas” Manoel de Barros ¹ I Não tenho bens de acontecimentos. O que não sei fazer desconto nas palavras. Entesouro frases. Por exemplo: – Imagens são palavras que nos faltaram. – Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem. – Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser. Ai frases de pensar! Pensar é uma pedreira. Estou sendo. Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo) Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos. Outras de palavras. Poetas e tontos se compõem com palavras. II Todos os caminhos – nenhum caminho Muitos caminhos – nenhum caminho Nenhum caminho – a maldição dos poetas. III Chove torto no vão das árvores. Chove nos pássaros e nas pedras. O rio ficou de pé e me olha pelos vidros. Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados. Crianças fugindo das águas Se esconderam na casa. Baratas passeiam nas formas de bolo… A casa tem um dono em letras. Agora ele está pensando – no silêncio Iíquido com que as águas escurecem as pedras… Um tordo avisou que é março. IV Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos. Ela pode ser o germe de uma apagada existência. Só trolhas e andarilhos poderão achá-la. Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão. Andei nas pedras negras de Alfama. Errante e preso por uma fonte recôndita. Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor! V Escrever nem uma coisa Nem outra – A fim de dizer todas Ou, pelo menos, nenhumas. Assim, Ao poeta faz bem Desexplicar – Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes. VI No que o homem se torne coisal, corrompem-se nele os veios comuns do entendimento. Um subtexto se aloja. Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das palavras. Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas Coisa tão velha como andar a pé Esses vareios do dizer. VII O sentido normal das palavras não faz bem ao poema. Há que se dar um gosto incasto aos termos. Haver com eles um relacionamento voluptuoso. Talvez corrompê-los até a quimera. Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los. Não existir mais rei nem regências. Uma certa luxúria com a liberdade convém. VII Nas Metamorfoses, em 240 fábulas, Ovídio mostra seres humanos transformados em pedras vegetais bichos coisas Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisal, larval, pedral, etc. Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural – Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às crianças que foram às rãs que foram às pedras que foram. Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua. Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos? Seria uma demência peregrina. IX Eu sou o medo da lucidez Choveu na palavra onde eu estava. Eu via a natureza como quem a veste. Eu me fechava com espumas. Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas. Peguei umas idéias com as mãos – como a peixes. Nem era muito que eu me arrumasse por versos. Aquele arame do horizonte Que separava o morro do céu estava rubro. Um rengo estacionou entre duas frases. Uma descor Quase uma ilação do branco. Tinha um palor atormentado a hora. O pato dejetava liquidamente ali. ¹ Manoel Wenceslau Leite de Barros * Cuiabá, MT. – 19 de Dezembro de 1916 + , Campo Grande, Mato Grosso do Sul – 13 de novembro de 2014 [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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