Deus vult: uma velha expressão na boca da extrema direita

Por que a extrema direita brasileira ama a Idade Média europeia.

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Foto Agência Pública BRUNO FONSECA

Historiador Paulo Pachá explica conceitos ligados às Cruzadas que contagiaram bolsonaristas

“Deus vult”, expressão do latim que em português significa “Deus quer”, vem estampando camisetas, textos, tatuagens e tweets da extrema direita mundial desde que Donald Trump resolveu se lançar candidato à presidência dos EUA, em 2016. O termo, que data do início do milênio passado (1095), faz referência ao grito do povo em resposta ao papa Urbano II, quando do anúncio da Primeira Cruzada pelo pontífice, explica Paulo Pachá, professor de história medieval da Universidade Federal Fluminense (UFF) nesta entrevista à Pública.

Pachá, autor do artigo Por que a extrema direita brasileira ama a Idade Média europeia, avalia que esse discurso medieval envolve uma série de preconceitos como racismo, homofobia, islamofobia e machismo. “Essa Idade Média aparece como um passado idealizado por esses grupos, onde você teria uma sociedade que é majoritariamente, se não exclusivamente, branca, cristã e patriarcal.”

No Brasil, essa referência cruzadista tem sido utilizada por bolsonaristas na esteira da direita alternativa norte-americana, também conhecida como alt-right. “Está decretada a nova cruzada. Deus vult!”, comemorou no Twitter o analista político Filipe Garcia Martins quando da vitória de Bolsonaro. Aluno de Olavo de Carvalho e atual assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, Martins escreveu durante a posse: “A nova era chegou. É tudo nosso! Deus vult!”.

Além dele, outros apoiadores bolsonaristas têm feito uso da expressão. “Precisamos de um São Bernardo de Claraval [abade encarregado pelo papa de pregar a Segunda Cruzada] para animar novas Cruzadas. CHEGA”, escreveu o tuiteiro e youtuber Bernardo P. Küster, após ataques de terroristas muçulmanos contra cristãos no Sri Lanka em 21 de abril deste ano.

A produtora Brasil Paralelo, por exemplo, autora do documentário que relativiza o golpe militar, 1964 – O Brasil entre armas e livros, produziu recentemente uma série documental chamada Brasil – A última Cruzada, na qual apresenta uma interpretação de personalidades e pesquisadores de direita sobre a história brasileira. Também o portal Senso Incomum publicou no início de abril o podcast “Deus vult – As Cruzadas salvaram o mundo”, narrado pelo influenciador digital Flávio Morgenstern.

Apesar de estudar um período longínquo, Pachá acredita que “o discurso sobre o passado não é inócuo, ele tem consequências no nosso presente” e explica a seguir esse fenômeno que avalia não como revisão, mas sim negação da história e da ciência.

Vemos recorrentemente no discurso da extrema direita referências às Cruzadas e a uma “nova Cruzada” que estaria ocorrendo hoje. O que eles querem dizer com isso?

Paulo Pachá é professor de história medieval da Universidade Federal Fluminense.
Paulo Pachá é professor de história medieval da Universidade Federal Fluminense. ARQUIVO PESSOAL
A primeira coisa é entender qual é o papel da Cruzada ou dessa nova Cruzada no pensamento da extrema direita, que é semelhante no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. Isso vem aparecendo de maneira congruente, o que é um pouco assustador.

Essas ideias de Cruzada e de Idade Média têm a ver com uma visão bastante idealizada e bastante parcial do que foi o período. O que atrai esses grupos é pensar que foi um tempo patriarcal, branco e cristão. Essa Idade Média nunca existiu, mas tem esse papel no pensamento desses grupos.

As Cruzadas são especialmente exaltadas porque são um momento no qual esses três elementos [patriarcal, cristã e branca] estão muito bem representados. Nessa visão das Cruzadas, você teria um movimento bélico liderado por um grupo visto como majoritariamente masculino; um elemento que envolve a questão religiosa — as Cruzadas como primordialmente um conflito religioso entre cristianismo e islamismo — e, além disso, a ideia de uma disputa plurissecular entre Ocidente e Oriente.

