O banqueiro Daniel Dantas foi preso no dia 8 de julho de 2008. No dia seguinte, pouco mais de 24 horas depois, Dantas era solto graças à concessão de um habeas corpus relâmpago.
Era o início da conturbada e estridente Operação Satiagraha, deflagrada pela Polícia Federal para investigar crimes financeiros e lavagem de dinheiro, e anulada quatro anos depois, sob a alegação de que contou com a participação não autorizada de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
O mesmo destino coube a operações de tamanho e impacto semelhantes, como Castelo de Areia, Chacal, Banestado e Boi Barrica, todas relacionadas a crimes de colarinho branco e todas anuladas após anos de investigação, num histórico que assombra a Operação Lava Jato.
Não há garantias de que a Lava Jato venha a ter um destino diferente dessas outras operações, mas o grande trunfo da investigação que levou os maiores empreiteiros do país para a cadeia pode estar exatamente no seu tamanho monumental. Com pouco mais de um ano de existência, a Lava Jato já recuperou 570 milhões de reais, abriu 20 ações criminais contra 103 pessoas e baseou tanto a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Petrobras quanto a de uma apuração sobre os recursos da campanha de reeleição da presidenta Dilma Rousseff no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).[ad name=”Retangulo – Anuncios – Direita”]
Pela amplitude, a operação teria se tornado “too big to fail”, ou grande demais para ser anulada. Como voltar atrás após tantos executivos assumirem culpa no cartório? Mas não falta vontade aos advogados de defesa que atuam no caso de tentar derrubar toda a Lava Jato. Criminalistas como Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que defende três senadores no caso, enxergam abusos nas prisões preventivas decretadas pelo juiz Sergio Moro e na forma como foram negociadas as delações premiadas de 19 dos acusados até agora.
Doutora em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), Marina Coelho Araújo explica que, por ser tão grande, a Lava Jato disseminou vários processos, que podem tomar rumos diferentes, mas acredita que “alguma coisa vai ser anulada”. A advogada criminalista, que atuou em casos como o da Operação Satiagraha, lembra que, na época da investigação sobre o dono do grupo Opportunity, também se imaginava que o caso era grande demais para ser anulado. Sobre a Lava Jato, ela acredita que “os procuradores não tomaram todos os cuidados para evitar a anulação” e que o futuro da operação vai depender da interpretação das cortes superiores sobre a forma como o dispositivo da delação foi utilizado.
“Entendo que existem algumas questões graves, mesmo de procedimentos menores. E o caso do Banco Santos, por exemplo, foi anulado por causa da audiência de interrogatório. Uma coisa pequena. A anulação não vem só de coisas muito grandes. Não seguiu a lei, tem de anular”, comenta. Em maio deste ano, a Justiça anulou a condenação a 21 anos de prisão imposta em 2006 ao ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos, pelos crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira e lavagem de dinheiro, entre outros.
“O maior escândalo de corrupção da história sangra os cofres da maior empresa estatal do país e põe à prova novamente a eficácia de um sistema processual penal de uma duvidosa eficácia e crônica benevolência com crimes econômicos que envergonham o país.”
Trecho da dissertação de mestrado de Diogo Castor de Mattos, procurador da Lava Jato
O ministro Marco Aurélio Mello é um dos juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) que mais tem comentado o caso, e nem sempre de maneira abonadora. Em uma de suas últimas declarações sobre a Lava Jato, dada ao jornal Valor Econômico, Mello descartou a anulação da operação como um todo, mas criticou a colocação de escutas clandestinas na cela do doleiro Alberto Youssef na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. O ministro lamentou a ” discrepância” que “coloca em xeque” um “trabalho que vem sendo feito com tanta seriedade”, acrescentando que “é possível separar a parte comprometida, se houver”.
Política
Membro da força-tarefa da Operação Lava Jato, o procurador Diogo Castor de Mattos evita comentar diretamente a investigação, mas lança até o final do ano um livro que joga luz sobre os caminhos que a Justiça brasileira tem percorrido para levar à anulação todas as grandes operações contra crimes de colarinho branco. Para ele, as decisões que levam à nulidade são essencialmente políticas. Assegurando que os investigadores da Lava Jato procuram “trabalhar sempre na legalidade”, Mattos disse ao EL PAÍS que não acredita que os responsáveis por operações como Satiagraha ou Castelo de Areia foram menos cuidadosos.
Em sua dissertação A seletividade penal na utilização abusiva do habeas corpus dos crimes de colarinho branco, defendida em fevereiro na Universidade Estadual do Norte do Paraná, o procurador constata que “pela via do habeas corpus, há decretação da nulidade de provas de diversas ações penais envolvendo pessoas abastadas economicamente, autores de crimes do colarinho branco”. Segundo Mattos, “o objetivo nodal da pesquisa é demonstrar que essa utilização abusiva do habeas corpus vem reforçando o caráter seletivo do direito penal nos crimes cometidos pela elite econômica”.
Em seu trabalho, o procurador lembra que “até o início do julgamento da AP [Ação Penal] n°470, também conhecido como ‘Mensalão’, a Corte Suprema do país registrava apenas quatro condenações criminais, nenhuma com trânsito em julgado, e onze absolvições”, e analisa: “Certamente, o notório assoberbamento do STF, como também a benevolência dos julgadores com as teses da defesa, admitindo a análise de inúmeros recursos manifestamente protelatórios de uma decisão que deveria ser irrecorrível, demonstra um sistema pouco eficiente”.
Para embasar sua análise, Mattos destaca que, no caso da Satiagraha, crimes financeiros e lavagem de dinheiro, foram anuladas “todas as provas da operação, independentemente daquelas em que não houve a ‘suposta’ participação dos agentes de inteligência [ABIN]”. Já a Operação Castelo de Areia, que investigava subornos a agentes públicos para fraudar licitações, foi anulada por seu inquérito se basear em denúncia anônima. O procurador aponta uma incoerência, pois “existem aparatos estatais bem sucedidos e institucionalizados como ‘disk denúncia’ que visavam justamente contar com a contribuição da população para elucidação de crimes e preservam a identidade do delator”.
O procurador conclui sua pesquisa dizendo que “no atual momento histórico, a pressão e o controle social exercem papéis fundamentais para a efetiva fiscalização do cumprimento efetivo do papel das instituições”, destacando que “acontecimentos recentes como o próprio julgamento do Mensalão têm demonstrado como a pressão popular ainda é uma das formas mais efetivas de controle da democracia”.
Sem citar a Lava Jato diretamente, Mattos diz no trabalho que “o Brasil vive atualmente um momento histórico único”, pois “o maior escândalo de corrupção da história sangra os cofres da maior empresa estatal do país e põe à prova novamente a eficácia de um sistema processual penal de uma duvidosa eficácia e crônica benevolência com crimes econômicos que envergonham o país”. E finaliza: “É nos tempos de crise e dificuldade que surge a coragem para a mudança e inovação, tendo o país uma chance única de renovação na confiança das instituições públicas”. A dissertação do procurador terá sua prova de fogo nas cortes superiores do país.
Fonte: El Pais