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Literatura desaparecida: 40 anos do Golpe Militar na Argentina

“Escribe mientras sea posible. Escribe cuando sea imposible. Ama el silencio.” — Miguel Ángel Bustos, desaparecido em 1976. Cronica de Ricardo Domeneck ¹ Há 40 anos, ocorria o Golpe Militar na Argentina, que deixaria ainda mais mortos e desaparecidos pelo continente latino-americano. No Brasil, estávamos no décimo-segundo ano da ditadura militar – aquela que alguns no país hoje ainda insistem em tratar com nostalgia. Aquelas imagens das Mães da Praça de Maio permanecem como alguns dos atos de coragem e desobediência civil exemplares em nosso continente. Há alguns dias, descobri o trabalho do fotógrafo argentino Gustavo Germano. Em sua série “Ausencias”, com uma estratégia ético-estética simples e eficiente em seu soco na boca de nosso estômago, o fotógrafo refaz fotos de amigos e famílias dos anos 1960 e 70, deixando vago o local onde seus entes queridos desaparecidos deveriam estar, não tivessem sido sequestrados por um regime assassino. Sendo este um blog dedicado à literatura, gostaria de tomar o dia de hoje, no entanto, para chamar a atenção dos leitores a um outo projeto bastante comovente em nosso país vizinho, capitaneado pelo poeta e jurista Julián Axat, nascido em Buenos Aires naquele fatídico ano de 1976. Ele próprio filho de desaparecidos, tem se dedicado com afinco em manter viva a memória das milhares de vítimas da Junta Militar argentina. Em sua coleção “Detectives Salvajes”, que toma o título do romance de Roberto Bolaño (1953-2003), Axat vem publicando a literatura deixada por escritores que desapareceram pelas valas comuns, desertos e o oceano que banha nossa parte do mundo-cão. A ditadura tocou vários escritores do país, como o grande Juan Gelman, que passou anos em busca da neta. Em 1995, quase uma década antes de poder finalmente abraçá-la, escreveu uma carta que começava assim: “Dentro de seis meses cumplirás 19 años. Habrás nacido algún día de octubre de 1976 en un campo de concentración.” É a história de tantas famílias latino-americanas. Graças aos esforços de Julián Axat, pude descobrir dois jovens escritores que desapareceram na noite escura do continente: Miguel Ángel Bustos, desaparecido em 1976, e Carlos Aiub, desaparecido em 1977, o ano em que nasci. Abro este pequeno texto em homenagem a todos os desaparecidos e sobreviventes do país vizinho com uma citação de Bustos. Permitam-me encerrá-lo com alguns versos de Aiub, sussurrando que sim, alguns de nós nos lembramos e, ao mesmo tempo, NUNCA MAIS. “temer el dolor como cuando siempre la forma del dolor y de la muerte empezás también a imaginarla y temés temés también tu olvido o algo así el qué pensarán de vos si te recordarán si tu nombre bautizará algo o servirá para algo temer el final que no te deje ver el final la victoria viste las cosas nuevas que buscás el nuevo sueño chiquitín continuado temer todo eso y entonces si temer la muerte que se puede venir y no la deseás y te aferrás a la vida con todo porque querés vivir simplemente para ver cuando al final la vida viva el nuevo dolor lo pensás más tarde.” (Carlos Aiub, desaparecido em 1977) ¹ Ricardo Domeneck nasceu em Bebedouro, em São Paulo, mas vive em Berlim desde 2002. Lançou os livros “Carta aos anfíbios” (Bem-Te-Vi, 2005), “a cadela sem Logos” (Cosac Naify/7Letras, 2007), “Sons: Arranjo: Garganta” (Cosac Naify/7Letras, 2009), “Cigarros na cama” (Berinjela, 2011) e “Ciclo do amante substituível” (7Letras, 2012). É coeditor das revistas Modo de Usar & Co. e Hilda. A editora Verlagshaus J. Frank, de Berlim, publicou em 2013 uma coletânea de seus poemas.

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Literatura – Crônicas – Felipe Aquino

