Arquivo

Deuses brincalhões

Crônica de Fernando Bevilacqua – Professor da UERJ Estados e momentos são circunstâncias que estão sempre a perseguir o ser humano. Quando digo ‘estado”, refiro-me a situações de longa duração, ao contrário de “momento” – estes passageiros. Não há nada comparável à Vida; Viver, no entanto, nem sempre tem a companhia da beleza e encantamento que a vida encerra. Não é difícil entender: a vida é criação divina, enquanto viver é de responsabilidade humana, falível, portanto. Este o “jogo” desafiador imposto pelos Deuses, vez que Eles criaram os dois – A Vida e o Viver. Desconfio que sempre brincaram conosco. Felizes dos que se apercebem disso e, da mesma forma que os Criadores do jogo, aceitam a “brincadeira” e joguem com as cartas disponíveis. É lógico que, de antemão, reconheçamos que jamais venceremos os deuses, mas pode-se deixá-los irritados, por descobrirmos suas intenções e ousar enfrentá-los. E é sabido que deuses não toleram audácias e, muito menos, audaciosos. Como parte dessa lúdica atividade divina, criaram os Criadores o “Estado” e o “Momento” (a crise). No primeiro distraem-se por tempo prolongado; o segundo serve para brincadeiras curtas, jogo rápido. Mas não se iludam; a sagacidade divina pode prolongar um momento – seja bom ou mau – em interminável estado. Uma vez que apenas os deuses são imortais, deram-nos a vida, mas de forma terminante; eternidade só para Eles. E assim vão comandando as jornadas daqueles que pensam ter alguma importância cósmica – nós. Caso analisemos com equilíbrio (sem excessos – de pessimismo ou otimismo), a vida é uma “máquina de matar”; é conveniente que se aprenda a controlar esta impiedosa máquina. Uns a saboreiam por mais tempo que outros suas passagens, embora mais tempo não signifique mais prazeres. Deuses são ladinos e sábios (ou serão perversos?) e não permitem duplicatas; não existirão dois Mários ou dois Afonsos, ou duas Elzas ou Irenes iguais. Almas gêmeas? – vai perder tempo em achar a sua. E mais: até hoje, e passados milhões de anos do aparecimento do cosmo, persiste incógnita sua origem. Se acrescentarmos a esta interrogação uma segunda – para aonde e como é o lugar para o qual seremos transportados, fica clara a supremacia divina. E Eles se contorcem de rir, pelos esforços despendidos em busca desses mistérios. Quão tolos e arrogantes somos nós, terráqueos vaidosos. Tudo o que sabemos e conhecemos não passas de coisas fúteis e vãs, supérfluas mesmo. Alguns aqui em baixo, e numa esforçada tentativa, buscam parecer-se com os deuses, e levam designações variadas – patriarcas, Messias, pastores, homens-santo, gurus, avatares, oráculos e outras mais. Não confessas, mas almejam a imortalidade, tal como os deuses, não a imortalidade física, mas através de citações, parábolas, provérbios, orações. Tentam permanecer vivos à luz de suas palavras, seus pensamentos e seus escritos. Se até os deuses gostam de ser referenciados e lembrados, que dizer desses mortais plagiadores? De todo modo conseguem atrair cordeiros ingênuos para suas fileiras – alguns são tão rigorosos com seus seguidores que não permitem rebeldias: é ficar e obedecer. Esses indivíduos, que se escondem sob os véus da modéstia, cativam e mesmo hipnotizam até pessoas inteligentes, transformando-as em crentes de “um único Livro”, de palavras de uma só Boca”. Não seria absurdo dizer que tais pessoas tornam-se “religiosas submissas” frente ao chamamento de seus líderes espirituais. O que sempre mais me intriga é que esses ” azes da cooptação” têm como pedra fundamental de suas pregações – o AMOR, sendo que os mais destacados, e salvo melhor juízo, nunca provaram o amor na sua integralidade. Devo ser impessoal nesses meus devaneios e deixo, portanto, à imaginação de cada leitor, eleger as figuras históricas e veneradas que possam servir de exemplos. Na passagem terrena das figuras que suscito, convém antes tecer considerações sobre o amor – sob meu ponto de vista, naturalmente. É bem possível que na exposição que dou seqüência, possa ser considerado um hedonista ou discípulo de Epicuro – que venham as pedras e os rótulos – sigo em frente. Só tem autoridade inequívoca para discorrer sobre o amor, aqueles que o saborearam do a ao r. Nesse sentido, assumo a perigosa concepção (para muitos considerada primitiva, selvagem) de que o sexo, o desejo, a paixão, o ódio, são todos amálgama dessa entidade chamada – amor. Sobre o binômio sexo-amor, destaco sem pejo: “amor sem sexo é como chuchu – insosso; mas e o chuchu com camarão, tão apreciado, perguntarão alguns? Nesse caso o camarão é o sexo.” Então pergunto: podem pessoas que proclama o amor, falar de seus mistérios e magias, sem tê-lo provado (na doçura e no amargor) e percorrido em toda sua extensão e magnitude? Pode um padre celibatário (não apenas confesso, mas de fato) discorrer sobre o dia-a-dia do casamento? Pode um banqueiro abastado (nunca saído de seus confortáveis gabinetes) “deitar cátedra” sobre as vivências de um catador de caranguejos?” Quem nunca sentiu a saliva do ser amado escorrer boca adentro, jamais (jamais mesmo) saberá o que é um beijo de entrega – que é também componente do amor. Acautelem-se, pois, aficionados e prisioneiros daqueles que pretendem salvá-los dos obstáculos e armadilhas da vida e até de seus pecados. Não que se desprezem os pensamentos e os convites à reflexão propostos por esses “iluminados”. Lembrem-se que aqueles tidos como tendo alcançado a transcendência, contaram apenas com suas auto-ajudas. É o que você deve fazer – inspirar-se nos brotos emanados de sua alma, de sua experiência existencial. Só você pode ajudar a si mesmo. Não absorva, sem antes lançar mão de seu filtro espiritual, sentimentos sentidos por outrem. Não é verdade universal (aliás ela não existe), por exemplo, que “vale mais a perda de um grande amor do que a de um grande amigo”. O tempo cura tudo – mentira: o tempo é como os médicos – curam poucas doenças; apenas aliviam, mitigam e controlam dores. Um grande amor perdido vai fazê-lo sangrar de quando em vez – um”momento” transformado em “estado”. Cada pessoa é única na apreciação de suas experiências.

