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O quanto de Hitler há em Wagner?

Ditador nazista era fã ardoroso da música do compositor e presença constante no Festival de Bayreuth, que inicia série de simpósios destinados à análise crítica da obra de Wagner. Hitler entre Winifred e Wieland Wagner, na abertura do Festival de Bayreuth, em 24 de julho de 1938[ad name=”Retangulo – Anuncios – Duplo”] Na tela, um convidado simpático, gentil e elegante, trajando smoking e gravata borboleta, conversa de forma descontraída com a diretora do festival e com os netos de Wagner. De repente, um alerta interrompe a exibição: “Parem o filme! Desligue o celular! Gravações são estritamente proibidas!” Pouco depois, a exibição é retomada. As gravações são proibidas durante a exibição dessa película histórica no Museu Richard Wagner, na Casa Wahnfried, em Bayreuth, porque uma possível difusão pela internet significaria uma infração aos direitos de imagem de uma das pessoas que aparecem nela: Verena Wagner, a última neta viva de Richard Wagner. O filme pertence ao espólio de um outro neto, Wolfgang Wagner, que o gravou quando tinha apenas 16 anos. A gravação foi exibida durante o simpósio Wagner no Nacional-Socialismo – sobre a questão do pecado original na arte. O que se vê na tela são imagens do Festival de Bayreuth de 1936: a subida até o Teatro do Festival, no alto da colina; o diretor Heinz Tietjen; o ministro da Propaganda, Josef Goebbels; o dirigente Wilhelm Furtwängler; uma sorridente Winifred Wagner, a diretora do festival e mãe de Wolfgang. E, depois da apresentação, o Führer no palco, ao lado do coral e dos solistas, recebendo os aplausos da plateia. A saudação nazista é feita várias vezes. Quem assiste às imagens não consegue evitar o desconforto de ver Hitler ser apresentado como uma pessoa agradável e simpática. Wagner no palco como antissemita Já quem esperava que o simpósio sobre Wagner e o nazismo trouxesse revelações sensacionais saiu dele decepcionado. O tema também não é nenhuma novidade em Bayreuth, como lembra o diretor do festival, Sven Friedrich. Ao longo dos próximos anos, a temática deverá ser aprofundada, em seus vários aspectos, na série de simpósios “Discurso Bayreuth”, que integra a programação paralela do festival. Richard e Cosima Wagner Já nos anos 1980 e 1990 houve uma exposição e um simpósio com o nome Hitler e os judeus. Nas proximidades do busto de Richard Wagner, na Colina Verde, ainda pode ser vista a exposição Vozes caladas, de 2012, sobre os colaboradores judeus do Festival de Bayreuth e o que aconteceu com eles. E, desde a abertura do Museu Richard Wagner, em 2015, o local tematiza também a evolução das convicções ideológicas do compositor. Mas o assunto está longe de ter se esgotado. Declarações como “mas Wagner não tem culpa disso” ou “vamos ignorar toda essa imundice que foi associada a Wagner” podem ser ouvidas ainda hoje. Friedrich lembrou a “dimensão metapolítica da obra de Wagner, que a tornou assimilável pelos nazistas”. O simpósio começou com um debate intenso sobre a atual encenação de Os mestres cantores de Nurembergue, sob responsabilidade