Livro sobre Afeganistão corta o coração da cronista,que percebe o quão perto estamos de Cabul.
Cora Rónai – Jornalista – O Globo
“Existe apenas um pecado, um só. E esse pecado é roubar. Qualquer outro é simplesmente uma variação do roubo.(….) Quando você mata um homem, está roubando uma vida. (….) Está roubando da esposa o direito de ter um marido, roubando dos filhos o direito de ter um pai. Quando mente, está roubando de alguém o direito de saber a verdade. Quando trapaceia, está roubando o direito à justiça. (….) Não há ato mais infame do que roubar.”
Há alguns anos, eu teria recomendado “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini, como leitura obrigatória para a canalha política, nem que fosse por estas palavras, dirigidas ao narrador por seu pai.
Hoje não me dou mais ao trabalho, e não só porque livros não se usam em Brasília.
É que não se usa mais vergonha na cara na política brasileira, não se usam mais valores como dignidade, honra, preocupação com o povo, amor à Pátria. Acho que a própria acepção que dou aqui a esta palavra, “valores”, perdeu-se por completo nas esferas do poder.
Há alguns anos, os ladrões nossos funcionários cultivavam, ainda, um mínimo de hipocrisia, e tentavam disfarçar a avidez, a ganância, o pouco caso para com a coisa pública, a falta de dedicação ao país e à sua gente.
O objetivo final talvez fosse o mesmo, mas naqueles dias, pelo menos, fazia-se de conta que roubar era crime.
A honestidade, bem como a educação e a cultura, ainda tinham seu valor para o público externo; alguns homens públicos, acredito, envergonhavam-se quando descobertos de posse de “fundos não contabilizados”, este safado eufemismo para a grana alheia; outros poucos, verdadeiramente honestos, provavelmente envergonhavam-se da malta com que se viam obrigados a conviver.
Dizem os colegas que sabem mais dessas coisas que sou muito pessimista e que ainda há políticos honestos, além dos dois ou três em quem confio.
Mas são uma espécie em extinção dentro de uma classe que perdeu de vez o pouco que tinha de decência e civismo com a dança grotesca da deputada Angela Guadagnin, musa do PT – que, no mínimo, deveria cassada por quebra de decoro parlamentar, se os nossos parlamentares ainda se lembrassem do que quer dizer decoro.
Os poucos políticos honestos e genuinamente interessados no bem do país que têm estômago para conviver com os seus pares nada podem fazer contra o fedor insuportável que emana dos palácios e das repartições públicas, contra a falta de caráter e a cafajestagem explícita que os cercam.
Mesmo que queiram, eles nada podem fazer contra a desconstrução das instituições, contra o escárnio com que é tratado o povo, contra a voracidade da máquina que tritura a classe média, arrancando-lhe os olhos da cara em impostos que, quando não seguem sem escalas para paraísos fiscais, sustentam a bandalheira esculachada dos biltres que deveriam cuidar do país, dos estados, dos municípios.
Ai de nós.
“O caçador de pipas”, romance de estréia de Hosseini, que nasceu em Cabul, no Afeganistão, e hoje vive nos Estados Unidos, não chega a ser um grande livro, mas é uma excelente leitura, interssante, ágil, impossível de largar.
Sua maior virtude é nos apresentar ao país onde, uma vez, cidades como Cabul, Kandahar ou Mazar-i-Sharif eram lugares cheios de vida, e não as pilhas de escombros que nos acostumamos a ver na televisão e nos jornais.
Há um quê de paraíso perdido nessas memórias, mas compreende-se: quando nos lembramos do Rio de Janeiro dos anos 60, a nostalgia traz à tona a paz, a segurança, a cidade maravilhosa; a falta d´água ou as favelas que cresciam somem diante do que se perdeu.
Amir, o personagem de Hosseini, passa 20 anos longe do seu desgraçado país, primeiro invadido pelos russos, depois vítima dos talibãs. Quando volta, só encontra miséria, ruínas e violência. Os talibãs, a escória da sociedade, percorrem as cidades em bondes, impondo a sua “lei”, matando por gosto ou desfastio.
A elite intelectual do país e a classe média estão mortas, exiladas ou mendigando nas ruas; os que se refugiaram nos Estados Unidos vendem quinquilharias em mercados de pulgas – camelôs que, na sua terra, eram médicos, engenheiros, escritores, militares.
Enquanto lia sobre este país torturado, não conseguia deixar de pensar no Brasil, e sobretudo no Rio, que regridem a passos tão largos.
Tecidos sociais não se esgarçam de uma hora para outra; vão se desfazendo aos poucos, de violência em violência, de concessão em concessão, de bandalheira em bandalheira.
Quando os talibãs do tráfico debocham do exército e os talibãs do MST contam com a complacência dos poderosos, porém, não há mais como disfarçar: estamos cobertos de andrajos morais.
Cabul é aqui.