A tragédia dos filhos órfãos de pais ainda vivos por Felipe Aquino É tão importante a pessoa do pai na vida do filho, que o próprio Filho de Deus encarnado quis ter um pai (adotivo) na Terra. Jesus não pôde ter um pai natural neste mundo porque não havia homem capaz de gerar o Verbo encarnado; então, o Espírito Santo o gerou no sei puríssimo e virginal de Maria Santíssima. Mas Jesus quis ter um pai adotivo, nutrício, neste mundo; e escolheu São José, o glorioso patrono da Igreja, como proclamou o Papa Pio IX, solenemente, em 1870. Quando José quis deixar a Virgem Maria, no silêncio da discrição de sua santidade, Jesus mandou que imediatamente o Arcanjo da Anunciação, São Gabriel, logo lhe dissesse em sonho: “José, filho de Davi, não temas receber Maria por tua esposa, porque o que nela foi gerado é obra do Espírito Santo” (Mt 1, 20). E a José coube a honra de dar-lhe o nome de Jesus, no dia de sua circuncisão (Mt 1, 21).[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Jesus viveu à sombra protetora do grande São José na vila de Nazaré e carpintaria do grande santo. O povo o chamava de “o filho do carpinteiro”. José o protegeu da fúria de Herodes; o levou seguro para o Egito, o manteve no exílio e o trouxe de volta seguro para Nazaré. Depois partiu deste mundo nos braços de Jesus quando terminou a sua missão terrena. A Igreja o declarou “protetor da boa morte”. Ora, se até Jesus quis e precisou de um pai neste mundo, o que dizer de cada um de nós. Só quem não teve um pai, ou um bom pai, deixa de saber o seu valor. Ainda hoje, com 57 anos de idade, me lembro com saudade e carinho do meu pai. Quanta sabedoria! Quanta bondade! Quanta pureza! Quanto amor à minha mãe e aos nove filhos!… Ainda hoje com saudade é alegria me lembro de seus conselhos sábios. O pai é a primeira imagem que o filho tem de Deus; por isso Ele nos deu a honra de sermos chamados pais; pois toda paternidade vem do próprio Deus. Muitos homens e mulheres não têm uma visão correta e amorosa de Deus porque não puderam experimentar o amor de seus pais; muitos foram abandonados e outros ficaram órfãos. Mas o pior de tudo, é a ausência dos pais na vida dos chamados “órfãos de pais vivos”; e são muitíssimos. Muitos e muitos rapazes têm gerado seus filhos, sem o menor amor, compromisso e responsabilidade, buscando apenas o prazer sexual de suas relações com uma moça; que depois é abandonada, vergonhosamente, deixando que ela “se vire” para criar o seu filho como puder. Quase sempre essas crianças são criadas com grandes dificuldades; o peso de sua manutenção e educação é dividido quase sempre com a mãe solteira que se mata de trabalhar e com os avós que quando existem, fazem o possível para ajudar. Mas a criança é criada sem o pai; a metade de sua educação podemos dizer que está comprometida; pois ela nunca experimentará o colo e os braços de um verdadeiro pai que a embale. Isto tem sérias consequências na vida dos jovens e adultos. Muitos deles, os mais carentes, acabam nas ruas e na marginalidade do crime, assaltos, roubos, drogas… cadeia. Não é à toa que mais de 90% dos presidiários são jovens entre 18 e 25 anos. É verdade que muitos desses jovens tiveram um pai a seu lado, mas também é verdade que muitos deles não conheceram este homem, que os deveria ter criado. Normalmente um filho que tem um bom pai, amoroso, trabalhador, dedicado aos filhos e à esposa, não se perde nos maus caminhos deste mundo. Por isso tudo é lamentável o constatou o Papa João Paulo II em sua última viagem ao Brasil em 1997. Falando aos jovens no Maracanã, ele disse que por causa do “amor livre”, “no Brasil há milhares de filhos órfãos de pais vivos”. Que vergonha e que dor para todos nós! Quantas crianças com o seus futuros comprometidos por que foram gerados sem amor e abandonadas tristemente. Sem um pai que eduque o seu filho, a criança não pode crescer com sabedoria, fé, respeito aos outros, amor ao trabalho e a virtude… Deixar uma criança sem pai, estando este vivo, é das maiores covardias que se pode perpetrar contra o ser humano inocente que é a criança. Hoje, infelizmente, com o advento da inseminação artificial e clinicas de fertilização, há uma geração de jovens que não conhecem os seus pais, pois muitos foram gerados por um óvulo que foi inseminado artificialmente pelo sêmen de um homem anônimo. Esses jovens não conhecem a metade de sua história e não têm uma verdadeira família. Como será o futuro desta geração de jovens? Não é à toa que a Igreja católica é contra a inseminação “in vitro”.

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Eduardo Galeano: 10 crônicas para sacudir o que você pensa sobre o Direito

