Conversar com o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro é entender um pouco mais o Brasil a partir de uma perspectiva exterior.
Conversar com o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro é entender um pouco mais o Brasil a partir de uma perspectiva exterior.
Ele avalia a ascensão e o declínio do país no cenário internacional nos últimos anos e propõe comparações entre as crises daqui e da Europa.
Professor emérito da Universidade de Paris Sorbonne, o historiador fez praticamente toda sua carreira na França, para onde mudou-se ainda durante a ditadura militar brasileira.
Hoje dá aulas na Faculdade Getúlio Vargas, em São Paulo, e ainda orienta doutorandos da Sorbonne. Com uma formação ampla, aborda temas da história brasileira até política econômica e internacional. Em entrevista ao EL PAÍS reflete sobre o Brasil e o cenário político atual.
Pergunta. O Brasil começou a década como um dos atores que mais atraíam atenção no cenário global, essa impressão era um exagero?
Resposta. Eu passei muito tempo fora do Brasil, sou de uma época em que presidente brasileiro no exterior era vaiado. Não à toa, eram os militares. A situação externa brasileira só foi melhorar com o FHC, mas só mudou com o Lula. A nomeação de José Graziano na direção da FAO[Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] e de Roberto Azevêdo na direção da OMC[Organização Mundial do Comércio] são exemplos claros da política externa exitosa dos anos Lula.
A diplomacia brasileira passou a ter um papel muito significativo, o ministro Celso Amorim teve um papel importante no G20, em várias outras iniciativas de política internacional e expandiu os horizontes do Brasil no mundo. Hoje, temos mais embaixadas na África do que na América Latina, o que acabou sendo fundamental para a eleição de Azevêdo, que, apoiado pelas delegações africanas, venceu o candidato mexicano apoiado pelos EUA. Desse ponto de vista, a empolgação dentro e fora do Brasil não era uma ficção. Aquela capa da The Economist, em que o Cristo Redentor aparecia sendo lançado como um foguete, era um exagero do ponto de vista econômico, mas não do geopolítico.
P. E o que fez o país perder essa relevância? Só as crises econômicas e políticas explicam?
R. Com a Dilma, o Brasil voltou à mediocridade que sempre reinou no campo da política externa. Ela sempre foi extremamente provinciana e voltou a ser. Um exemplo caro disso é que durante as eleições, por exemplo, não se debate sobre política externa. Só entram, de maneira indireta, questões sobre chavismo,Venezuela, Cuba. Isso não é debate. Aí também tem o fato de que Dilma nunca se interessou pela questão exterior, não toma iniciativas internacionais importantes. Hoje a gente esqueceu os nomes dos ministros do exterior, são pessoas que não têm relevo e isso vai de par com a perda de um encanto e relevância brasileira.
P. 2015 foi talvez o ano mais duro politicamente dos últimos tempos. Qual é seu prognóstico daqui para frente?
“No Brasil as comparações com casos do exterior não são bem feitas. A Lava Jato é abertamente inspirada na Mani Pulite, mas essa operação foi problemática”
R. A questão do impeachment, que pautou grande parte das discussões,ficou bastante improvável no Congresso depois da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). E, por outro lado, no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) se tudo acontecer como quer a oposição, o processo levaria no mínimo um ano e meio, o que nos jogaria praticamente para o fim do Governo Dilma. Invalidar um mandato de alguém que está na reta final seria um despropósito. Desse ponto de vista, estamos em um momento de esgotamento da ofensiva contra o Governo e também do assédio ao Governo.
P. E não é a primeira vez que a via do TSE é testada pela oposição…
R. É verdade. Logo no início de 2015, o PSDB pediu a recontagem de votos. Ela foi feita e, no final, eles deram uma declaração de que não conseguiram chegar a nenhuma conclusão. Esse fato com certeza vai pesar em qualquer decisão futura do Tribunal. Além disso, é importante dizer uma coisa. Muito se falou sobre a margem apertada com que Dilma venceu as eleições de 2014 e isso não é verdade. 3,5 milhões de votos a mais é muita coisa. As vantagens sempre são mínimas nas democracias e dá pra dizer que nunca mais um presidente vai ser eleito com tranquilidade no Brasil, as posições já estão muito cristalizadas. Na França, o único exemplo factível de comparação, por ter uma eleição presidencial de dois turnos, a diferença entre Hollande e Sarkozy foi pequena também. Isso é normal.
P. E como você avalia o papel da Justiça nessa crise política?
R. No Brasil as comparações com casos do exterior não são bem feitas. A Lava Jato é abertamente inspirada na Mani Pulite [que investigou casos de corrupção e resultou no fim de partidos políticos na Itália], mas essa operação foi problemática. Um dos resultados foi que Berlusconi acabou primeiro-ministro e, se caiu depois, não foi pelas mãos da operação, mas por causa de uma intervenção da União Europeia. Aqui no Brasil, não existe nenhuma instância suprarregional que poderia intervir ou reavaliar decisões. É o mesmo caso do julgamento do mensalão.
Lá não houve uma possibilidade de recall, ou seja, os julgados não puderam recorrer a uma segunda instância, o que é básico em países com democracia consolidada. Primeiro porque foram julgados direto noSTF, segundo porque não podiam recorrer a nenhuma instância supranacional, como há, na Europa, a corte de Luxemburgo. Eu sou bem cioso em relação à presunção da inocência e acho a coerção por prisão que tem havido algo escandaloso.