Recuperar as Cruzadas é desenvolver [uma narrativa sobre] como esses três elementos desempenharam papel fundamental durante a Idade Média. Você teria uma defesa da religião cristã contra o islamismo, um movimento militar — e, aí, todas as características de masculinidade, de virilidade, de força — e essa questão Oriente versus Ocidente, que leva à construção de uma ideia de civilização ocidental.

Pergunta. O que de fato são as Cruzadas?

Resposta. As Cruzadas são um processo histórico extremamente complexo. A princípio, quando se fala em Cruzadas, se fala do movimento que envolve a retomada de antigos territórios do Império Bizantino, mas há uns 20, 30 anos outros movimentos de expansão cristã também vêm sendo enquadrados por historiadores como parte disso, como, por exemplo, a chamada Reconquista, na península Ibérica.

Então a Cruzada foi parte do processo de expansão da cristandade. Isso é diferente da ideia de um movimento de expansão do cristianismo. Essas coisas não estão diretamente vinculadas. A gente pensa na sociedade da cristandade como um todo maior, onde um elemento muito importante é o cristianismo, mas não necessariamente ele é o elemento central, que possa ser isolado dos demais.

A gente costuma ver isso sobre a Primeira Cruzada, que é mais requisitada por esses grupos e talvez a mais famosa de todas. E como esses grupos apresentam a Primeira Cruzada? Como um movimento pregado pelo papa Urbano II e promovido pelos grandes aristocratas [senhores] “europeus” — entre aspas — para defender o Império Bizantino contra o avanço muçulmano e “reconquistar” Jerusalém.

O problema é que essa é uma forma extremamente simplificada e bastante danosa de observar qualquer processo histórico, mas mais especificamente esse. O que esse tipo de visão ignora? Não existe consenso historiográfico sobre um movimento de expansão muçulmana intenso e centralmente dirigido. Existe, sim, uma longa guerra entre bizantinos e muçulmanos que dura várias décadas, nas quais houve momentos de expansão bizantina e momentos de expansão muçulmana.

A perspectiva bizantina também fica completamente ausente da narrativa da extrema direita. Você tem uma disputa claríssima, durante as Cruzadas, entre cristãos católicos [da Igreja Católica Apostólica Romana] e bizantinos [da Igreja Ortodoxa Grega], inclusive com conflitos militares em determinados momentos.

Outra coisa que fica perdida [nessa narrativa da extrema direita] é a questão do antissemitismo. A gente vai ter, nesse momento da Primeira Cruzada, massacres de comunidades judaicas pela Europa. Você tem um momento de efervescência religiosa cristã na qual uma das manifestações é a Cruzada e uma outra manifestação, o antissemitismo.

P. Por que você diz “europeus”, entre aspas?

R. Porque ainda não existia Europa nesse período. Falar em povo europeu durante a Primeira Cruzada não faz nenhum sentido, pois as pessoas não se reconheciam como europeus. E quando a extrema direita fala em povo “europeu” ela coloca [dentro disso] o povo bizantino, que tampouco se reconhecia como parte do mesmo grupo. O que se pode falar é de cristandade, um grande grupo que professava a religião cristã, mas mesmo dentro disso a gente vai ter divisões. Essa suposta unidade absoluta do cristianismo na Idade Média é falsa. E ainda dentro desse território a gente vai ter inúmeras outras religiões, além do cristianismo.

P. Você diz que na Europa a ideia de identidade única europeia nunca existiu, mas ao menos há uma proximidade geográfica e histórica. No Brasil, faz algum sentido essa percepção de que o Brasil também é fundado por essa sociedade que era branca, cristã e patriarcal?

R. Eu diria que não. A ideia de civilização ocidental é uma construção conceitual, que tem de fato uma origem na Europa e olha para esse passado “europeu” e constrói essa ideia de uma sociedade idealizada. Isso nunca existiu na Europa, e a civilização ocidental é ela mesma uma construção. Se faz sentido esses grupos da extrema direita brasileira requisitarem o seu lugar nessa civilização ocidental, recorrendo a um suposto direito de origem, via o nosso vínculo com Portugal? Eu diria que não, isso não faz sentido nenhum do ponto de vista histórico.