Lembro-me da primeira vez que li Don Eduardo Galeano. Não tinha sequer ouvido falar do mago uruguaio – estava nas primeiras semanas do curso na Faculdade de Direito, cru politicamente. Para se ter uma ideia, lia Veja e a ela dava o mais religioso voto de credulidade. Por Brenno Tardelli¹ Estava à toa na banca da praça Coriolano, na Lapa, em São Paulo, quando comecei a girar aquelas estantes de meia altura só com pocket book – livros geralmente clássicos. Girava apenas pelo prazer desentediante de girar. Não pretendia adquirir nenhum livro. Apenas girava, olhando Agatha Christie, Conan Doyle, Eça de Queiroz, Machado girando e girando. Sabe-se lá que jogada do destino fui vítima quando parei a giratória de frente para o “De pernas para o ar – a escola do mundo ao avesso”. A capa tinha o que me parecia um personagem de circo logo abaixo do nome do autor: Eduardo Galeano. Bisbilhotei, comecei a ler e nunca mais fui nada parecido com que era. Continuo cru, com muito a aprender. No entanto, tomei a audácia separei uma minúscula parte de sua obra – apenas dos livros Espelhos e Os filhos dos dias, referente a Galeano e o Direito. Poderiam ser tantas outras, mas ficarão para outra oportunidade.[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”] Divirta-se. 10. Sobre Positivismo e muito de Direitos das mulheres Susan também não pagou Os Estados Unidos da América vs. Susan Anthony, Distrito Norte de Nova York, 18 de junho de 1873. Promotor distrital Richard Crowley: No dia 5 de novembro de 1872, Susan B. Anthony votou num representante no Congresso dos Estados Unidos da América. Naquele momento era ela mulher, e suponho que não haverá dúvidas em relação a isso. Ela não tinha direito de voto. É culpada de violar a lei. Juiz Ward Hunt: A prisioneira foi julgada de acordo com o estabelecido na lei. Susan Anthony: Sim, Senhoria, mas são leis feitas pelos homens, interpretadas pelos homens e administradas pelos homens a favor dos homens e contra as mulheres. Juiz Ward Junt: Que a prisioneira fique de pé. A sentença desta Corte manda que ela pague uma multa de cem dólares mais as custas do processo. Susan Anthony: Não pago nem um tostão. 9. Sobre Processo Penal e a vida e a morte em 100% de audiências brasileiras Somos todos culpados O Directorium Inquisitorium publicado pela Santa Inquisição no século XIV, difundiu as regras do suplício, e a mais importante ordenava: Será torturado o acusado que vacile em suas respostas.  8. Sobre Direito Penal e sua Seletividade Criminologia A cada ano, os pesticidas químicos matam pelo menos três milhões de camponeses. A cada dia, os acidentes de trabalho matam pelo menos dez mil trabalhadores. A cada minuto, a miséria mata pelo menos dez crianças. Esses crimes não aparecem nos noticiários. São, como as guerras, atos normais de canibalismo. Os criminosos andam soltos. As prisões não foram feitas para os que estripam multidões. A construção de prisões é o plano de habitação que os pobres merecem. Há mais de dois séculos, se perguntava Thomas Paine: “Por que será que é tão raro que enforquem alguém que não seja pobre?” Texas, século XXI: a última ceia delata a clientela do patíbulo. Nunguém pede lagosta ou filet mignon, embora esses pratos apareçam no menu de despedida. Os condenados preferem dizer adeus ao mundo comendo hambúrguer e batata frita, como de costume.  7. Sobre Financeiro, Bancário, Tributário… Malditos sejam os pecadores No idioma aramaico, que Jesus e seus apóstolos falava,, uma mesma palavra significava dívida e pecado. Dois milênios depois, os pobres do mundo sabem que a dívida é um pecado que não tem expiação. Quanto mais você paga, mais você deve; e no Inferno está à sua espera com os credores.  6. Sobre Família, Patriarcado e Feminismo Barbie vai à guerra Existe mais de um bilhão de Barbies. Só os chineses superam essa população tão enorme. A mulher mais amada do mundo não poderia falhar. Na guerra do Bem, contra o Mal, Barbie se alistou, bateu continência e foi para a guerra do Iraque. Chegou à frente de batalha vestindo fardas de terra, mar e ar, feitos sob medida, que o Pentágono examinou e aprovou. Ela está acostumada a mudar de profissão, de penteado e de roupa. Também foi cantora, esportista, paleontóloga, dentista, astronauta, bailarina e sei lá mais o quê, e cada novo ofício implica um novo look e um novo vestuário completo, que todas as meninas do mundo estão obrigadas a comprar. Em fevereiro de 2004, Barbie também quis mudar de par. Fazia quase meio século que estava ao lado de Ken, que não tem no corpo outra saliência além do nariz, quando foi seduzida por um surfista australiano que a convidou para cometer o pecado do plástico. A empresa Mattel anunciou, oficialmente, a separação. Foi uma catástrofe. As vendas desabaram. Barbie podia, e devia mudar de ocupação e de vestidos, mas não tinha o direito de dar mau exemplo. Então a empresa Mattel anunciou, oficialmente, a reconciliação.  5. Sobre Maria da Penha Perigo no ar A rádio de Paiwas nasceu no centro da Nicarágua, às vésperas do século XXI. O programa de maior audiência ocupa as madrugadas: “A bruxa mensageira” acompanha milhares de mulheres e mete medo em milhares de homens. Às mulheres, a bruxa apresenta amigos desconhecidos, como esse tal de Papanicolau e a senhora Constituição, e fala de seus direitos, violência zero na rua, na casa e também na cama, e pergunta a elas: – “Como foi sua noite? Como foi tratada? Deu com prazer ou foi meio à força?” E os homens são denunciados com nome e sobrenome quando violam ou batem em suas mulheres. Pelas noites, a bruxa vai de casa em casa, em vôo de vassoura; e nas madrugadas, acaricia sua bola de cristal e adivinha segredos na frente do microfone: – “Ahá! Você está por aí, estou vendo você por aí. Batendo na sua mulher. Que barbaridade, que horror!” A rádio recebe e difunde as denúncias que os policiais não atendem. Os policiais estão ocupados com os ladrões de gado, e uma

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Aíla Sampaio – Reflexões na tarde – 12/06/2014