do dirigente australiano Barrie Kosky, que tem raízes judaicas. Ele apresentou Wagner no palco, pela primeira vez, como um antissemita e, com os seus cenários – por exemplo o salão dos Julgamentos de Nurembergue –, incluiu o histórico de encenações da obra na sua interpretação. Para a autora alemã Irmela von der Lühe, a encenação de Kosky é a concretização de uma exigência que o escritor Thomas Mann fizera já em 1947. Ao palestrar sobre as relações entre Mann e Bayreuth, Von der Lühe lembrou que o Prêmio Nobel de Literatura de 1929, que então vivia no exílio californiano, rejeitou o convite para ser presidente de honra de uma planejada fundação para a reabilitação do desacreditado Festival de Bayreuth, ao menos “enquanto não estiver às claras tudo o que houver sobre o pecado original de Bayreuth”. Encenação tematiza antissemitismo de Wagner E em 2017 já está tudo às claras? O espólio de Wolfgang Wagner foi entregue ao arquivo histórico da Baviera em 2013 e levará anos para ser estudado. Outras fontes devem estar faltando, o que não se sabe exatamente. Mas uma encenação como esta de Kosky teria sido possível em 1951, na reabertura do Festival de Bayreuth? Em vez de uma enfrentamento crítico com o histórico da obra, o que se viu então foi uma encenação descompromissada e focada no aspecto mítico, a cargo de Wieland Wagner. Trata-se de repressão do passado? Uma coisa é certa: havia muitos convidados do exterior na reinauguração, sobretudo da França, e entre eles muitos judeus que sobreviveram ao Holocausto e eram admiradores fervorosos de Wagner. O reinício do Festival de Bayreuth foi acompanhado com interesse em todo o mundo. Uma questão de música ou ideias? Em 1949, Thomas Mann escreveu, numa carta:  “Está lá – na fanfarrice, no eterno ficar dando discurso, na necessidade de falar mais alto que os outros, de querer dar palpite em tudo – uma inominada imodéstia que serviu de modelo a Hitler – com certeza, há muito ‘Hitler’ em Wagner.” Ainda assim, Mann via Wagner mais como um cosmopolita europeu do que como um proto-nazista. E muito antes da catástrofe da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, esse crítico de primeira hora de Hitler escreveu: “A ideia de que esse velhaco idiota por lá desfrute de um romantismo heroico-açucarado é repulsiva para além de todas as medidas.” Com frequência se constata que o espírito no qual Wagner escreveu suas obras é, desde o início, racial e antissemita. Esse aspecto foi abordado na palestra Hitler e sua Bayreuth à parte: Richard Wagner como analista do século 20, da escritora suíça Micha Brumlik. Segundo ela, no artista há “processos pré-conscientes e inconscientes que se incorporam em seu trabalho, e o que se manifesta é mais do que o autor pretendia.” O uso que os nazistas fizeram de Wagner e a bajulação do Festival de Bayreuth em torno de Hitler costumam ser apresentados como mal-entendidos ou relativizados com o argumento do distanciamento histórico, afinal Wagner morreu em 1883. Em 1923, porém, o genro de Wagner, Houston Stewart Chamberlain, e a nora do compositor, Winifred Wagner, saudaram Hitler como o novo Parsifal e