P. A partir de quando esse discurso passou a ser usado pela extrema direita?

R. É uma questão difícil de ser respondida. Esse fenômeno da extrema direita não está ainda bem estudado. No Brasil, talvez nos últimos dez anos, temos uma junção de certos grupos que até então estavam bastante separados. Por exemplo, quem é que recorre a essa narrativa idealizada sobre a Idade Média? Grupos cristãos conservadores. Então a Idade Média vai ser uma referência para esses grupos. Monarquistas vão tomar esse período como uma referência positiva também. Conservadores, de uma maneira geral.

A gente começa a ver hoje grupos se opondo ao Iluminismo, por mais absurdo que isso pareça, e nesse movimento de oposição volta a visão idealizada da Idade Média.

Mas quando isso começa a acontecer é difícil saber, já que a Idade Média sempre foi alvo de disputa entre agentes diversos. A própria criação de uma ideia de Idade Média está envolvida numa relação entre determinado presente e seu passado imediato. O termo “Idade Média”, que por si só já é pejorativo, nasce de uma necessidade de negativar o passado medieval para positivar um presente que se apresentava como renascimento. E aí, ao longo dos séculos XVIII e XIX, a gente vai ter um resgate, uma nova positivação da Idade Média com o romantismo, por exemplo. Então a Idade Média está sempre sujeita a ser apropriada e reapropriada de acordo com as demandas do presente.

P. Como esse discurso de idealização da Idade Média é adaptado à realidade do Brasil?

R. Isso é interessante, porque a princípio parece um contrassenso que a Idade Média desempenhe um papel tão central no debate político do Brasil. Mas isso começa a ficar mais claro, mais razoável, quando a gente pensa em como a identidade brasileira se construiu e vem sendo desenvolvida por grupos conservadores. A ideia, aqui, é pensar que o Brasil é essencialmente europeu; que, por ter sido colonizado por Portugal, de alguma maneira essa identidade europeia chega até o Brasil e se desenvolve aqui também.

O curioso é que justamente não tem nenhuma grande diferença na forma como isso é colocado na Europa, nos EUA e no Brasil, porque a ideia é de que o Brasil, ou pelo menos uma parte dele, é “branca”. Essa parte seria europeia, então ela também tem esse vínculo com a Europa medieval via Portugal. Essa ideia aparece de maneira escandalosamente clara em um texto do atual chanceler Ernesto Araújo, no qual ele fala com todas as letras que o Brasil é uma realização de Portugal e, portanto, a gente não poderia esquecer nosso berço. Eu não estou citando exatamente o que ele falou, mas o sentido é esse.

P. Você chega a citar no seu artigo a série de vídeos do Brasil Paralelo “Brasil – A última Cruzada”. Seria um pouco nessa lógica de que o Brasil foi a última Cruzada, a conquista final de certa forma?

R. Aquele vídeo do Brasil Paralelo é supostamente um documentário sobre a história do Brasil. No entanto, o primeiro episódio é uma história da Europa, principalmente uma história da Europa medieval. O principal ali, a ideia-chave, é a questão da civilização ocidental. A Grécia clássica é mencionada, a Roma antiga é mencionada. Daí a gente fecha na questão da Europa, em que tem uma parte sobre expansão islâmica, para fechar então na península Ibérica e depois progressivamente em Portugal, que é a assim chamada Reconquista. Então a ideia é — e eles estão embarcando nisso — que a chamada Reconquista na península Ibérica seria uma Cruzada. Então, essas questões sobre as Cruzadas no Mediterrâneo oriental teriam acontecido também na península Ibérica, e Portugal seria parte disso.

