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Fernando Pessoa – Poesia – 27/05/24

Boa noite Ode marítima Álvaro de Campos/Fernando Pessoa Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material, Real, visível como cais, cais realmente, O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado, Insensivelmente evocado, Nós os homens construímos Os nossos cais nos nossos portos, Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira, Que depois de construídos se anunciam de repente Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas, A certos momentos nossos de sentimento-raiz Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta E, sem que nada se altere, Tudo se revela diverso.

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Fernando Pessoa – Álvaro de Campos – Poesia – 07/03/24

Boa noite Viver é desencontrar-se Álvaro de Campos/Fernando Pessoa Viver é desencontrar-se consigo mesmo. No fim de tudo, se tiver sono, dormirei. Mas gostava de te encontrar e que falássemos. Estou certo que simpatizaríamos um com o outro. Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento Em que pensei que nos poderíamos encontrar. Guardo tudo.

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Fernando Pessoa – Poesia – 13/11/23

Boa noite Estou cansado da inteligência Álvaro de Campos/Fernando Pessoa¹ Estou cansado da inteligência. Pensar faz mal às emoções. Uma grande reacção aparece. Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo Na casa antiga da quinta velha. Pára, meu coração! Sossega, minha esperança fictícia! Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui… Meu sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer! Meu horizonte de quintal e praia! Meu fim antes do princípio! Estou cansado da inteligência. Se ao menos com ela se apercebesse qualquer coisa! Mas só percebo um cansaço no fundo, como baixam na taça Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho. ¹ Fernando Antonio Nogueira Pessoa * Lisboa, Portugal – 13 de Junho de 1888 + Lisboa, Portugal – 30 de Novembro de 1935

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Fernando Pessoa/Álvaro de Campos – Versos na tarde – 04/08/2016

O tumulto concentrado da minha imaginação intelectual Fernando Pessoa/Álvaro de Campos ¹ O tumulto concentrado da minha imaginação intelectual… Fazer filhos à razão prática, como os crentes enérgicos… Minha juventude perpétua De viver as coisas pelo lado das sensações e não das responsabilidades. (Álvaro de Campos, nascido no Algarve, educado por um tio-avô, padre, que lhe instilou um certo amor às coisas clássicas). (Veio para Lisboa muito novo…) A capacidade de pensar o que sinto que me distingue do homem vulgar Mais do que ele se distingue do macaco. (Sim, amanhã o homem vulgar talvez me leia e compreenda a substância do meu ser. Sim, admito-o, Mas o macaco já hoje sabe ler o homem vulgar e lhe compreende a substância do ser). Se alguma coisa foi porque é que não é? Ser não é ser? As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente, Em outra maneira de ser? Perderei para sempre os afetos que tive, e até os afetos que pensei ter? Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta, E me possa abrir com razões a inteligência do mundo? ¹ Fernando António Nogueira Pessoa * Lisboa, Portugal – 13 de junho de 1888 d.C + Lisboa, Portugal – 30 de novembro de 1935 d.C [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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Fernando Pessoa – Versos na tarde – 31/12/2013

Tabacaria ¹Fernando Pessoa – Álvaro de Campos Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Fui até ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores, E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar? Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Gênio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Não, nem em mim… Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas – Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, E quem sabe se realizáveis, Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordamos e ele é opaco, Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa. (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê – Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) Vivi, estudei, amei e até cri, E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente Fiz de mim o que não soube E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem

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Álvaro de Campos/Fernando Pessoa – Versos na tarde – 07/01/2013

Adiamento Álvaro de Campos/Fernando Pessoa ¹ Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã… Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, E assim será possível; mas hoje não… Não, hoje nada; hoje não posso. A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, O sono da minha vida real, intercalado, O cansaço antecipado e infinito, Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico… Esta espécie de alma… Só depois de amanhã… Hoje quero preparar-me, Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte… Ele é que é decisivo. Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos… Amanhã é o dia dos planos. Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo; Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã… Tenho vontade de chorar, Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro… Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. Só depois de amanhã… Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana. Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância… Depois de amanhã serei outro, A minha vida triunfar-se-á, Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático Serão convocadas por um edital… Mas por um edital de amanhã… Hoje quero dormir, redigirei amanhã… Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância? Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo… Antes, não… Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. Só depois de amanhã… Tenho sono como o frio de um cão vadio. Tenho muito sono. Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã… Sim, talvez só depois de amanhã… O porvir… Sim, o porvir… ¹ Fernando Antonio Nogueira Pessoa * Lisboa, Portugal – 13 de Junho de 1888 d.C + Lisboa, Portugal – 30 de Novembro de 1935 d.C http://biografia.inf.br/fernando-pessoa-poeta.html Álvaro de Campos nasceu em Tavira, Algarve, Portugal, e depois se mudou para Glasgow, Escócia, onde foi estudar engenharia. Primeiro mecânica, depois naval. “Quase se conclui do que diz Campos, de que, o poeta vulgar sente espontâneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim” afirmou Ricardo Reis em um de seus apontamentos. Álvaro de Campos é um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa. [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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Fernando Pessoa – Álvaro de Campos – Versos na tarde