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E se os nazistas tivessem vencido a Segunda Guerra Mundial?

E se? Talvez a mais curtas das perguntas, mas nem de longe a mais simples. E que inspirou um grande número de escritores a imaginar cenários em que o mundo que conhecemos muda radicalmente. Na série da Amazon, avanço atômico nazista foi mais rápido que o americano Essa especulação voltou com força total recentemente graças ao lançamento da série americana The Man in he High Castle, em que os Estados Unidos e os aliados perdem a Segunda Guerra Mundial para Alemanha e Japão. Mas a prática de imaginar cenários é milenar: ainda no Império Romano, o historiador Tito Lívio fez, em sua coleção de livros sobre a fundação da cidade, conjecturas sobre o que teria acontecido se as conquistas de Alexandre, o Grande, tivessem expandido seu império para o oeste em vez do leste.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Milenar No século 19, o escritor Nathaniel Hawthorne escreveu o conto P’s Correspondence, em que reimagina o ano de 1845 sem a morte de uma série de políticos e outras personalidades. Este é também o mote para A Felicidade Não Se Compra, um dos filmes de Natal mais famosos da cultura anglófona, em que o personagem George Bailey vê um mundo alternativo em que ele jamais nasceu. A famosa Times Square, em Nova York, aparece bem diferente em uma realidade alternativa – Image copyright Amazon Mas The Man in the High Castle adota tons mais ousados. Exibido apenas em serviço de streaming pela Amazon Video, a série é baseada em um livro de Phillip K Dick, o venerado autor de ficção científica também conhecido por Blade Runner – O Caçador de Androides. Na série, os são EUA “loteados” entre alemães e japoneses. Já no primeiro episódio, que se passa no ano de 1962, um dos personagens principais é visto caminhando por uma Nova York repleta de símbolos nazistas, incluindo uma versão da bandeira americana adornada por uma suástica. Em outra, a Estátua da Liberdade está vestida como se fosse comparecer a um dos notórios comícios de Adolf Hitler – e “faz” a saudação com o braço direito erguido. As imagens causaram controvérsia e o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, ordenou a remoção da anúncios da série dos trens do metrô. O uso da Estátua da Liberdade na divulgação da série criou polêmica nos EUAImage copyright Amazon No universo de Dick, os cientistas alemães venceram a corrida nuclear contra os americanos, e as tropas de Hitler vencem a guerra após detonar um bomba atômica sobre Washington. A principal parte do território americano fica com Berlim enquanto o Japão assume o controle da Costa Oeste, incluindo a Califórnia. Mas a trama gira em torno de um misterioso filme no qual imagens do mundo que conhecemos, em que os aliados venceram, são traficadas a pedido de um misterioso cineasta. O mistério está em como essa realidade alternativa é possível e a razão pela qual autoridades nazistas e japonesas reprimem com extrema violência a circulação do filme, além de tentar a todo custo descobrir a identidade do homem que produziu as imagens. Há também interessantes trama políticas envolvendo a sucessão de Adolf Hitler, que nessa realidade alternativa ainda está vivo e comandando suas tropas. E o crescimento de tensões políticas entre Berlim e Tóquio. As reações no mundo real mostram o verdadeiro objetivo de histórias com uma linha temporal alternativa: elas são reflexo de nossos medos e de temores que surgem de ideias sobre outros rumos que a vida teria tomado. Keith Uhlich/BBC Culture