Uma vez posta em movimento essa expansão, que no documentário é vista primordialmente como uma expansão da fé cristã, os movimentos de expansão marítima e conquista colonial seriam parte dessa mesma lógica. A colonização do Brasil não aparece lá como um processo histórico extremamente complexo que envolve diversos elementos. Aparece primordialmente como um processo de expansão da fé cristã. E essa expansão também daria as bases para essa percepção de identidade europeia.

P. Quando a extrema direita recupera referências da Cruzada, como a expressão “Deus vult”, é sempre numa perspectiva de guerra. No episódio das Cruzadas, a guerra seria contra o islamismo. Mas, no Brasil, qual seria a ameaça contra a qual eles estão lutando quando usam essas referências?

R. Isso aí talvez seja a questão mais interessante, porque não faz sentido a gente pensar em islamofobia no Brasil. Se a islamofobia em outros lugares do mundo está associada a um contato muito intenso com populações que professam o islamismo, isso — infelizmente inclusive — não é uma realidade no Brasil. Não há esse fluxo migratório tão grande de uma população que professe o islamismo. Isso sempre me pareceu uma questão bastante curiosa. Contra quem? Quem é esse inimigo construído? Se essa narrativa sobre a Cruzada parte de uma suposta oposição entre Oriente e Ocidente, entre cristianismo e islamismo, como isso pode ser trazido para o Brasil e frutificar?

Uma hipótese que me parece correta é que essa questão no Brasil tem mais a ver com a esquerda. Por motivos variados, a gente tem, ao longo da segunda metade do século XX, a construção de certo modelo de solidariedade entre a esquerda brasileira e a Palestina. Isso em algum momento ganhou certa solidez e passa a ser visto como uma coisa mais ou menos automática. Um caminho para explicar essa ideia é pensar que falar contra o Islã, no Brasil, seria de certa forma falar contra a esquerda. Tem muitos elementos que vão entrar no meio desse bolo, e é difícil pensar como eles se encaixam, mas claramente existe uma relação. O maior é essa aproximação recente da extrema direita com Israel, que vai colocar a gente justamente nesse contexto do massacre perpetrado pelo Estado de Israel em cima da Palestina.

P. Se no Brasil a questão do Islã é menos presente, na Europa isso é bem presente com as imigrações. Eles enxergam que há uma nova expansão do Islã e o cristianismo precisa rebater isso de alguma forma?

R. Essa questão é bastante presente na retórica da direita europeia e, de maneira um pouco diferente, na retórica da direita norte-americana também. E é o tipo de ideologia que, por exemplo, fundamentava o atirador deste último massacre na Nova Zelândia. A ideia, por mais absurda que seja, é de uma substituição populacional, onde essa população “efetivamente” europeia estaria sob ameaça, agora não mais através de uma expansão militar, mas da imigração.

No Brasil, isso não faz sentido. O Brasil recebe um número ínfimo, ridículo, de imigrantes. Mas a gente teve um momento de emergência, com mais ênfase, dessa questão antimigratória com a crise da Venezuela. A gente assistiu a vários episódios de ataques contra imigrantes, e por aí vai. Há um tempo teve uma pesquisa que mostrou que o brasileiro tem uma percepção de que o Brasil recebe muito mais imigrantes do que efetivamente recebe, e isso também existe na Europa.

Então eu não acho que essa retórica anti-imigração seja diretamente aplicável ao Brasil, o que não quer dizer que a gente não tenha nenhum evento disso acontecendo, ainda que pequeno.

É que determinadas questões que são centrais para Europa a extrema direita brasileira tenta de alguma maneira trazer pro Brasil. Mas isso importa pouco, porque a retórica pode ser a mesma.

Eu analisei que vários memes brasileiros têm uma retórica islamofóbica e anti-imigração, que não faz sentido no ponto de vista brasileiro, mas não importa, porque tem certa unidade político-ideológica entre esses grupos de maneira global. Talvez isso seja o mais assustador desse desenvolvimento.

