Sobre racistas e pedófilos no Orkut.
Por Ricardo Bánffy
Ricardo Bánffy (ricardo.banffy@autonomic.com.br) é engenheiro, desenvolvedor e consultor.
Não parece existir solução para esse tipo de problema. A internet tornou a geografia irrelevante e geografia é o que define o alcance das leis.
Fala-se pouco de outra coisa que não o Orkut esses dias. Desde a ameaça do pagamento de uma multa milionária ao fechamento do serviço para brasileiros.
O Ministério Público Federal anda esbravejando contra o pessoal do Google aqui do Brasil, acusando-os de não cooperar com investigações sobre os becos mais escuros do site. Coisas como racismo, pedofilia e tráfego de drogas passam no meio dos zilhões de mensagens mais inocentes.
O que está acontecendo.
Existem (e isso é um fato documentado pela SaferNet) mais de 1000 comunidades no Orkut dedicadas à pedofilia. Há outras comunidades dedicadas à incitação à violência racial e a todo tipo de intolerância. Como a própria internet, o Orkut é um incômodo (incômodo por ser visível) espelho da sociedade.
Há crimes aqui fora e há crimes lá dentro. Em um mundo cada vez mais conectado, é difícil separar o “aqui fora” do “lá dentro”. Para as leis (e as autoridades incumbidas de defendê-las) há o incômodo fato do “lá dentro” ignorar solenemente a geografia em que suas jurisdições existem.
É nesse palco (vou tentar não chamá-lo de picadeiro) que se desenrola o imbroglio.
O Ministério Público Federal, cumprindo seu papel, pediu à Google Brasil dados de pessoas que frequentam as tais comunidades, dados de quem postou algumas mensagens e imagens, a preservação do conteúdo de mensagens (para que possam ser usadas em investigações) e a remoção de comunidades que, longe de prestar um serviço à sociedade, causam mal a ela.
O problema é que o site e os dados ficam, fisicamente, nos Estados Unidos e o escritório brasileiro não se cansa de repetir que não tem acesso a esses dados. O Ministério Publico parece, por outro lado, ter se cansado de solicitar à Google dos Estados Unidos (Google Inc.) e resolveu que iria dar uma chave de braço no escritório local para que ele cooperasse.
De acordo com o Google Brasil, eles atenderam todas as ordens que podiam atender e que, uma vez que não tem acesso a todos dados nos servidores fora do Brasil, não pode atender algumas delas. A Google Inc. diz ter atendido todos os pedidos legais de acordo com as leis americanas que foram feitos a eles.
E aí mora um dos problemas – mesmo que tivesse acesso aos dados, o escritório brasileiro muito provavelmente estaria cometendo um crime nos Estados Unidos se liberasse algumas dessas informações dos seus usuários, que estão em território dos EUA, se a solicitação fosse ilegal lá.
Não parece existir nenhuma solução para esse tipo de problema. A internet tornou a geografia irrelevante e geografia é o que define o alcance das leis.
Onde aconteceram que crimes?
Crimes como tráfico de drogas (que, dizem, tem sido organizado usando comunidades do Orkut), pedofilia (que conta com mais de 1000 de comunidades no site) e violência contra negros, homossexuais e quem mais for (em que as comunidades têm sido usadas para planejá-los) acontecem no mundo real.
Quando alguém vende drogas, abusa de uma criança ou participa de um linchamento, é muito claro onde ela estava quando o fato aconteceu. Se as provas estão em um servidor nos EUA, supostamente, tudo o que é necessário fazer é pedir às pessoas certas, do jeito certo.
Dá trabalho, mas, como dizem por aí, a vida é dura.
Quando, por outro lado, o crime consiste na expressão de uma idéia, do incentivo ao uso de drogas ao ódio racial, o terreno é menos claro. No nosso caso, a informação pode ter sido digitada em território brasileiro, mas foi armazenada e difundida a partir dos Estados Unidos.
Há diferenças entre o que é crime aqui e o que é considerado crime lá e as leis de lá protegem – e bastante – o direito das pessoas de expressar suas idéias, mesmo quando elas são impopulares.
Liberdade de expressão e a tragédia da curva de Gauss.
E isso eu acho um ponto interessante. Quando reprimimos a expressão de uma opinião, tornamos aqueles que compartilham dela um grupo clandestino. Comunidades assim não podem ter suas opiniões abertamente debatidas e questionadas e, por isso, acabam praticando uma “endogamia de idéias”, em que elas se reforçam e se tornam, no final, um veneno e uma prisão para as cabeças dessas pessoas.