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O que o ressurgimento do fascismo pode nos ensinar

Pensamos que ele tinha desaparecido de vez. Foi um engano. Eis aqui por que. Veja um pequeno exercício de reflexão. Por Umair Haque¹ Publicado originalmente no site Bad Words, integrante da plataforma Medium. Se no natal passado eu lhe tivesse dito que o principal candidato a presidente do país mais poderoso do mundo tivesse dito, abertamente, que concordava com a venda de armas, com campos de concentração, com proibições extrajudiciais e com direitos de sangue, a menos que você fosse um sócio atuante da Internacional dos Teóricos da Conspiração, você provavelmente teria dado uma gargalhada na minha cara. E, no entanto… Aqui estamos nós, precisamente nessa realidade. E não se trata apenas de Donald Trump. O espectro mais tenebroso da política global, aquele que pensávamos ter sido exorcizado, de alguma maneira foi convocado e renasceu: é o ressurgimento do fascismo. Aquilo que chamarei, nesta pequena série de ensaios, de novo fascismo é um fenômeno global.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Marine Le Pen, a mais extremista dos políticos que contestam as lideranças nacionais desde Hitler… triunfou, com um terço dos votos, no primeiro turno das eleições de dezembro na França [1]. O mundo procura equilibrar-se à beira do precipício de uma Era das Trevas do Novo Fascismo – que se levanta, como um cérebro, da Escandinávia à Europa e da Turquia à Austrália. Acredito que o Novo Fascismo, em sua individualidade, é o acontecimento político mais importante de nossas vidas. Trata-se de um momento crítico para a sociedade global – um momento decisivo. E, como todo momento decisivo, é um teste. Um teste que avalia o melhor de nós: se as sociedades civilizadas podem, de fato, continuar civilizadas, no sentido mais essencial dessa expressão – ou se corremos o risco de mergulhar, outra vez, numa era de guerra mundial e genocídio. Isso lhe parece um exagero? Então, torne a ler o primeiro parágrafo deste ensaio e pergunte a si próprio se esperava que um possível presidente norte-americano defendesse campos de concentração… apenas um ano atrás. A primeira coisa que você precisa aprender sobre a ascensão do fascismo é que ele desafia suas expectativas de um mundo sensato. Ninguém espera – como na famosa frase do Monty Python – a Inquisição Espanhola. Um produto de uma inconveniência econômica Por conseguinte, eu irei discutir o Novo Fascismo nesta série de ensaios. No primeiro ensaio, explicarei sua ascensão; no segundo, a sua dinâmica: por que cresce tão rapidamente, pegando todo mundo de surpresa; no terceiro, discutirei como combatê-lo – se, na verdade, for possível combatê-lo. Então, como ele surgiu? Minha explicação é simples – mas exigirá que você faça uma reflexão cuidadosa. Irei argumentar que o fascismo é um produto do extremismo – tanto de esquerda quanto de direita. Que o extremismo acabou com o centro – o que criou um vácuo no qual nasceram os Novos Fascistas, que combinam os piores elementos da esquerda e da direita. Para começar, deixem-me dar uma ideia geral das quatro etapas pelas quais o fascismo cresce. Meu ensaio está incompleto e é simplificado em excesso, com certeza. Não pretendo escrever uma história definitiva do fascismo: simplesmente apresentar um retrato cru que possa ser usado para compreendermos em que etapa estamos. Eis aqui a etapa incipiente do fascismo: vamos chamá-la estagnação. O fascismo é sempre um produto de uma inconveniência econômica. A inconveniência cria uma sensação ardente de injustiça. O bolo da riqueza encolhe, desmorona e se deteriora. As sociedades começam a disputar a quem pertencem as fatias, que vão ficando cada vez mais finas, cada vez mais emboloradas. Seres existencialmente inferiores E aqui vem a segunda etapa do fascismo: vamos chamá-la demagogia. Surge uma briga entre os líderes no sentido de fazer alguma coisa em relação ao problema da estagnação. Tanto a esquerda quanto a direita vão ficando mais extremadas. E aí acaba o centro. O vácuo que o centro ocupava dá espaço para um tipo de político inteiramente novo – um tipo de político que normalmente era freado pela esquerda em sua luta contra a direita, mas agora livre para combinar o que há de pior na esquerda e na direita. Logo aparece um demagogo, que grita: o bolo pertence ao povo – e só ao povo! Ele sintetiza o que há de pior, tanto na esquerda quanto na direita. É um socialista, mas só para as pessoas certas. Mas também é um nacionalista e não reivindica apenas domínio e recursos, como terra: ele reivindica a superioridade, pelo sangue ou por deus, de um povo, para além dos recursos. Daí a expressão, paradoxal, “nacional socialismo”. A perigosa apelação do demagogo é a seguinte: ele localiza a fonte de estagnação naqueles que não têm pertencimento, que são inferiores – não apenas moral, mas existencialmente – e os aponta com o dedo, aponta o veneno dentro da sociedade. É muito mais fácil acreditar que a sociedade está sendo envenenada por um conjunto de pessoas corruptas que não pertencem a ela, do que acreditar que o contrato social acabou e deve voltar a ser escrito – e assim se abre o caminho do demagogo para o poder. E chegamos ao terceiro estágio do fascismo: a tirania. Mas quem é “o povo”? Quem é, de fato, inferior e quem é superior? Quem merece os frutos do nacional socialismo – o direito a consumir fatias do bolo que encolhe, que é do que trata toda esta ideologia? E aí vem à tona a noção de volk: os verdadeiros moradores da terra, os herdeiros do destino, o direito de nascer, a superioridade. E como os definiríamos? Afinal, essa é uma pergunta traiçoeira, que não admite certezas óbvias. Você merece os recursos da Nação-Sociedade simplesmente por ter nascido ali? Ou porque você viveu ali? Ou seria porque seus avós já nasceram ali? É justamente a essas perguntas que a Nação-Sociedade, Na-Zi, começa a dedicar seus recursos. Imensas burocracias são organizadas, trilhas de papel são criadas, investigações são realizadas. E aqui chegamos à última etapa: a autodestruição. Busca-se saber quem é um

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Kadafi: chega ao fim mais uma ditadura sanguinária