P. Além dessa islamofobia e xenofobia, esse discurso esbarra em algum outro preconceito quando ele combate a esquerda?

R. Com certeza. Acho que essa visão sobre as Cruzadas dá um tom de se associar a uma ideia de cristianismo, não mais a um cristianismo medieval, mas a um cristianismo brasileiro, onde você vai ter católicos conservadores e evangélicos no mesmo barco. E aí a pauta moral, dos costumes, tem muita força dentro disso.

Há essa representação da questão da masculinidade, das Cruzadas sendo vistas como um evento essencialmente militar, que envolve toda uma ideia de virilidade. Então, uma coisa que vai ser expressa por esses grupos é a homofobia. De maneira clara, explícita. Eu comecei há mais ou menos um ano uma pesquisa sobre como comunidades brasileiras no Facebook produzem memes sobre a Idade Média. Nos EUA é mais comum, há uma maior quantidade, mas isso existe no Brasil também. E todas as questões que a gente vem desenvolvendo aparecem aí. A centralidade dessa ideia de Cruzada e a homofobia explícita. Há uma ideia de que na Idade Média existiam, entre muitas aspas, “homens de verdade”, e agora não mais. A ideia de que a nossa sociedade estaria fragilizada para combater qualquer tipo de ameaça bélica é um elemento central desses memes.

A outra questão que também vai ser um alvo claro para esses grupos é o feminismo. Esses grupos vão numa versão parcial e absurda da Idade Média e procuram um passado idealizado. Para eles, na Idade Média os homens eram viris, eram efetivamente masculinos, poderosos, podiam defender a sociedade. E as mulheres eram, entre muitas aspas, “mulheres de verdade”, mulheres que eram submissas aos homens, que estavam preocupadas em cuidar da família. Isso reaparece nesses memes.

E um outro elemento, talvez mais importante fora do Brasil, mas que aqui vem crescendo de maneira clara, é a questão do racismo. A visão da Idade Média — que não só esses grupos, mas que de maneira geral o senso comum tem — é a visão de um mundo de pessoas brancas. Todas essas formas de opressão contra minorias vão voltar à Idade Média para encontrar lá um passado que nunca existiu, uma sociedade que nunca existiu, e usar isso como forma de legitimar determinados pensamentos no presente e projetar uma ideia de sociedade no futuro.

P. A gente vê muito nas redes sociais, mas isso chega à vida real? Que perigos esse discurso carrega?

R. Acho que é extremamente perigoso. Acho que hoje em dia a gente não pode mais ter a visão de que um discurso que aparece na internet e nas redes sociais está necessariamente restrito à internet e às redes sociais. A gente já teve vários exemplos de como as redes sociais, ainda que estejam restritas a uma parte menor da população, têm um discurso poderoso. E tem um discurso que, existindo nas redes sociais, aparece em outros âmbitos da sociedade. Se está nas redes sociais, pode aparecer na televisão, nas escolas e em comunidades variadas, nas igrejas etc. Acho que o fato de um discurso estar, inicialmente, na internet não deveria ser um conforto.

P. Já que você falou de escolas, no discurso dessa extrema direita há também um ataque à maneira como a história nos é ensinada nas escolas, no ensino básico. Na sua opinião, a história medieval ensinada no currículo básico é a ideal?

R. Pergunta bem interessante. A pesquisa sobre história medieval no Brasil é bastante recente. E mesmo a historiografia sobre a Idade Média foi até muito recentemente — não só no Brasil, mas no mundo como um todo — mais conservadora. Isso vem mudando lentamente, ainda que hoje em dia já tenha uma historiografia muito grande. Já temos muita gente trabalhando com isso no mundo todo e então vemos outras posições aparecendo.

Mas isso significa que, nas escolas de ensino básico no Brasil, a Idade Média ainda é ensinada de maneira bem tradicional. Então essas questões que a gente abordou, por exemplo a ideia de que a Idade Média não era majoritariamente branca, não é nem considerada nos livros didáticos. Ainda que isso não precise ser falado, nenhum professor vai dizer que a Idade Média era majoritariamente branca; é uma questão que está pressuposta, as pessoas já carregam essa ideia, e ela não é nem discutida.

