Artur Dapieve – Jornalista
Cesare Lombroso atirou no que viu e acertou no que não viu. Literalmente.
O psicopatologista veronês acreditava que a propensão ao crime podia ser enxergada nos traços fisionômicos e nas características físicas dos criminosos. Logo, a sua análise possibilitaria tanto a prevenção do mal quanto, uma vez praticado, o seu tratamento médico.
Lombroso aproveitou-se da frenologia, do darwinismo e da eugenia para identificar “estigmas atávicos”, que, em última instância, remeteriam ao selvagem homem primitivo: queixos grandes, narizes aquilinos, orelhas de abano, zigomas salientes, braços compridos etc.
Assim, o crime seria uma determinação biológica, não um problema moral ou social.
O lombrosianismo continuou muito influente na criminologia bem depois da morte de seu criador, aos 74 anos, em 1909. Todavia, com o tempo, sua teoria caiu em desgraça, em parte por causa do racismo a ela inerente. Foi substituída pela nova crença científica de que o crime tem tão-somente motivações sociais. É esta última idéia que subsiste, por exemplo, na ilusão de que até os piores criminosos podem ser ressocializados.
Num epílogo de humor negro ao lombrosianismo, a cabeça do próprio Cesare Lombroso está preservada em formol no museu de criminologia de Turim que leva o seu nome e está fechado ao público. Os pesquisadores credenciados costumam brincar que os traços fisionômicos do cientista italiano denunciam claras tendências violentas.
Embora Lombroso tenha se tornado uma piada, penso seriamente nele nos últimos dias, conforme os meios de comunicação exibem e reexibem, com louvável caráter didático num ano eleitoral, as fotos 3 x 4 dos políticos envolvidos na Máfia dos Sanguessugas.
No esquema sob investigação de uma CPI e da Justiça Federal, a empresa Planam os subornava em troca da apresentação de emendas para compra de ambulâncias superfaturadas.
Nunca se trata de “mero” crime de corrupção passiva.
Na Saúde, então, mais do que nas outras áreas afetadas por escândalos de malversação do dinheiro público, o caso, é sempre de homicídio doloso. Pagar por ambulâncias caras significa ter dinheiro para comprar menos ambulâncias. Menos ambulâncias fazem menos atendimentos. Menos atendimentos decretam a morte de um número maior de cidadãos.
Algumas características agrupam os 90 parlamentares investigados e já conhecidos (além deles, há outros 26 ex-parlamentares sob suspeita).
Cinqüenta e três pertencem à “base aliada” do Governo Lula, isto é, ao PL, PP e PTB, os partidos do mensalão. A maior representação estadual é do Rio de Janeiro. Os 16 citados correspondem a um terço da bancada fluminense na Câmara, o que diz muito do nível dos políticos que nós temos eleito.
Não há, claro, nenhum estigma lombrosiano que una tantas caras suspeitas, que constituem cerca de 20% do Congresso Nacional, porcentagem assustadora se se levar em conta que não há coincidência absoluta entre os sanguessugas e os mensaleiros.
Há prognatas e desqueixados, barbudos e carecas, brancos e negros, homens e mulheres – nestes dois últimos casos, respeitada a (des)proporcionalidade de sua representação política.
A despeito disso, contemplo suas fotos, a maioria coletadas na própria propaganda, não flagrantes de maus momentos, e consigo enxergar o crime nelas.
Não é, porém, nenhum traço fisionômico ou físico. É algo invisível, mas assaz significativo. Daí eu ter escrito, lá em cima, que Lombroso atirou no que viu e acertou no que não viu.
Ainda não há definição mais esclarecedora do que quero dizer do que uma pergunta formulada trinta e oito anos atrás.
Na eleição americana de 1968, a campanha do democrata Hubert Humphrey atacou o republicano Richard Nixon com um slogan célebre: “Você compraria um carro usado deste homem?” O eleitorado comprou, pela margem de 0,7%. O novo presidente, contudo, teve de governar sem maioria nem na Câmara nem no Senado. E, em 1972, estourou o escândalo da invasão da sede do partido democrata no complexo de edifícios Watergate, em Washington.
Envolvido, Nixon teve de renunciar dois anos depois.
Diante das fotos dos sanguessugas, abrasileiro a pergunta: “Eu compraria uma ambulância nova desta gente?”
Mesmo diante da probabilidade de que alguns – alguns, não muitos – dos 90 parlamentares investigados sejam inocentes, na dúvida a resposta é invariavelmente: “Não, não compraria”.
Como ter confiança o bastante para adquirir um veículo é algo mais concreto do que mandar um desconhecido para Brasília, a pergunta deveria ser inserida no início de cada sessão de votação nas urnas eletrônicas do TSE.
Quando Lula pede “não pensem que o erro de cada um é individual ou partidário”, ele não está apenas justificando a corrupção: está dizendo que até os piores criminosos podem ser ressocializados.
É ilusão acreditar que, num segundo mandato, o presidente vai afinal reformar a política de que ora se beneficia. Aliás, o pedido foi feito num ato de campanha em Pernambuco, do qual participou Humberto Motta, ex-ministro da Saúde.
Por essas e outras, arquivei meu flerte com o voto nulo, compartilhado com o leitor no ano passado. Apesar de tudo, ainda identifico indivíduos e partidos que, à pergunta hipotética, suscitam a resposta: “Sim, eu compraria uma ambulância nova desta gente”.
Nota do Editor do Blog
Cesare Lombroso
* Verona, Itália – 06 Novembro 1835 d.C
+ Turim, Itália – 19 Outubro 1909 d.C