Cuidem-se, mas será inútil, os ditadores e demais pulhas que infernizam a vida de seus povos. Como um dominó, é inexorável a queda de todas as peças que tiranizam nações. Embora a execução do ditador Líbio tenha sido uma barbárie, é compreensível a fúria vingativa da população que padeceu 42 anos sob o tacão do psicopata. As impressionantes fotos de Kadafi executado pelos rebeldes, certamente estão censuradas em Cuba, China – essa, brutal tanto quanto, mas cinicamente não combatida devido aos interesses do capital -, Coréia do Norte e outros feudos comandados por ditadores e genocidas de todos os matizes. Fidel e cia., sabem que um dia a casa cai e aí a turba irá cobrar a conta. Desde os brioches de Maria Antonieta que oprimidos não aceitam comer o pão que o diabo amassou. Essa é a lei do retorno. O Editor O fim da era Kadafi Com o fim de Kadafi, que teria sido morto em confronto com os “rebeldes” na cidade de SIRTE, ainda não se sabe com certeza as circunstâncias da morte do ex-ditador, o certo é que se inicia uma nova fase política, econômica e militar na Líbia. As cidades foram destruídas pelos bombardeios das forças militares da OTAN, notadamente a capital Trípoli. Será preciso um esforço espetacular voltado para a reconstrução da infraestrutura do país. As instalações petrolíferas estão em frangalhos. Para completar, os líbios terão que indenizar o esforço de guerra, ou seja, todos os gastos da máquina de guerra da OTAN. Como farão isso: lógico que será com o recurso natural (petróleo) em abundância no solo líbio. O fim (morte) de Kaddafi é uma magistral lição de vida, com toda a contradição que a tragédia encerra. Trata-se do exemplo de que quem com o ferro fere com o ferro será ferido. Podem durar 40 anos ou 40 meses, não importa o tempo, um dia o raio cai na cabeça daquele que usou a espada, de quem torturou e matou sem dó nem piedade. O ocaso de ditadores e opressores de seus povos segue o mesmo rito que atingiu hoje o coronel Kaddafi. Só para lembrar tempos passados, Hitler, Mussolini, o rei Luiz XVI, Maria Antonieta, Danton, Robespierre, Marat, Nero, Saddan Hussen foram para o espaço e seus exemplos foram solenemente ignorados, porque os ditadores de plantão pensam que serão eternos. Talvez seja uma questão de inteligência. Ou não, como diz o poeta Caetano. E a vida segue seu curso inexoravelmente. Roberto Nascimento/Tribuna da Imprensa

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A Profecia e a crise financeira mundial

Mais conhecido por sua contribuição às modernas Constituições – a doutrina da separação entre os três poderes exposta no clássico “O espírito das leis” (1748) -, Charles-Louis de Secondat, senhor de La Brède e Barão de Montesquieu, teceu “Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência” (1734). “Como os romanos [americanos] se dedicavam às guerras [às finanças] e a consideravam a única arte, empenhavam todo seu espírito e todo seu pensamento à tarefa de aperfeiçoá-la. Mas os romanos [americanos] dominaram todos os outros povos não somente pela arte da guerra [das finanças], e sim também por seus princípios [sua ética do trabalho], sua sabedoria [sua precaução], sua persistência [sua poupança], seu amor à glória [ao empreendedorismo] e à pátria. Os romanos [americanos] tiveram um período contínuo de prosperidade sob um conjunto de princípios, e um período contínuo de declínio quando se estiolaram todas essas virtudes.” As cenas iniciais do filme “O gladiador” popularizaram batalhas infernais entre as tribos germânicas e a formidável máquina de guerra romana. A belicosidade dos bárbaros, a fúria musical de Wagner, a vontade de poder em Nietzsche, a disciplina militar prussiana, o nacionalismo com a vitória de 1870 sobre a França e a unificação da Alemanha, em 1871, sugeriam um espírito guerreiro de Frederico, O Grande, de Bismarck, o Chanceler de Ferro, e de Hitler, o nacional-socialista, que só duas guerras mundiais poderiam atenuar. Será que só duas Grandes Depressões poderiam atenuar o espírito financista dos americanos? Dizem deles os ingleses que são o único povo na História que saiu da barbárie e passou ao declínio sem experimentar a civilização. Deliciosa ironia, mas certamente uma dose exagerada de desprezo aristocrático pela democrática vulgaridade dos hábitos e costumes de sua ex-colônia. E também uma enorme dor-de-cotovelo por seu extraordinário desempenho político, econômico e tecnológico. Até recentemente. “Restava aos romanos [americanos] a arte militar [a prática das finanças]. Mas depois que a corrupção e o vício [os excessos] se instalaram nos próprios exércitos [nas instituições financeiras], o império fundado pelas armas [sobre as finanças] não mais se sustentaria, nem mesmo pelas armas [pelas finanças]”, concluía Montesquieu. Ao assumir a presidência do banco central americano em 1979, em meio ao caos inflacionário, Paul Volcker ouviu de um amigo a seguinte profecia: “Seu destino é fazer com que o declínio dos Estados Unidos na economia mundial ocorra de forma respeitável e ordeira”. Tendo escapado por seus próprios méritos ao amargo vaticínio nos anos 80, e agora chamado para presidir o Conselho Assessor para a Recuperação Econômica pelo presidente Barack Obama, Volcker retorna para cumprir a profecia, condenado pela herança de Greenspan e de seu aprendiz Ben Bernanke. do O Globo – Paulo Guedes