P. De qualquer jeito, a crise continua aí. O que vai tirar a política da inércia?
R. É importante dizer que nós estamos em uma situação grave, mas que, quando olho para fora, vejo outros países com ainda mais problemas. Velhos Estados, como Espanha e França, convivem com crises de representatividade em que se somam problemas de identidade nacional. O Sarkozy, por exemplo, queria criar um ministério da identidade nacional. Há problemas que colocam em questão a noção de cidadania e isso não existe no Brasil, um país de dimensões continentais. O que há no Brasil é um Governo na defensiva, impotente. Acredito que o fato que fará com que as coisas comecem a desanuviar um pouco o ambiente são as eleições municipais. No Brasil, elas representam o fim e o começo da política.
P. Como assim?
R. A instância mais antiga de organização das oligarquias é a Câmara municipal. O colonato se organizava ali e é possível ver sua importância no fato de que o reconhecimento do imperador, por exemplo, foi feio exatamente por essas câmaras municipais. Não havia outra assembleia naquele momento, então se vê, por aí, que é uma instância muito antiga. Outra coisa é que as eleições municipais nunca se interromperam completamente no Brasil.
Durante a ditadura militar foram interrompidas nas capitais e em cidades com grande população, mas continuaram acontecendo em alguns locais. Isso é muito particular, porque dá uma força, não de tradição democrática, mas de tradição parlamentar. Um dos resultados disso é que no Brasil nunca houve a figura do ditador, tão comum a vários países hispano-americanos. Não é que houvesse democracia, mas é que a descentralização oligárquica dava uma feição diferente ao jogo político. Essa é a importância histórica, por isso o fim e o começo da política.
P. Mas como essas eleições vão ajudar na crise política?
R. Elas vão redistribuir as cartas na política nacional. O sujeito que se elege prefeito é o cara que já condiciona a eleição do deputado estadual e do deputado federal. Toda a vinculação da próxima eleição legislativa vai ser mapeada agora, inclusive por causa da questão do financiamento das campanhas que, pela primeira vez, não poderá contar com doação de empresas. O futuro candidato a deputado tem todo o interesse em aparecer do lado de um prefeito ou vereador que está em trajetória ascendente. Isso vai reorganizar as coisas.
P. Como os partidos irão lidar com essa proibição?
R. Ninguém sabe como isso vai funcionar direito. A meu ver, há duas questões centrais. A primeira é a possibilidade de que os atuais prefeitos sejam reeleitos. Desafiar um prefeito já estabelecido tem um custo altíssimo e sem poder contar com fundos de financiamento empresarial ficará complicado. É possível que o cenário fique cristalizado de uma maneira rígida. Isso é uma possibilidade ruim que puxa a outra questão envolvida no assunto. Sem fundos, os partidos terão que contar com militância e mobilização. Vão conseguir? Nesse sentido, o PT, que passa por um momento muito difícil, é o único que tem uma vantagem relativa. O Brasil tem cerca de 5.500 municípios no Brasil, eles tem diretórios em 4.200. PSDB e PMDB têm muito menos que isso.
P. Desse ponto de vista, São Paulo é bem importante…
R. Sim. É uma cidade de 12 milhões de habitantes com um orçamento alto e fundos de tributação próprios. É um lugar de efeito simbólico muito grande para a eleição nacional e que, no momento, vive um caso de exemplaridade de gestão. O prefeito Haddad está mostrando isso ao ter feito uma administração que ganhou grande visibilidade internacional. Hoje, por exemplo, a prefeitura de São Paulo tem técnicos competentes para gerir o orçamento e conseguir parcerias com órgãos internacionais e nacionais, como o Banco Mundial, o BID e o BNDES. Isso é uma coisa que não fica evidente e que é muito importante, é um caso raro na América Latina e até em países europeus, como Espanha e Portugal, que tiveram problemas para lidar com as normas europeias de demanda de fundos. São Paulo, assim, é um trunfo para o PT.
P. Mas o petista, apesar de bem avaliado internacionalmente, tem problemas graves de aprovação.
R. Aí entra o outro lado interessante dessas eleições municipais: é que o Haddad pode ser reeleito por causa da desordem do outro lado, da oposição. Há um racha no PSDB. Visivelmente, o Alckmin está testando com o João Dória, a possibilidade de se impor como candidato a presidente em 2018. Se ele não conseguir, é bem possível que saia do PSDB. O mesmo vale para o José Serra, se o Alckmin ganhar, talvez o Serra saia do partido.
O que estamos vendo é que a eleição municipal pode ser o primeiro indício do fim do PSDB em São Paulo, que representa, por si só, metade do PSDB. No lado do PT, o Haddad representa a sobrevivência política do partido em um momento em que a oposição se prepara para tentar dar o golpe final. As eleições do segundo semestre representam a sobrevivência para o PT e a consolidação para o PSDB. Os dois partidos nasceram em São Paulo e podem ter o futuro definido agora.
P. E você arrisca algum cenário para depois das eleições?
R. O fato de o Lula ainda ser considerado o melhor presidente da história do país, apesar dos ataques cotidianos na mídia tradicional, não é de se desprezar. Digo isso porque esse é um traço forte do caso brasileiro: o PT não tem nenhum apoio na mídia, ela é inteira antipetista. Se a comparação pode ser feita, é o contrário do que acontece nos EUA, por exemplo, onde o Obama é perseguido, mas tem os dois maiores jornais do país ao seu favor.
Aqui, apoiando o PT, só há revistas de circulação baixa e sites de nicho. É claro que sua imagem está abalada agora, mas o PSDB também está desgastado. O PT cai muito, mas o PSDB não ganha. Por isso, há aí, mais uma vez, um espaço para outro candidato crescer, como a Marina.
O que ficou claro no Brasil é que ninguém aguenta quatro mandatos de um mesmo partido, porque sempre há corrupção, porque há incompetências, porque há um desgaste das palavras de ordem, porque a militância desaparece e o partido perde contato com a base. Não dá para reescrever as coisas, mas isso deve deixar ensinamentos para as lideranças políticas no futuro.