Namorar… Aíla Sampaio 12 de junho, dia dos namorados. A gente sabe que é mais uma data para movimentar o comércio, alimentar o consumo, mas nem se rebela, por que é tão sublime a causa… namorar é bom demais. É colocar o pé no acelerador da vida. Olhar nos olhos e ter vontade de atravessar o mundo de mãos dadas, a pé, a pão e água. Dormir ao relento e não adoecer com o sereno. Abrir o mar com o pensamento, andar sobre as águas, pairar nas nuvens com a leveza dos deuses. Namorar é atravessar esquinas perigosas sem medo, é sobreviver ao perigo das epidemias, estar acima do bem e do mal. Essa visão romântica do namoro é a forma mais sutil de dizer que todas as catástrofes têm menor impacto quando estamos amando e sendo amados. Quando incontestavelmente admitimos que o outro não é perfeito e, nem por isso, seu beijo perde o sabor; quando não o enxergamos como um deus todo-poderoso – incorruptível pelas limitações humanas – mas apenas como um ser vulnerável, capaz de errar. Aceitamos suas manias, seus ranços, porque o amor ensina a respeitar sem autoflagelação. Aceitamos suas falhas e notamos que as nossas também são aceitas, conversadas sem dor. Sabe-se que a pessoa nem tem a beleza do Brad ou da Jolie, mas é muito mais poderosa que eles, porque nos arrebata com um simples olhar. Namorar é injetar sangue novo nas veias, ingerir um complexo vitamínico sem problema de superdosagem, recarregar as baterias gastas, reciclar as turbinas maltratadas em tantos pousos forçados. Namorar é partilhar emoções, gostos, cheiros; olhar o horizonte perdido na linha entre o céu e o mar, e crer que se pode chegar lá. Namorar é dividir pra somar, multiplicando-se. É segurar a mão pra atravessar a rua ou para ajudar a suportar uma derrota. É olhar nos olhos e ver o mundo num caleidoscópio mágico que gira sem parar e nunca perde as cores, nunca apaga a luz. É abraçar apertado com vontade de não soltar mais, mas soltar sempre, respeitar as distâncias, os silêncios, dar liberdade sem cobranças e ficar seguro. Só vale a pena namorar quem nos considera, nos dá tranquilidade e uma paz infinita; quem não representa, não age como se a vida fosse um jogo e você só uma peça dele. Às vezes nem é preciso o toque físico, namoramos uma fotografia, uma imagem guardada na memória, o flash de um momento mágico em que captamos a alma de alguém. Alguém que preenche as nossas lembranças, que nos acompanha nos pensamentos… basta tocar ‘aquela’ música, sentir ‘aquele’ cheiro… basta simplesmente acordar o desejo de estar perto, e tudo em volta cria ‘aquele’ rosto amado que nunca se mistura à multidão. Somos capazes de identificá-lo em qualquer tribo, em qualquer lugar, em qualquer tempo, entre milhares, milhões. E namoramos de olhos fechados, por conta das artimanhas da imaginação que funde real e fantasia. Mas o amor não é fantasia, não a que se usa quando se quer, pra representar o teatro da vida. O amor é a pele que veste nossa alma, é o sangue que escorre em nossas veias. Ninguém ama pela metade ou só de vez em quando. Quem ama sabe do poder das tempestades, dos cataclismas, dos avassaladores riscos de sofrer, mas ama, namora o amor e o dono desse amor. Pode até desistir do amado… nunca do sentimento que tem por ele. Namora a incerteza e a desilusão, mas lava-as com as lágrimas e namora a esperança, essa velhinha de cabelos brancos e óculos, que nos motiva a sonhar mesmo quando os pesadelos se anunciam. Aíla Sampaio * Fortaleza, Ce. Mestra em Literatura. Professora do Curso de Letras da Unifor [ad name=”Retangulo – Anuncios – Duplo”]

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Crônica de um homem casado

Cortador de Grama. Quando o nosso cortador de grama quebrou, minha mulher ficava sempre me dando a entender que eu devia consertá-lo. Mas eu sempre acabava tendo outra coisa para cuidar antes, o carro, a pesca, sempre alguma coisa mais importante para mim. Finalmente ela pensou num jeito esperto de me convencer. Certo dia, ao chegar em casa, encontrei-a sentada na grama alta, ocupada em podá-la com uma tesourinha de costura. Eu olhei em silêncio por um tempo e depois entrei em casa. Em alguns minutos eu voltei com uma escova de dentes e lhe entreguei. “Quando você terminar de cortar a grama,” eu disse, “você pode também varrer a calçada. O casamento é uma relação na qual uma pessoa está sempre certa e a outra é apenas um marido…. [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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Ivan Lessa e a explosão populacional