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Judeus, Palestinos e Hitler

A equilibrada e racional reflexão de um historiador e jornalista brasileiro sobre o conflito no Oriente Médio. Marcos Guterman, no artigo reproduzido abaixo, não poupa os radicais de ambos os lados. A Hitler o que é de Hitler por Marcos Guterman¹ – Blog O Estado de São Paulo Guerras, por definição, sinalizam rupturas. Enquanto a diplomacia oferece portas de saída, o conflito armado só se justifica pela decisão de destruir o inimigo e aquilo que ele representa. E a destruição não pode ser apenas militar ou material; ela tem de se dar também, e sobretudo, no campo moral. O conflito que simboliza melhor esse conceito é a Segunda Guerra Mundial, que passou à história como a luta contra o mal absoluto, resumido no nazismo. Hitler e sua ideologia insana tornaram-se paradigmas daquilo que deve ser combatido sem trégua e sem quartel, em nome da humanidade. Por isso, mesmo passadas seis décadas do fim do conflito, o nazismo continua sendo a referência mais implacável que alguém pode usar quando pretende desqualificar completamente seu inimigo no campo de batalha da opinião pública e da justificativa moral. O caso da presente guerra entre Israel e Hamas mostra justamente os exageros dessa retórica. Em artigo publicado no Wall Street Journal, o líder da oposição israelense Benjamin Netanyahu comparou os ataques do Hamas no sul de Israel à blitz aérea promovida pela Alemanha de Hitler contra Londres. Já do lado palestino, Mustafa Barghouti escreveu um texto no jornal egípcio Al-Ahram, a respeito da ofensiva israelense, cujo título é “A Guernica dos palestinos”, em referência ao dramático bombardeio nazista contra essa cidade espanhola em 1937. Trata-se de um óbvio exagero, de ambos os lados, e é um exagero calculado. Ao igualar os palestinos aos nazistas, Netanyahu simplifica grosseiramente o quadro com o objetivo de invocar, no imaginário israelense, o pesadelo da “solução final”. Não é possível, em qualquer sentido, dar pesos semelhantes às forças nazistas e ao limitado poder de fogo do Hamas, ainda que este, a exemplo de Hitler, tenha como objetivo eliminar os judeus. Netanyahu, além disso, se esquece de informar que os palestinos vivem em situação de desespero – que gera grandes ressentimentos – em parte como resultado das ações brutais e dos erros de Israel ao longo de mais de 40 anos de ocupação, com laivos de apartheid. Barghouti, por sua vez, recorre à velha fórmula anti-semita de comparar os israelenses aos nazistas. É uma fórmula de duplo objetivo, ambos perversos. Primeiro, iguala a vítima ao seu maior algoz, um algoz que reduziu a população judaica na Europa de 9,5 milhões para 3,5 milhões de seres humanos em menos de dez anos. Ele poderia ter comparado os israelenses aos americanos, por exemplo, mas isso não teria o efeito desejado, qual seja, o de ligar os judeus ao mal absoluto. O segundo objetivo da fórmula é diminuir a importância e a singularidade do Holocausto, para então adaptar a impactante imagem do extermínio em massa perpetrado pelos nazistas a qualquer outra circunstância conveniente – por exemplo, a morte de palestinos por israelenses. A retórica que Netanyahu e Barghouti aplicaram, em lugar de explicar o conflito, obscurece ainda mais o já complicado quadro das tensões no Oriente Médio. Argumentos desse tipo podem até fazer um grande sucesso entre gente oportunista e panfletária – um bom exemplo foi a grosseira nota em que o PT acusou os israelenses de “prática típica do Exército nazista” -, mas eles definitivamente não ajudam a entender a crise nem muito menos a construir pontes para sua superação. Para o bem do debate, deixemos a Hitler o que é de Hitler. ¹Marcos Guterman é historiador e jornalista de O Estado de S.Paulo

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