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O goleiro Bruno e a bola murcha do judiciário brasileiro

Caso Bruno, um retrato incômodo do sistema penal brasileiro STF mandou soltar Bruno por demora no julgamento de recurso. TJMG/DIVULGAÇÃO Soltura do goleiro joga luz sobre lentidão dos processos e o excesso de presos provisórios. O goleiro Bruno Fernandes de Souza deixou a cadeia no fim de fevereiro após cumprir quase sete anos de prisão.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Duplo”] Condenado a 22 anos e 3 meses como o mandante do assassinato da modelo Eliza Samudio, ele fechou contrato com um novo clube, o Boa Esporte, de Minas Gerais, nesta sexta-feira, embora sua situação legal seja provisória. O caso vem despertando não só a revolta de diversos grupos feministas, que veem a banalização de um crime bárbaro praticado contra uma mulher, como expõe as fragilidades do sistema penal no Brasil. Bruno foi condenado em primeira instância no Dia Internacional da Mulher, em 8 de março de 2013. Recorreu e seguia preso obedecendo a uma ordem de prisão preventiva. A demora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais em analisar seu recurso já durava quase quatro anos quando, no fim de fevereiro, Bruno recebeu um habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Marco Aurélio Mello avaliou que a falta de decisão sobre seu recurso não poderia justificar que ele permanecesse preso, já que o ex-goleiro ainda não foi julgado em segunda instância. A repercussão pela libertação foi tamanha que, na última terça-feira, o TJ de Minas Gerais lançou nota pública para justificar a dilatação dos prazos, culpando a estratégia de defesa dos cinco réus do caso de tornar a tramitação mais lenta com excesso de recursos. A lentidão da Justiçanão é exclusividade do caso Bruno, mas suas consequências se tornam mais visíveis porque se trata de um crime de grande repercussão. Como explica o professor de direito processual penal da PUC-RS, Aury Lopes Júnior, as causas da morosidade residem, em linhas gerais, na sobrecarga do Judiciário e na falta de regras claras (ou na existência de regras frouxas) para determinar prisões temporárias e prisões preventivas. “É um absurdo que o Brasil ainda não tenha estabelecido um prazo máximo para a duração da prisão preventiva. Isso abre espaço para a violação do direito de ser julgado em um período razoável. Por causa da burocracia cartorária e do abarrotamento de varas criminais e tribunais, que claramente não dão conta da demanda, os processos passam tempo demais na prateleira, coisa de seis, sete anos. Tem muita gente presa de forma preventiva há bem mais tempo que o Bruno esteve”, diz Lopes Júnior. Embora nunca tenha admitido ser o mandante do assassinato de Eliza Samudio, Bruno já afirmou várias vezes, inclusive diante do júri, que foi “omisso” em relação a um suposto conflito entre Eliza e o amigo Macarrão, condenado pela execução do crime, que segue preso. Pouco depois da condenação, em 2014, o goleiro tentou articular sua volta aos gramados. Naquela ano, fechou contrato com o mineiro Montes Claros Futebol Clube, mas o TJ de Minas não autorizou sua saída da prisão para treinos e jogos, alegando que o privilégio do trabalho externo não estava previsto legalmente para condenados em regime fechado. Agora, em liberdade provisória, Bruno prepara o retorno à atividade, não sem novos imbróglios legais. Mesmo com contrato firmado até 2019 com o Montes Claros, que lhe cobra indenização rescisória, Bruno acaba de assinar um compromisso com outro clube de Minas Gerais, o Boa Esporte. O problema é que ele pode voltar para a prisão antes mesmo do reestrear no futebol, caso seu recurso, ainda pendente, seja julgado improcedente. O advogado Lúcio Adolfo, responsável pela defesa de Bruno, disse ao EL PAÍS não acreditar nessa hipótese. “Com o Bruno preso demoraram quatro anos para julgar o recurso. Não é possível que, agora, que ele está solto, vão querer acelerar as coisas, né?” Para André Machado Maya, doutor em ciências criminais e professor de