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O melhor texto sobre democracia publicado ns últimos tempos

Reflexão terrestre sobre a democracia por Augusto de Franco/Dagobah Na reflexão terrestre sobre a democracia vimos que “alguns acham que a democracia é assim como um tipo de construção ideológica, que depende de um corpo de crenças teoricamente articulado e do qual se possa inferir consequências. Eles têm uma apreensão cognitivista – e não interativista – da democracia. Superavit de Platão ou deficit de Protágoras”. Isso precisa ser desenvolvido e melhor explicado. A opção pela democracia não exige a adesão a um corpo de crenças como filtro para transformar caos em ordem, mas em uma ordem estabelecida pregressamente ou antes da interação propriamente política – transcendente, natural ou imanente: seja porque estaria de acordo com desígnios extra-humanos já estabelecidos (supra-humanos ou sobre-naturais) por uma ordem pré-existente, seja porque derivaria da natureza, seja porque se sintonizaria com a marcha da história ou com suas leis. Este parágrafo é muito sintético, mas provavelmente contém tudo (ou quase). Ou seja, nada de transcendente, natural ou imanente. Em outras palavras: 1) nada de visão esotérica ou religiosa; 2) nada de visão liberal-econômica (segundo a qual existiria algo como uma natureza humana: e. g., a hipótese de que o ser humano – tomado como indivíduo – seria inerentemente ou por natureza (?) competitivo e faria escolhas racionais buscando sempre maximizar a satisfação dos seus interesses ou preferências, ao fim e ao cabo egotistas); e 3) nada de visão determinística (baseada em alguma imanência: a história grávida que vomitaria – por meio das ações humanas – um sentido já existente antes que os seres humanos escolhessem um caminho ou simplesmente fossem para onde querem ir ou não. DEUS, NATUREZA E HISTÓRIA Se essas noções – Deus, Natureza e História – forem reificadas para fornecer à política alguma razão, não estamos mais no terreno da política propriamente dita, quer dizer, da democracia (tal como a conceberam ou experimentaram – no caso é a mesma coisa – os democratas atenienses). É por isso que o único sentido compatível com a democracia que se pode atribuir à política é a liberdade. Do ponto de vista da democracia, liberdade significa que Deus não é capaz de dar nenhum sentido à política, a Natureza (seja o que for) também não é capaz de dar nenhum sentido à política e, ainda, que a História também não é capaz de dar nenhum sentido à política. Deus A adesão confessional ou teologal à uma potência extra-humana (como fazem as filosofias religiosas ou teosóficas) capaz de intervir nos assuntos coletivos humanos (ou, mais exatamente, sociais) não pode fornecer uma razão para a política e é por isso que povos como os hebreus (a turba dos hapirus, quer dizer, dos sem-reino que invadiram ou se insurgiram em Canaã na primeira metade do primeiro milênio AEC), que acreditavam num plano divino para a humanidade (ou para o seu próprio povo, tomado como povo de um deus: o seu deus IHVH), mesmo tendo todas as condições objetivas para inventar a democracia (basta ler os relatos da Assembléia de Siquém e Samuel 8), não o fizeram. Isso não tem a ver propriamente com acreditar em deuses (ou em um deus) e sim com contar com esses deuses (ou deus) para intervir nos conflitos humanos, para regular esses conflitos ou para resolver os dilemas da ação coletiva. Os democratas atenienses não aboliram os deuses (da cidade), pelo contrário: conviveram com eles, mas sem deles esperar nada além da proteção ao funcionamento das suas instituições democráticas nascentes (como o Zeus Agoraios, nume tutelar das conversações na praça do mercado) e de inspiração para as práticas (e procedimentos) democráticos que experimentavam (como a deusa Peitho, a persuasão deificada). Mas eles não substituíram essas instituições e práticas pela intervenção sobre-humana ou sobre-natural (dos seus deuses). Se há deuses (ou um deus) que intervem nos assuntos propriamente humanos (quer dizer, na rede social), então para nada serve a política como modo de auto-regulação ou de comum-regulação (e nem ela teria surgido no entre-os-humanos, já que o Zoon Politikon – o animal político – é uma invenção de Aristóteles incompatível com a democracia), como uma forma específica de interação (a política). Onde há deuses (ou um deus) intervindo, não pode haver lugar para a liberdade, que é sempre a liberdade de ser infiel a um desígnio, de não seguir um plano (já traçado por qualquer potência humana ou extra-humana), de não se conformar a uma ordem (preexistente, ex ante à interação). Deuses (ou um deus) podem existir, desde que não nos obriguem a ser fiéis a eles (ou a ele) ou aos seus desideratos. A democracia é coisa de kafirs (e por isso lhe é tão avessa a cultura islâmica), é uma desobediência ao que já está disposto, à obrigação de seguir um rumo: porque a liberdade é, fundamentalmente, poder sempre escolher um novo rumo e mudar de rumo, ou melhor, poder não ter rumo, como disse o poeta – Manoel de Barros (2010), em Menino do Mato – “Livre, livre é quem não tem rumo”. Se há uma ordem, uma hierarquia, uma fraternidade ou sociedade encarregada de conduzir ou orientar coletividades humanas (grupos, cidades, nações, povos) em uma determinada direção, para cumprir algum plano cósmico (engendrado ou não por um deus que apenas quer se reconhecer no espelho da existência ou por vários deuses ou, ainda, por seres superiores não-humanos, autóctones ou alienígenas, do passado, do presente ou vindos do futuro), é a mesma coisa. Todas essas visões esotéricas levam à autocracia, não à democracia. Pois como alguém, na condição humana, poderia ser infiel à vontade ou às leis estabelecidas por esses seres superiores sem violar algum tipo de moral? E como os direitos humanos poderiam se equiparar (ou se contrastar) aos direitos desses seres mais evoluídos ou melhores, mais puros ou mais perfeitos? Quando Ésquilo (472 AEC), em Os Persas, escreveu que os atenienses (democráticos) “não são escravos nem súditos de ninguém”, ele estava dizendo que eles (como povo, quer dizer, coletivamente) não eram escravos nem súditos de ninguém mesmo: nem de humanos, nem de deuses. E, poderíamos acrescentar, nem de leis naturais. Isso nos leva ao próximo ponto.

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