A visão de uma proeminência do cristianismo também é quase que automática. A questão da sociedade patriarcal, que tem a ver com um papel muito reduzido das mulheres na vida social como um todo, isso tudo já está pressuposto, porque a Idade Média é vista de maneira muito tradicional. E tradicional não no sentido de conservador [no espectro político], mas no sentido de como era feito antigamente, há 50 anos ou há 100 anos. Os avanços historiográficos que aconteceram nos últimos 50 anos chegaram pouco no ensino básico.

Quando a gente tem essa história de rever o nazismo, ou de rever o golpe militar, não está falando como uma disputa na esfera pública. As pessoas tiveram aulas sobre esses temas e tiveram contato com versões historiográficas mais recentes. E aí esse discurso: ‘Ah, o seu professor de história não contou tudo, só uma parte’. Isso não acontece com a Idade Média, porque o contato que a maior parte das pessoas tem com essa temática no ensino médio é dado de maneira tradicional. Isso cria um solo fértil onde essa narrativa da extrema direita, que também é tradicional e ultrapassada, pode frutificar.

P. Então a idealização da Idade Média seria um discurso mais forte que o revisionismo do golpe militar e de o nazismo ser de esquerda?

R. Me parece que até agora sim. Essa questão do golpe é sempre uma questão central nas aulas de história do ensino básico. Existe um debate sobre esse tema na sala de aula, e o professor pode apresentar esse debate, e os alunos sabem que isso existe e conseguem entender por que é golpe e não revolução. Com Idade Média não, justamente porque é apresentada de maneira muito tradicional.

Acho que isso vem mudando e provavelmente vai mudar bastante nos próximos anos, porque nas universidades brasileiras, nos cursos de licenciatura em história, existe cada vez mais uma percepção sobre a história medieval de que esse passado tem um uso político no nosso presente e que a gente precisa estar atento a isso e abordar essa questão. A partir do momento em que isso começa a ser pensado na universidade, chega no ensino básico. Mas isso leva algum tempo. O ideal é que isso seja pensado também no ensino básico, em paralelo à universidade.

P. O que todos esses revisionismos históricos da ditadura militar, golpe de 64 e Idade Média têm em comum?

R. Uma coisa que eu acho importante pontuar é que, apesar de ser o termo mais utilizado, o mais adequado não é “revisionismo”, mas negacionismo. Porque a história, a historiografia, é essencialmente revisionista. A gente está o tempo todo revisando e reinterpretando as nossas ideias sobre o passado. A questão desses movimentos todos em relação à Idade Média, ao nazismo e ao golpe de 64 não é exatamente uma revisão, mas é negar o conhecimento histórico que existe atualmente sobre esses processos históricos.

Em relação à Idade Média, diferentemente dos outros, não é revisionismo, porque não está se propondo nada novo, mas uma interpretação que está completamente ultrapassada. A ideia, aqui, não é que a gente tem uma ideia de Idade Média diversa e complexa e está se propondo algo completamente diferente disso. O que está se propondo é voltar ao entendimento que foi abandonado com o desenvolvimento da pesquisa histórica sobre o período. E aí o que talvez seja mais interessante: essas pessoas negam todos os especialistas que estão habilitados para falar sobre isso. Por isso negacionismo.

Não é só uma negação de determinadas visões ou determinadas interpretações sobre processos e movimentos históricos. É uma negação da ciência histórica como um todo. Se formos olhar, vamos encontrar movimentos como o da terra plana ou antivacinas, e me parece que tudo isso está bastante conectado.

P. Tem mais algum ponto que você gostaria de abordar?

R. O discurso sobre o passado não é inócuo, ele tem consequências no nosso presente. O que estamos vendo nos últimos anos é como essas visões falsas e parciais sobre a Idade Média vêm sendo requisitadas para justificar atos de terror, massacres e todo tipo de opressão contra minorias. Se um discurso como esse frutificar, as consequências são essas. Existe certa responsabilidade social que envolve historiadores, mas também outros grupos, outros profissionais na sociedade, em relação a esse tipo de negacionismo sobre o passado.

 

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