Nós, 7 bilhões do planeta Terra, terceiro à direita de quem vem do Sol, gostaríamos de lavrar nosso protesto. Nós, 7 bilhões, por uma vez estamos quase todos de acordo: não somos 7 bilhões e protestamos com veemência contra a arbitrariedade que não tem outro propósito a não ser nos assustar com a possibilidade de uma explosão populacional. Nós, 7 bilhões, desconfiamos da data escolhida para marcar um evento sem fundamento científico: o dia em que também se comemora o Halloween, Dia das Bruxas e ainda “Raloim”. Nós, 7 bilhões, questionamos a validade das pesquisas que indicam o nascimento de um de nós a cada 51 minutos. Nós, 7 bilhões, perguntamos pelos dados referentes a quantos sobem, pedem o boné ou batem com as dez por minuto? Nós, 7 bilhões, consideramos a omissão um desrespeito aos mortos deste e de todos os tempos. Nós 7 bilhões, insistimos em saber por que não 7.101.345.857 ou 6.978.502.231, com casa decimal para indicar evolução fracionária? Nós, 7 bilhões, aceitamos o capricho numerológico, que não é mais que uma faixa a ser dada para o heptabilionésimo habitante desta bola achatado nos polos, que também está fichada e registrada como Mundo em estudos tidos como de séria metodologia. Nós, 7 bilhões, teríamos prazer em cumprimentar este cidadão, mas não acatamos como verdade a conta imaginada. Nós, 7 bilhões, aceitamos, no entanto, as cifras, para não criar mais um caso entre as organizações que lidam com essas supostas verdades. Nós, 7 bilhões, reiteramos nossa boa vontade e disposição afim de não criar marolas, ondas ou tsunamis num planeta já caquético e manquitola. Nós, 7 bilhões, agradecemos o fato de que ainda não fomos chamados de terráqueos. Quando, e se tal acontecer, nós, 7 bilhões, nos defenderemos com qualquer arma que estiver à mão, seja pedra ou engenho nuclear. Nós, 7 bilhões, somos gente. Pobres, desgraçados, sofridos, humilhados, ofendidos, pisoteados, doentes, esfomeados e sedentos, mas gente. Não repararam nisso? Nós, 7 bilhões, nos revoltamos com essa transformação em número a que nos impuseram. Nós, 7 bilhões, desconfiamos desse relógio empregado para nós e das motivações para seu uso. Nós, 7 bilhões, não somos simbólicos. Nós, 7 bilhões, não fazemos parte de qualquer rede de comunicação social. Nós, 7 bilhões, estamos sós. Sós, sós, sós. Nós, 7 bilhões, fedorentos e esfarrapados, pouco importa nosso verdadeiro número (que ninguém sabe e nunca saberá), já nos acostumamos, em nossa miséria, a canalhices e injustiças maiores. Nós, 7 bilhões, empunhando cartazes imaginários porém eloquentes e cobertos de verdades, acampamos e ocupamos este planeta acusando que ele deveria ser nosso mas é de vocês, uma minoria que se recusa a ser contada em qualquer engenho informático. Nós, 7 bilhões, não endossamos produto algum. Nós, 7 bilhões, não temos nada o que comprar e pouco para vender. Nós, 7 bilhões, vamos vivendo, por assim dizer. Nós, 7 bilhões, sabemos ou assistimos ao que decidiram que é contagem: subiu um aqui agora, e outro ali e mais outro logo adiante. Nós, 7 bilhões, apontamos para o fato com choro e vela. Nós, 7 bilhões, ouvimos o espoucar de vários chegando em seguida, os tais “51 por minuto”, e, apesar de todos os enganos, esperançosos, louvamos o fato. Nós, 7 bilhões, observamos que eles já vêm brincando de onomatopeia, como se fossem essas, como serão, suas únicas chupetas: plop e plop e plop. Nós, 7 bilhões, não somos 7 bilhões. Somos a quadratura do círculo, o número secreto que jaz por trás da construção das pirâmides, o pi em toda sua extensão. Ninguém nos conhece, ninguém nos conhecerá. Fiquem descansados. Apesar de tudo, só chacinamos por uma questão de estética e equilíbrio. Mas chacinamos. Contem quantos somos, só não contem conosco. Ivan Lessa/BBC Londres 

