A polêmica despertada pelo artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre “O Papel da Oposição”, no último número da revista Interesse Nacional, eclipsou, por seu alcance, uma outra interessante polêmica publicada no mesmo número da publicação, sobre assunto aparentemente de interesse mais restrito, a política externa brasileira.
De um lado, o assessor internacional das presidências Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Marco Aurélio Garcia.
De outro, o ex-ministro de Relações Exteriores de FHC, Luiz Felipe Lampreia.
Em ambos os textos, o tema é a mudança da política externa, com Dilma.
“As mudanças existem e existirão por duas razões”, diz Garcia: porque o mundo enfrentado por Dilma é diferente do encontrado por Lula, em suas vantagens e nas responsabilidades que exige; e porque “toda política externa tem de conviver com uma certa imprevisibilidade”, refletida em surpresas como a revolta do mundo árabe.
Expressa já no fim do artigo, a declaração de mudanças na política externa não faz menção à propalada centralidade da defesa dos direitos humanos no Itamaraty da nova presidência – posta em questão, aliás, na visita de Dilma à China, em que foi um não-assunto o sumiço dado pelas autoridades chinesas a elementos potencialmente perturbadores nesses tempos de ebulição árabe, o mais famoso dos quais é o artista Ai Weiwei, preso, incomunicável, sob alegação de crimes econômicos.
Mundo enfrentado por Dilma é diferente do de Lula, diz Garcia
A referência a mudanças, feita pelo mesmo Marco Aurélio Garcia que as desdenhava no começo do governo atual, parece um tributo à presidente que se esforça – com êxito – para mostrar que não é mera continuadora de Lula. O restante do artigo, porém, feito por um assessor palaciano que, ao contrário de rumores desejosos, ainda exerce forte influência sobre as definições de política externa, mostra traços fortes da continuidade.
Garcia dedica boa parte do texto a demolir a crítica mal informada que atribui a uma inédita “ideologização” da política externa os pecados da diplomacia lulista. Visões distintas do que seria o “interesse nacional” sempre existiram de sobra na atuação externa brasileira, e não poderia ser de outro modo, como mostra Garcia, citando exemplos de figuras brilhantes que politizaram a diplomacia, de Oswaldo Aranha a Fernando Henrique Cardoso.
Sem tratar da acusação de que, sob Lula, o Brasil opinou excessivamente nos processos eleitorais dos países vizinhos, Garcia justifica, com argumentos consistentes, a razão da prioridade para o entorno regional. A “balcanização” da América do Sul, sua fragmentação resistente aos discursos de unidade, é atribuída, por ele, à falta de maior integração física e energética – uma prioridade cada vez mais evidente nos planos externos de Dilma.
Ao lado da defesa do multilateralismo e da lembrança do papel fundamental dos chamados países do Sul para a recuperação econômica, Garcia classifica as críticas à ação de Lula em questões como o Irã e Oriente Médio como defesa de uma “reserva de mercado” dos países ricos. Ataca, porém, como anacrônica a análise que vê, nessas ações, indícios de “terceiro-mundismo”.
A coincidência do artigo do assessor com a do ex-chanceler de FHC não mostra exatamente um debate. Às preocupações quase conceituais de Garcia, Lampreia contrapõe uma listagem do que considera a herança “das mais negativas” recebidas por Dilma em matéria de política externa, e uma detalhada e provocativa agenda de mudanças – quase uma pauta para a oposição, que tem tido atuação superficial nesse debate.
Lampreia, ativo crítico do governo Lula, subestima a ação brasileira na acomodação de conflitos entre Venezuela e Colômbia, mas acerta ao criticar duramente a timidez da ação brasileira em conflitos regionais como o da Argentina e Uruguai em torno das “papeleras” uruguaias que geraram bloqueio de vias por argentinos alegando ameaças ambientais.
Os gestos públicos a ditadores e líderes polêmicos como Mahmoud Ahmadinejad “são iniciativas gratuitas que nos tiram credibilidade”, aponta o ex-ministro – e a ausência de ações semelhantes por parte de Dilma parece lhe dar razão.
Sem a polêmica que caracterizou o artigo de FHC, Lampreia também sugere rumos à oposição, que vem agindo reativamente nos temas diplomáticos. Ao reconhecer prioridade ao Mercosul, ele defende a ênfase em seu aspecto comercial, reivindicando, no entanto uma “certa flexibilidade”, que dê aos países autonomia em negociações comerciais. Aparentemente, sugere a consolidação do bloco como área de livre comércio e abandono, pelo menos temporário, das pretensões à união aduaneira que nunca foi.
Lampreia também cobra um “papel mais ativo nos conflitos regionais” por parte da diplomacia brasileira. Mostrando-se sabedor dos motivos que orientam a cautela nesse assunto – o medo de ser visto como “imperialista” é o maior deles -, o diplomata diz que o esforço brasileiro não precisaria ser “singular”, e poderia ocorrer em combinação com outros governos da região. Uma cobrança válida, quando se recorda que o governo Lula não pôs, na discussão entre Uruguai e Argentina, uma fração do empenho dedicado aos temas do Oriente Médio.
É uma pena que esses e os muitos outros temas tocados pelos dois artigos na revista não tenham a atenção merecida, e sejam postos em segundo plano não só pelo “povão” mencionado polemicamente por FHC na mesma edição. Seria louvável se os interessados não deixassem morrer as discussões levantadas por Garcia e Lampreia, no blablabla maniqueísta que, infelizmente, parece imperar em boa parte das discussões sobre a política externa brasileira.
Sergio Leo/Valor
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