direito penal, a prisão de um réu condenado em primeira instância por quatro anos, tendo recorrido da sentença, configura uma “situação excepcional”, que extrapola até mesmo os prazos mais prolongados da detenção provisória. “Não vejo o habeas corpus do Bruno como um privilégio. Apesar dos entraves burocráticos que atrasam a apreciação dos recursos, os processos no Brasil costumam andar mais rápido que isso. Em qualquer circunstância, independentemente do crime cometido pelo réu, quatro anos de prisão preventiva é um prazo excessivo”, afirma Maya, que também atua como secretário do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (Ibraspp). Bruno foi contratado pelo Boa Esporte, de Varginha. DIVULGAÇÃO Em fevereiro, o professor participou de uma audiência pública na comissão especial instalada pela Câmara dos Deputados que analisa mudanças no Código de Processo Penal. O principal tema da audiência foi o abuso na aplicação da prisão preventiva — um debate que envolve até os detidos pela Operação Lava Jato — e temporária. Um levantamento do Departamento Penitenciário Nacional aponta que 45% da população carcerária é composta por presos provisórios, o que corresponde a quase 300.000 detentos. O déficit de defensores públicos — menos de 30% das comarcas no Brasil são atendidas pela Defensoria Pública, de acordo com a Associação Nacional dos Defensores Públicos — agrava a condição dos presos que não têm recursos para contratar advogados. No pronunciamento sobre o caso Bruno, o TJ de Minas argumentou que “presos pela Justiça, de igual modo ao ex-goleiro cumprindo pena de condenação superior a 20 anos, aguardando julgamentos de recursos de apelação, existem milhares no Brasil”. “Nosso modelo de execução penal é arcaico, ineficiente e conservador”, diz Maya. “É preciso adotar uma postura mais criteriosa em relação à prisão preventiva, que hoje representa um sério problema para o sistema prisional, sobretudo se levarmos em conta que o número de presos provisórios equivale ao déficit de vagas nas penitenciárias brasileiras.” A junção entre a morosidade da Justiça, o encarceramento em massa e a banalização da prisão preventiva aumenta tanto as chances de acúmulo de penas desproporcionais e arbitrariedades como a libertação de possíveis culpados ou a manutenção de inocentes presos em regime fechado, que, em

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Por que mulheres ficaram contra a vítima de estupro coletivo no Rio?

Dupla de advogados tenta responder por que parte da sociedade ainda culpa a jovem pelo crime. Manifestação em São Paulo na quarta-feira contra o machismo e em protesto ao estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio. M. SCHINCARIOL AFP “A cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil e a culpa nunca é da vítima”. A voz, saída de um megafone no entardecer na avenida Paulista na última quarta-feira, deu início a uma marcha – de mulheres em sua maioria – contra o machismo e em protesto ao estupro coletivo de uma jovem de 16 anos ocorrido no Rio de Janeiro na semana passada. A segunda informação da frase que abriu a marcha – “a culpa nunca é da vítima” – deveria ser óbvia. Mas não é.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] MAIS INFORMAÇÕES Compartilhar estupro coletivo nas redes, a nova versão da barbárie brasileira “Estuprador também é o branco que se veste bem e tem dinheiro” As vozes da multidão que grita contra a cultura do estupro em São Paulo Carmen Lúcia sobre estupro coletivo: “Inadmissível, inaceitável e insuportável” Alguma vez um desconhecido tocou você sem seu consentimento? Assim que a notícia sobre o estupro da adolescente começou a ser veiculada na imprensa, a sociedade se dividiu entre os que condenaram o crime e os que culparam a garota pelo ocorrido. Mulheres, inclusive, atribuíram à vítima a responsabilidade pelo crime. Em busca de tentar entender por que parte da sociedade ainda culpa a vítima por um crime como esse, incluindo mulheres que não se solidarizam com a dor da vítima, a advogada Verônica Magalhães de Paula e o delegado e professor da Unisal, Eduardo Cabette, publicaram o estudo “Crime de estupro: até quando julgaremos as vítimas?”