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O Pendrive

por: Eduardo G. Souza Haroldo tirou o papel do bolso, conferiu a anotação e perguntou à balconista: “- Moça, vocês têm pendrive?” “- Temos, sim.” Respondeu a balconista. “- O que é pendrive? Pode me esclarecer? Meu filho me pediu para comprar um.” “- Bom, pendrive é um aparelho em que o senhor salva tudo o que tem no computador.” “- Ah, É como um disquete…” “- Não. No pendrive o senhor pode salvar textos, imagens e filmes. O disquete, que nem existe mais, só salva texto.” “- Ah, tá bom. Vou querer um.”[ad#Retangulo – Anuncios – Direita] “- Quantos gigas?” Perguntou a balconista. “- Hein?” “- De quantos gigas o senhor quer o seu pendrive?” “- O que é giga?” Perguntou Haroldo. “- É o tamanho do pen.” “- Ah, tá. Eu queria um pequeno, que dê para levar no bolso sem fazer muito volume.” “- Todos são pequenos, senhor. O tamanho, aí, é a quantidade de coisas que ele pode arquivar.” “- Ah, tá. E quantos tamanhos têm?” “- Oito, dezesseis, trinta e dois, sessenta e quatro, cento e vinte e oito gigas…” “- Hmmmm, meu filho não falou quantos gigas queria.” “- Neste caso, o melhor deve levar o maior.” “- Sim, eu acho que sim. Quanto custa?” “- Bem, o preço varia conforme o tamanho. A sua entrada é USB?” Perguntou a balconista. “- Como?” Pergunto atônito Haroldo. “- É que para acoplar o pen no computador, tem que ter uma entrada compatível.” “- USB não é a potência do ar condicionado?” “- Não, potência de ar condicionado é BTU.” Respondeu a Balconista. “- Ah! É isso mesmo. Confundi as iniciais. Bom, sei lá se a minha entrada é USB.” “- USB é assim ó: com dentinhos que se encaixam nos buraquinhos do computador. O outro tipo é este, o P2, mais tradicional, o senhor só tem que enfiar o pino no buraco redondo. O seu computador é novo ou velho? Se for novo é USB, se for velho é P2.” “- Acho que o meu tem uns dois anos. O anterior ainda era com disquete. Lembra do disquete? Quadradinho, preto, fácil de carregar, quase não tinha peso. O meu primeiro computador funcionava com aqueles disquetes do tipo bolacha, grandões e quadrados. Era bem mais simples, não acha?” “- Os de hoje nem têm mais entrada para disquete. Ou é CD ou pendrive.” “- Que coisa! Bem, não sei o que fazer. Acho melhor perguntar ao meu filho.” “- Que tal o senhor ligar pra ele?” Sugeriu a balconista. “- Bem que eu gostaria, mas meu celular é novo, tem tanta coisa nele que ainda nem aprendi a discar direito.” Confidenciou meio sem jeito Haroldo. “- Deixa eu ver. Poxa, um Smarthphone! Este é bom mesmo! Tem Bluetooth, woofle, brufle, trifle, banda larga, teclado touchpad, câmera fotográfica, flash, filmadora, rádio AM/FM, TV digital, dá pra mandar e receber e-mail, torpedo direcional, micro-ondas e conexão wireless…” Falou empolgada a balconista. “-Blue… Blue… Bluetufe? E micro-ondas? Dá prá cozinhar com ele?” Perguntou meio confuso Haroldo. “- Não senhor. Assim o senhor me faz rir. É que ele funciona no sub-padrão, por isso é muito mais rápido.” “- Pra que serve esse tal de blutufe?” Haroldo, confuso, balançou a cabeça. “- É para um celular comunicar com outro, sem fio.” Explicou a balconista. “- Que maravilha! Essa é uma grande novidade! Mas os celulares já não se comunicam com os outros sem usar fio? Nunca precisei fio para ligar para outro celular. Fio em celular, que eu saiba, é apenas para carregar a bateria…” “- Não, já vi que o senhor não entende nada, mesmo. Com o Bluetooth o senhor passa os dados do seu celular para outro, sem usar fio. Lista de telefones, por exemplo.” “- Ah, e antes precisava fio?” “- Não, tinha que trocar o chip.” Disse a balconista. “- Hein? Ah, sim, o chip. E hoje não precisa mais chip?” Questionou Haroldo sem entender. “- Precisa, sim, mas o Bluetooth é bem melhor.” “- Legal esse negócio do chip. Então o meu celular tem chip?” “- Lógico… Hoje todos tem… Sim, tem chip.” “- Mas se tem bluetufe… O que faço com o chip?” “- Se o senhor quiser trocar de operadora, portabilidade, o senhor sabe…” “- Ah, sim, portabilidade, não é? Claro que sei. Não ia saber uma coisa dessas, tão simples? Imagino, então que para ligar tudo isso, no meu celular, depois de fazer um curso de dois meses, eu só preciso clicar nuns duzentos botões…” “- Nããão! É tudo muito simples, o senhor logo apreende. Quer ligar para o seu filho? Qual é o número dele? Agora é só teclar, um momentinho… Agora é só apertar no botão verde… pronto, está chamando.” Haroldo segura o celular com as pontas dos dedos, temendo ser levado pelos ares, para um outro planeta. “- Oi filhão, é o papai… Sim… Me diz, filho, o pendrive é de quantos… Como é mesmo o nome? Ah, obrigado, quantos gigas? Sessenta e quatro gigas está bom? Ótimo… E tem outra coisa, o que era mesmo? Ah, nossa conexão é USB? É? Que loucura… Então tá, filho, papai está comprando o teu pendrive… De noite eu levo para casa.” Haroldo devolveu o celular para balconista, que desligou o aparelho. “- Que idade tem seu filho?” Perguntou a balconista. “- Vai fazer dez em março.” Respondeu orgulhoso Haroldo. “- Que gracinha…” Disse encantada a balconista. “- É moça, ele é muito esperto… Bem vou levar um de sessenta e quatro gigas, com conexão USB.” “- Certo senhor… Quer embrulhar para presente?” Mais tarde, no escritório, Haroldo examinou o pendrive, um minúsculo objeto, menor do que um isqueiro, capaz de gravar filmes! “Onde iremos parar?” Pensou. Olhou, com receio, para o celular sobre a mesa. “Máquina infernal” Pensou. Tudo o que ele queria era um telefone, para discar e receber chamadas. E tem, nas mãos, um equipamento sofisticado, tão complexo que ninguém que não seja especialista ou tenha a infelicidade