Leia mais »

Inexoravelmente Pessoa

Por Adriana Vandoni É economista, especialista em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas/RJ. Articulista de A Gazeta. Blog: http://argumentoeprosa.blogspot.com E-mail: avandoni@uol.com.br Era dia de nos reunirmos, cheguei atrasadíssima, como de costume. E como de costume eles já estavam todos lá numa empolgada discussão sobre o que é ser grande. É um grupo de amigos, amigos queridos de longa data, nem me lembro quando foi que começamos a nos reunir, só sei que é muito gostoso. Um grupo que se pode chamar de eclético: tem um poeta, uma engenheira, um psicólogo, tem uma especialista em lingüística (acho essa palavra um horror), tem até um político…imaginem vocês…tem político discutindo a essência da vida através dos poemas. Pode? Nesse grupo pode! E tem mais, tem um petista que até participou da administração de Lula. Portanto, totalmente eclético. Tem até eu, que participo das discussões mesmo não sendo assim uma expert em poemas, nem assídua leitora de poesias, mas me divirto com o bate-papo, aprendo bastante, porém, quando a coisa começa a entrar no campo muito sério e chato, invariavelmente, entro pra tumultuar o processo. Naquele dia quando cheguei, a conversa sobre ser grande já estava encaminhada e pra me sacanearem, de supetão perguntaram: – Você que está chegando agora, responda: o que faz de uma pessoa um ser grande? Todos pararam e ficaram esperando minha resposta, provavelmente esperando algo consistente e eu bem que sabia o nível da conversa, claro, mas como de costume entro pra tumultuar, respondi: – Comer muito. Quem come muito, engorda e se torna um ser grande. Bem, perdi o começo da discussão, mas provoquei o primeiro intervalo. Claro que estavam falando da grandeza do ser e a bola da vez era Fernando Pessoa. Adoro Fernando Pessoa não só pela sua obra, mas pela sua vida ou suas vidas. Antes de ser um poeta ou ao mesmo tempo, Pessoa foi um inventor, um criador de pessoas. Sua criatividade era tão grande que não cabia nele só e para extravasar tinha a necessidade de criar outros seres. Seres imaginários, imaginados por ele para serem poetas. Poetas dele mesmo. Criou quatro ou mais personagens, cada qual com sua biografia e seu posicionamento diante da vida. Eram seres que de tão distintos, eram reais. Porque Fernando Pessoa fazia isso? Eis o melhor da discussão daquele dia, e cada um com uma opinião mais doida que outra. A engenheira Amalhinha, acha que dessa forma ele conseguia ter mais controle sobre sua obra, assim como se estivesse dividindo em arquivos ou pastas. Explicação prática demais de um poeta. O Manuel, o petista, coitado, começou a dar o seu diagnóstico, mas quando percebeu nossa cara pra ele, saiu com uma que eu adorei: “Oras, quanto mais personagem, mais cueca para esconder dólares”. Tá certo! Começou então aquela gargalhada e palhaçada como se ainda tivéssemos nossos 15 anos. Para resgatar a seriedade, o poeta mais poeta do grupo, logo, o que teria maior propriedade entre nós, senão o único, disse acreditar que Pessoa era esquizofrênico. Será?, Quanta maldade!, mas antes que eu terminasse de pensar, o psicólogo protestou. Rejeitou veementemente a idéia de esquizofrenia e com extrema autoridade como se tivesse sido analista do próprio Fernando Pessoa, disse: ele sofria distúrbio sexual não assumido. Ai meu Jesus Cristinho!, e vem você com suas observações freudianas! Mas será possível, Otavinho, que pra você tudo está relacionado a frustrações sexuais?, comentei. Nisso a Hélia, nossa especialista em lingüística que adora discordar de mim, subiu o tom de voz e me recriminou dizendo que eu estava sendo preconceituosa e que ela, mesmo não sendo psicóloga acha que o problema de Pessoa era sim repressão sexual. – Mas Helinha você achar isso, tudo bem, você deve falar com propriedade, é especialista em lingüística…uma profissão com um nome assim…eu diria…tão fálico. E assim se deu o segundo intervalo. Todos morrendo de rir e a Helinha me prometendo uma revanche. Voltamos e só faltava o comentário meu e do Henrique Roberto ou HR, o político da turma. Eu voltei ao início, lá no significado de ser grande e travei um debate com o Fred, o poeta. Ele comentou que apesar de insistir na esquizofrenia, para ele Fernando Pessoa é a tradução do que é ser grande, completo, inteiro, e declamou uma das odes de Pessoa escrita através de Ricardo Reis, um dos seus personagens: “Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive”. Então é isso, disse eu, para ser um ser grande sem precisar ser gordo, é preciso ser inteiro, convicto e crente. É preciso se entregar de alma ao que se dedica e ceder o melhor ao que se propõe. Para arrematar e encerrar a discussão, pois já estávamos cansados de pensar e gargalhar, HR, o nosso político sentenciou: Concordo com todos e discordo de cada um de vocês.

Leia mais »