Ao tornar crime uma opinião, não acabamos com ela. Opiniões podem ser mudadas, mas não suprimidas. Ao tentar suprimí-las, apenas lhes damos as costas e isolamos ainda mais quem devia ser integrado. Varremos as idéias (e as pessoas que partilham delas) para baixo do tapete.
Pior: Emprestamos uma legitimidade que elas, por si, não tinham. Idéias só podem ser mudadas com o debate aberto e às claras. Respeito às idéias dos outros, por mais estúpidas que possam parecer para quem não concorda, ensina os outros a respeitar as nossas.
Vale lembrar, aos que se sentirem incomodados com esse último parágrafo que, por mais trágico que isso seja, precisamente metade das pessoas do planeta tem inteligências abaixo da média. Entendendo isso, é mais fácil aceitar que, ao longo da vida, encontraremos muitas opiniões que consideraremos estranhas e que nos farão coçar a cabeça tentando entender que tipo de mal-formação neurológica pode levar um grupo de pessoas sem cauda e com polegar opositor a partilhar dela.
Como um brinde perverso, quase sempre esses extremistas estão à esquerda da curva, o que torna o diálogo menos menos produtivo.
A linha.
Uma coisa me perturba. Em uma época em que o medo impele sociedades a rejeitar suas liberdades em troca de uma colherada de segurança, em um continente em que presidentes eleitos perseguem opositores e querem mudar a constituição de seu país para ganhar um terceiro mandato, e em um país em que meu presidente se diz um grande amigo do outro que
quer se re-eleger só mais um pouquinho, que já quis expulsar um jornalista que escreveu algo de que ele não gostou, me incomoda profundamente que leis ainda sejam feitas declarando pontos-de-vista ilegais.
Quando permitimos que uma linha seja traçada entre o que se pode pensar e dizer e o que não se pode pensar e dizer, temos que nos preocupar muito com onde ela será traçada e que forças podem, no futuro, querer mudá-la de lugar.
Não tenho qualquer simpatia pelos racistas, pelos supremacistas ou pelos skin-heads do Orkut, mas eu suspeito que perseguí-los não vai mudar suas opiniões. Estas são guerras para serem travadas entre idéias. Travá-las com mais do que isso não vai trazer vitórias duradouras.
Truculência e circo.
A isso tudo soma-se a insistência do Ministério Público, que pede a coisa certa à pessoa errada e ameaça esmagá-la caso ela não faça aquilo que ela não consegue fazer. Não é pelo fato de um juiz ordenar que as informações sejam entregues que eles serão capazes de fazê-lo.
Tanto quanto qualquer outro, eu quero que os traficantes, os linchadores, as gangues e os pedófilos que usam o Orkut sejam identificados, julgados, condenados e punidos e que isso seja feito da forma mais rápida, eficiente possível e rigorosa dentro da lei.
Tanto quanto qualquer outro, gostaria que o racismo e a intolerância fossem erradicados da nossa sociedade. Para o primeiro, talvez baste ao MP pedir esses dados no endereço certo. O segundo vai dar bem mais trabalho.
Do jeito que as coisas vão, se um juiz me ordenar que divida um arco em três com um compasso (parte de uma investigação sobre a geometria do Universo, talvez), acabarei sendo preso por desacato.
PS.
Os logs não chegaram aos EUA. Eles foram gerados lá e nunca estiveram em outro lugar. Provavelmente estão distribuídos em um bom número de servidores diferentes e existem em formatos diferentes. Não deve nem mesmo ser trivial recuperar as atividades de um internauta, já que os rastros podem estar espalhados entre várias máquinas diferentes.
Não existe um servidor brasileiro centralizando todas essas atividades. Daí esses dados estarem nos EUA.
Quanto à China, o governo chinês centraliza e censura todos os acessos de chineses a endereços fora da China (e, muito provavelmente, dentro também). Se não me engano (e eu sou muito falível), o problema entre o Google e a China envolvia a instalação de servidores na própria China, sob leis chinesas, coisa que faz toda a diferença no nosso caso.
Se adequar às leis da China, todavia, não justifica errar em outros lugares e eles têm um time de advogados exatamente para descascar abacaxis como esse.