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Ivan Lessa e a bacteria do Pepino

O humor refinado e a pena ferina de Ivan Lessa, temperam pepino com Hamlet.O Editor Tudo mata Ivan Lessa/Colunista da BBC Brasil Primeiro, era para a gente não comer manteiga. Manteiga matava. Depois ovo. Ovo matava. O companheiro completava 18 anos e saía sem dar a menor pelota de casa e ia às ruas. Nunca lhe avisaram que as ruas matavam. Continuam matando. Viver é morrer. Uma coisa está embutida na outra e é preciso que alguém nos dê um guia para não morrer antes do tempo. Se é que há um tempo para morrer. Fato é que a vida é um conjunto de superstições, com avanços e recuos científicos. Para cada caneta esferográfica (uma das grandes invenções da humanidade) há uma bomba atômica pronta para explodir nas 32 esquinas que nos cercam. Por falar em superstição, lembro que Carlito Rocha, durante os anos 40 um alto e pitoresco dirigente do Botafogo (foi o responsável pela adoção oficial pelo time do Biriba, um cachorro que entrou em campo um dia e nunca mais abandonou a equipe da estrela solitária), adotou a política de fazer com que os jogadores, antes de entrar em campo, chupassem uma manga. Isso porque era voz corrente – leia-se superstição – o fato de que “manga com cachaça mata”. Não mata nada. Mas era uma maneira de evitar que o pessoal tomasse umas e outras em dia de jogo. Carlito Rocha também cismou com calção preto e uma beleza de camisa de mangas compridas e abotoada na frente, que, em 1948, a equipe usou por um ou dois jogos até levar uma tunda de um Bonsucesso ou Olaria. Coisas que só aconteciam com o Botafogo, conforme o bordão da época. Morre-se de bomba, homem-bomba e carro-bomba no Iraque e no Afeganistão. Acham muito natural. Nenhum cientista procurou estudar a sério esse fenômeno dos homens terem mania de matar outros homens, em vez, coisa muito melhor, de ficar tomando cachaça e chupando manga (a melancia seguida de álcool também mata, segundo o lendário popular). É esperado, é natural, é lógico. Agora, bota um surto de infecções intestinais, mortes e gente vomitando a alma e voando para os banheiros, tudo por causa do danado do pepino, e a notícia abafa qualquer outra. Até o momento em que escrevo 18 já “subiram” graças ao pepino, que a princípio achavam que fosse o espanhol. A Espanha é um país orgulhoso e zela por suas tradições, tais como a Inquisição, o ditador Francisco Franco e as equipes do Real Madrid e do Barcelona. Ficaram uma fúria e, em protesto contra o que chamaram até mesmo de “má fé” dos cientistas alemães, que deram o “primeiro a piar”, desandaram a devorar o insinuante legume na natural, sem vinagre ou azeite nem nada (aliás o azeite espanhol, há tempos já foi tido como responsável pela morte de algumas dezenas ou mais de pessoas, mas disso já se esqueceram) só para mostrar que a bactéria do E. Coli não tinha sotaque nem de Castilha nem da Galiza (e não Galícia, friso). En passant, eu que sou mal-informado, desatento e pouco sério, sempre achei que o tão falado E. Coli era um atacante veterano do Barça ou do Real Madrid. E que o E era apenas a inicial de Eduardo. Eduardo Coli, vulgo Coli, cujo passe, comprado do Bahia FC, custara uma pequena fortuna. Os fatos, esses chatos, indicam que me enganei, mais uma vez. Não foi o Coli o responsável pelos 1.169 casos registrados, até esta quinta-feira, na Europa. Alemanha, Suécia, foram todos de Escheverichia coli, pois esse o nome do bacilo ou da bactéria simbiente em questão. Há outros suspeitos na fila, depois da Espanha: Holanda e Dinamrca entre eles. Seria engraçado, num sentido macabro, se a Dinamarca fosse a responsável pelo assustador surto. Só porque proibiu a venda, em todo o território nacional, da pasta Marmite (“Você Ama ou Odeia” é seu slogan) noticiado aqui com pesar na seção BBC à Mesa, servida pelo Thomas Pappon. A Dinamarca já proibira anteriormente o nosso Ovomaltine (ou Ovaltine por aqui) e o Horlicks, um ingrediente à base do malte, frio ou quente, que eu amo e pode ser preparado (duas colheres e leite) tanto no inverno quanto no verão. Agora segurem essa, dinamarqueses, mais chatos e pouco melancólicos, perdendo longe para o malfadado e doce príncipe Hamlet. Ainda por cima o Coli (peguei intimidade) já chegou aos Estados Unidos e, para mostrar sua isenção, Rússia. Audácia do bofe. Mais: volta à tona, para pegar ar, na certa, a discussão em torno dos celulares. Um lado diz que sua radiação dá câncer, outro diz que não dá. Ambos citam estudos científicos, quando não emitido por um cientista. No que as pessoas continuam falando e textando pelas ruas de todas as cidades do mundo. Sem parar. Sem rebater com um pepinozinho ou chupando uma carlotinha “daquelas”depois de umas e outras. Agora, concerto de Ringo Starr, como está tendo, ou vem aí, pode. Esse não faz mal à saúde, ainda não vi ninguém reclamar. Durma-se com um barulho desses. [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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Ivan Lessa: Os homens que deixei para trás