. A publicação é de 2013, mas para o nosso azar, o tema é atemporal. E com séculos de história. De acordo com o texto, “mesmo em plena aurora do século 21, as mulheres ainda são julgadas como na Idade Média, onde somente a mulher honesta e virgem poderia ser vítima de crime de estupro e desde que também ficasse comprovado que ela havia lutado e gritado por socorro, pois o silêncio da vítima significava o consentimento do ato praticado”. Para Verônica de Paula, parte da sociedade julga a vítima por ela não se enquadrar nos padrões idealizados da mulher correta, aquela que é casada e cuida do marido e dos filhos. “Somos educadas desta forma”, diz. “A mulher tem que ser submissa, recatada, falar baixo, sair de casa apenas para ir ao trabalho, no máximo”. O estudo compara dois casos que ocorreram em 2012. Um, aqui no Brasil, de duas adolescentes de 16 anos que foram estupradas por seis integrantes de uma banda de pagode, a extinta New Hit, na Bahia. Na época, houve protestos contra a prisão dos criminosos. As vítimas foram ameaçadas de morte e tiveram que entrar no Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçados de Morte, assim como a vítima do estupro no Rio de Janeiro de duas semana atrás. O outro caso foi o de uma mulher de 23 anos que sofreu um estupro coletivo na Índia, quando voltava para a casa, em um ônibus. Ela não resistiu aos ferimentos – foi perfurada internamente – e morreu. Milhares de pessoas em todo o mundo ficaram chocadas com o crime, e na Índia, foram às ruas por leis mais rígidas e maior proteção para as mulheres. Os criminosos quase foram linchados pela população indignada. A história é contada no documentário . “Mesmo em plena aurora do século 21, as mulheres ainda são julgadas como na Idade Média, onde somente a mulher honesta e virgem poderia ser vítima de crime de estupro” O que diferencia um episódio do outro? Segundo os autores do estudo, a jovem indiana era vista como uma mulher honesta. Voltava da Universidade quando foi abordada. Estava coberta dos pés à cabeça. Não pediu para ser estuprada. Já as garotas na Bahia não deveriam estar naquele local, assistindo a um show de uma banda com letras de duplo sentido e com coreografias de conotação sexual. Com essas atitudes, elas estavam sujeitas a passar pelo que passaram. Ou pior: pediram para ser estupradas. No ano passado, a Justiça condenou os integrantes da banda a 11 anos e oito meses de prisão, mas coube recurso e eles respondem em liberdade. O pré-julgamento da vítima se repete agora, três anos depois, com o caso da jovem no Rio de Janeiro. Muitas pessoas usaram o argumento de que a garota era usuária de drogas, frequentava o morro e usava roupas curtas para culpá-la pelo crime do qual foi vítima. Assim como as meninas na Bahia, ela não deveria estar em um baile funk. “Culpamos a vítima porque partimos do pressuposto de que a mulher não pode ter uma vida sexual ativa”, disse Eduardo Cabette, o co-autor do estudo. Segundo Cabette, se a vítima em questão fosse uma garota de classe média, usando roupas compridas, o tratamento do público seria diferente. Mas, perante à lei, alerta Cabette, isso não faz – ou não deveria fazer – nenhuma diferença. “A população pode até pensar diferente, mas juridicamente, se a mulher é uma prostituta, por exemplo, e no meio do programa ela decide não continuar a relação e o cliente a força a seguir em frente, ela pode ser vítima de estupro”. “Culpamos a vítima porque partimos do pressuposto de que a mulher não pode ter uma vida sexual ativa” O delegado afirma que no caso do crime no Rio de Janeiro, os suspeitos podem ser julgados por estupro de vulnerável, se for comprovado que a garota estava desacordada quando o crime ocorreu. “E esse crime tem pena mais grave que o crime de estupro comum, aliás”, diz. “Não importa se ela se drogou ou se a drogaram”. “A culpa é da crise” O secretário de Segurança Pública de São Paulo, Mágino Alves Barbosa Filho, afirmou ao jornal O Estado de São Paulo que a crise econômica