Lisbon Revisitet – 1926 Fernando Pessoa ¹/Álvaro de Campos ² Nada me prende a nada. Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo. Anseio com uma angústia de fome de carne O que não sei que seja – Definidamente pelo indefinido… Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto De quem dorme irrequieto, metade a sonhar. Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias. Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua. Não há na travessa achada o número da porta que me deram. Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido. Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota. Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados. Até a vida só desejada me farta – até essa vida… Compreendo a intervalos desconexos; Escrevo por lapsos de cansaço; E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia. Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme; Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago; ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso. Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma… E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei, Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa (E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas), Nas estradas e atalhos das florestas longínquas Onde supus o meu ser, Fogem desmantelados, últimos restos Da ilusão final, Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido, As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus. Outra vez te revejo, Cidade da minha infância pavorosamente perdida… Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui… Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, E aqui tornei a voltar, e a voltar. E aqui de novo tornei a voltar? Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória, Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? Outra vez te revejo, Com o coração mais longínquo, a alma menos minha. Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo -, Transeunte inútil de ti e de mim, Estrangeiro aqui como em toda a parte, Casual na vida como na alma, Fantasma a errar em salas de recordações, Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem No castelo maldito de ter que viver… Outra vez te revejo, Sombra que passa através das sombras, e brilha Um momento a uma luz fúnebre desconhecida, E entra na noite como um rastro de barco se perde Na água que deixa de se ouvir… Outra vez te revejo, Mas, ai, a mim não me revejo! Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico, E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim – Um bocado de ti e de mim! ¹ Fernando Antonio Nogueira Pessoa * Lisboa, Portugal – 13 de Junho de 1888 d.C + Lisboa, Portugal – 30 de Novembro de 1935 d.C ->> biografia ->> aqui mais Fernando Pessoa no Blog ² Álvaro de Campos nasceu em Tavira, Algarve, Portugal, e depois se mudou para Glasgow, Escócia, onde foi estudar engenharia. Primeiro mecânica, depois naval. “Quase se conclui do que diz Campos, de que, o poeta vulgar sente espontâneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim” afirmou Ricardo Reis em um de seus apontamentos. Álvaro de Campos é um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa. [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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Fernando Pessoa – Versos na tarde

Lembro-me bem do seu olhar Fernando Pessoa/Álvaro de Campos ¹ Lembro-me bem do seu olhar. Ele atravessa ainda a minha alma. Como um risco de fogo na noite. Lembro-me bem do seu olhar. O resto… Sim o resto parece-se apenas com a vida. Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa. Olhei para as montras despreocupadamente E não encontrei amigos com quem falar. Tão triste que me pareceu que me seria impossivel Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse, Mas porque seria impossivel viver amanhã e mais nada. Fumo, sonho, recostado na poltrona. Dói-me viver como uma posição incômoda. Deve haver ilhas lá para o sul das coisas Onde sofrer seja uma coisa mais suave. Onde viver custe menos ao pensamento, E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais Nem no dia do mês ou da semana que é hoje. Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender, Um coração exageradamente espontâneo Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real, Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta. Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove. ¹ Fernando Antonio Nogueira Pessoa * Lisboa, Portugal – 13 de Junho de 1888 d.C + Lisboa, Portugal – 30 de Novembro de 1935 d.C ->> biografia Álvaro de Campos nasceu em Tavira, Algarve, Portugal, e depois se mudou para Glasgow, Escócia, onde foi estudar engenharia. Primeiro mecânica, depois naval. “Quase se conclui do que diz Campos, de que, o poeta vulgar sente espontâneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim” afirmou Ricardo Reis em um de seus apontamentos. Álvaro de Campos é um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa. [ad#Retangulo – Anuncios – Duplo]

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