Novamente a pena afida de Ivan Lessa acerta o alvo. Ivan Lessa – Colunista da BBC Brasil A três por dois sinto falta dos homens que deixei para trás no Brasil. Saudades mesmo. Feito tenho do xarope de groselha e da cocada da baiana. Os homens que deixei para trás. Aspeêmo-los que é para dar um pouco mais de dignidade para um senhor de minha idade. Os “homens” que deixei para trás. No Reino Unido, há uma grande falta de “homem”. Falaram do multiculturalismo, que isso tem que acabar, mas ninguém ousou falar na adoção de “homens” para os diversos afazeres diários e necessários para a boa sobrevivência nestas ilhas. Todos os homens (deixemos as aspas de lado por uns momentos) da Grã-Bretanha têm uma profissão definida, à exceção dessa gentarada toda que vai se cobrir de arminho e joias de fantasia de luxo, todas dignas de pelo menos uma menção honrosa nos velhos bailes de Carnaval no Municipal, no decorrer do acontecimento do ano, da década, do século, exageram os monarquistas mais exaltados.[ad#Retangulo – Anuncios – Direita] Tudo porque vai haver casamento, digo, Casamento. Quem nunca viu um monarquista exaltado ainda não viu nada. Mais engraçado que foca equilibrando bola no nariz em jardim zoológico ou filme do Gordo e do Magro. Tudo porque um príncipe vai se casar com uma moça. Plebeia, além do mais. Como no filme do Gregory Peck com a Audrey Hepburn, embora o casal, e todos os filhos que terão, não possuam, em conjunto, 0.5 % do charme e talento da hollywoodesca dupla. Gozado, e bom mesmo, seria se o nobre levasse para o altar outro homem (mas sem aspas). Queria ver se ia haver essa quantidade brutal de quinquilharias que os mais sofisticados, aqueles com terceiro ano ginasial e que depositaram ursinhos e flores pela cidade inteira quando da morte de Diana, a Princesa de Gales, chamam de souvenires. O inédito do enlace entre cavalheiros do mesmo sexo daria, ao menos, mais graça e vida, aos comentários que as pessoas que ligarem a televisão serão obrigadas a ouvir no dia – não há outra palavra – fatídico. Afastei-me do meu tema. Como me afastei há mais de 33 anos de… sim, claro, como eu ia dizendo antes de tergiversar, meus “homens”. Lá, eu e meus familiares (parece Fala do Trono) tínhamos “homens” para todas as ocasiões. Ocasiões periclitantes. A pia estava entupida, alguém dava a sábia sugestão: – Tem que chamar o “homem” da pia! Problemas com a antena de televisão? – O telefone do “homem” da antena está naquele caderninho perto do telefone! Doenças, sempre resolvidas com antibiótico, ligar para a farmácia e pedir para o “Zé da Farmácia” dar um pulinho aqui! E assim por diante. Nada se resolvia sem um “homem”. “Homem” era profissão, e não essa besteira de administrador de empresas, torneiro-mecânico, otorrinolaringologista e por aí afora. Todos eram “homens”. Como tínhamos “homens”! Disso e daquilo outro. Para todas as horas e circunstâncias. Bom mesmo era “homem”, não importa o que digam. Nós dávamos com o Zé no botequim da esquina tomando sua pinga e nos cumprimentávamos cordialmente. Ele dava um jeito (nem sempre grande coisa) em nossos problemas, nós retribuíamos com uns trocados extras para a cerveja. Não eram caros nossos “homens”. E deles me aposso de novo e digo, com todo o orgulho e a plenos pulmões fraquinhos, meus “homens”. Aqui, acabou-se o que era doce ou dulcíssimo. Refresco de groselha, cocada e “homem”. Todos aqui nesta terra, mesmo os desempregados, vivem de benefícios sociais, são homens e homens profissionais. Com raríssimas exceções. Eu só consigo chamar o pequeno armazém da esquina, que fica aberto até meia-noite de “o indiano da esquina”, embora o dono seja bengalês. E, last but not least, Norman. Que, no último sábado do mês, vem e limpa mais ou menos direitinho as 5 janelonas vitorianas de meu flat, a 3 libras cada uma. Não é caro. Também não cedo o telefone de seu celular. Sobrou, pois, para mim, um “homem”: Norman, o “homem das janelas”. Vive-se do que resta da vida e que alguém decidiu que seja nosso quinhão. Que assim seja e continue.

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