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Grafiteiras árabes que derrubam muros

Artistas de rua do Egito e da Síria refletem o olhar feminino em espaços públicos A grafiteira palestina Laila Ayawi durante participação na Jordânia, em 2014. Mia Gröndahl Os muros nem sempre escondem realidades. Nas ruas de Alexandria, Sanaa ou Amã, as mesmas paredes capazes de engessar papéis de gênero também podem, graças ao grafite, dar visibilidade às mulheres. Com essa intenção, nasceu em 2013, no Egito, o Sit al-hita (as mulheres das paredes, em dialeto árabe egípcio) um grupo de cerca de 60 grafiteiros — principalmente mulheres, mas também há homens — de várias partes do mundo árabe que se reúnem a cada ano para levar o universo feminino ao espaço público através da arte de rua.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Até agora, pintaram muros no Cairo, Copenhague e Amã, a última vez em novembro de 2015, graças ao financiamento dos Governos sueco e dinamarquês. Os grafites políticos ganharam força na paisagem urbana do Egito com a eclosão da Primavera Árabe, em 2011. Com a revolta contra Hosni Mubarak, os muros começaram a refletir mensagens contrárias ao regime ou em homenagem aos mortos na repressão. Faltava, no entanto, metade da população. A jornalista e fotógrafa sueca Mia Gröndahl documentou os grafites no país para seu livroRevolution Graffiti: Street Art of the New Egypt (Revolução Grafite: Arte de Rua do Novo Egito) e descobriu que, de 17.000, somente cerca de 250 ilustrações eram representadas por mulheres. Foi então quando decidiu fundar o Sit al-hita com o egípcio-canadense Angie Balata. Os grafites que surgem dos encontros nem sempre trazem reivindicações ou mensagens feministas. Os exemplos vão desde uma mulher amordaçada e amarrada até uma simples borboleta colorida. Às vezes, tem a ver apenas em permitir que o olhar feminino ocupe espaços que normalmente são negados. Dina Saadi, por exemplo, ilustrou um coração alado com uma fechadura, o símbolo da mulher e o slogan “Liberte sua paixão”. “Como feminista convicta, sempre tento encorajar as mulheres a superar limites com minha arte”, explica Saadi, que nasceu na Rússia, cresceu na Síria e, logo após o início da guerra civil, se mudou para Dubai, onde agora trabalha como diretora artística. “Não se trata apenas de representar as mulheres. O simples fato de que os homens vejam uma mulher pintando na rua em cima de um guindaste de 50 metros acima do solo envia uma mensagem”, diz Gröndahl. Muitas das grafiteiras do grupo também criam em formatos tradicionais, mas a força da arte de rua é precisamente não necessitar do papel ativo do espectador (ir ao museu ou à galeria), podendo ser visualizada por todos os pedestres, incomodando-os ou não. É o caso dos slogans com spray contra o assédio sexual no Egito, abuso sofrido por 99,3% das mulheres no país. A palestina Laila Ayawi não pretende perturbar com seus traços os homens do campo de refugiados de Irbid, na Jordânia. Pelo contrário. “Sei que vivo em uma sociedade conservadora e não vejo minha comunidade como inimiga”, diz. Ayawi sempre pede permissão antes de usar o spray e evita representar o corpo feminino em espaços públicos. Sua revolução particular tem a ver com “pintar mulheres fortes”. “Gosto de focar no positivo. Não nos representar como vítimas ou frágeis, e sim dizer às outras mulheres: ‘Você tem uma voz no mundo e deve ser ouvida’”, afirma. Nur Qussini prefere os símbolos. As cadeiras que desenha representam, diz, a tradição das sociedades da Jordânia e do Catar, nas quais passou seus 27 anos de vida. “Falo por meio de conceitos, mas sobre histórias reais. Falo, por exemplo, de duas de minhas amigas agredidas por seus maridos que não podem se divorciar, porque seria uma vergonha para suas famílias. Por isso gosto tanto de pintar na rua, porque não tem a ver apenas em acrescentar beleza, mas também enviar uma mensagem.” Fonte:El País

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