Armas – Sim x Não – IV/05

Cora Rónai – Jornalista – O Globo
Blog da jornalista:
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Às armas, cidadãos!
No distante ano de 1980, empacotei meia dúzia de objetos essenciais — a máquina de escrever, uns dicionários e alguns quadros, uns LPs e umas roupas—- pus tudo a bordo de um minúsculo Fiat 147 e peguei a estrada.
Eu estava partindo para uma nova etapa da minha vida, deixando Brasília e voltando, finalmente!, para o meu Rio de Janeiro.
Estava sozinha, e minha intenção era fazer a viagem de uma assentada só. Corajosa a mocinha, só agora percebo.
Eu tinha 27 anos, 1,54m (não cresci muito, desde então) e 50 quilos (cresci, sim); mas também tinha uma Walther PPK 7,65mm, que muito me tranqüilizou nos 1.148 quilômetros da estrada esburacada e praticamente deserta.
PPK esta que, discreta mas visivelmente enfiada na cintura da calça, desestimulou alguns engraçadinhos nos postos de gasolina em que parei ao longo do caminho.
A Walther, uma pistola linda e admiravelmente segura, sempre foi minha arma favorita, embora eu tivesse convivido também com um pequeno Smith & Wesson 22, de cano curto, e vários rifles de diferentes marcas e calibres. Meu avô, antigo oficial do exército austro-húngaro, adorava armas, e me ensinou, desde cedo, a respeitá-las e a usá-las corretamente.
Entre as melhores recordações que tenho da infância estão as tardes de tiro ao alvo com o Nonno.
Aprendi a montar e desmontar todas as armas que tínhamos e, modéstia à parte, a atirar muito bem.
Isso não fez de mim uma criatura perigosa ou beligerante, apenas me tornou uma pessoa mais segura, até por me dar a compreensão — e a medida real — de uma parte integrante do nosso mundo.
Minha viagem de Brasília ao Rio durou cerca de vinte horas, e devo àquela velha e elegante Walther a tranqüilidade de ter feito o trajeto sem medo algum — exceto, é claro, aqueles provocados pelas nossas indescritíveis estradas e pelos automóveis, combinação que faz, anualmente, muito mais vítimas do que todas as armas legais e ilegais do país.

***O sítio idílico, onde as armas eram apenas uma diversão como outra qualquer, desapareceu. A casa continua lá, bonita como sempre foi; o jardim adquiriu aquela qualidade que só o tempo e o carinho dão às plantas.

Mas a área em torno, antes praticamente deserta, com uma casa aqui, outra acolá, degradou-se irremediavelmente. Hoje a bandidagem corre solta em Nova Friburgo, como no resto do país (me contenho para não escrever “a partir do Planalto”). Há uns poucos anos, depois do nono (!) assalto à casa, Mamãe foi, como sempre em vão, à polícia. Desta vez, tinha algo novo: uma pista.
Uma bala se alojara na lombada de um dos livros (ainda está lá, dormindo no Dostoievski) , de onde poderia ser facilmente removida e periciada. — Perícia em bala?! — espantou-se o delegado. — Só existe em filme americano, vovó. A senhora está vendo televisão demais. Compra uns cachorros e solta no quintal . Mamãe seguiu o conselho da polícia.
Hoje tem dois tigres, disfarçados de pastores alemães, que a amam de paixão e jamais deixarão que nada de mal lhe aconteça. Mas, pelo sim, pelo não, tem também uma arma que, nas mãos do caseiro, já evitou pelo menos meia dúzia de novas invasões, com tiros para o alto. Ninguém morreu ou se feriu, mas os bandidos acharam melhor trabalhar em outra freguesia.

***São só duas historinhas pessoais. Contei por contar.
Não é por causa delas (ou só por causa delas) que vou votar NÃO no referendo sobre o “desarmamento”. Por sinal, escrevo “desarmamento” assim, entre aspas, porque acho absoluta má-fé o uso desta palavra: quem dera que o governo, ou quem quer que fosse, pudesse, de fato, desarmar todos.
O problema é que não é o arsenal pesado dos traficantes que está em discussão, e sim o direito dos cidadãos de bem de comprar armas para sua própria defesa ocasional. Digo cidadãos de bem com conhecimento de causa, porque só gente muito temente a Deus e à ordem é que ainda se dá ao trabalho de enfrentar a burocracia e reunir toda a papelada exigida atualmente para a compra de uma arma.
Pelo que se vê na propaganda, até parece que é só chegar na venda da esquina e pedir um trezoitão na promoção, parcelado em dez vezes no cartão. Pois não é não, acreditem.
Aliás, não acreditem; vão lá e confiram. Tentem comprar uma arma legalmente, enquanto ainda podem. É tão difícil, que só pondo despachante, ou lobista, na parada. Entre outros motivos, vou votar NÃO porque, se o SIM for aprovado, mais uma parcela da população fatalmente será empurrada para a ilegalidade. Já estou vendo Mamãe, com sua cabeça branquinha, subindo o morro para conseguir munição — naturalmente a preços inflacionados — lá para o sítio. Comprado numa localidade pacífica e remota que os tempos transformaram em perímetro urbano. Urbano e perigoso.

Como ela, este será o destino de alguns milhões de brasileiros de bem que, não recebendo do Estado a segurança a que teriam direito, foram forçados a ter armas em casa. Aliás, o Estado brasileiro é especialista em fazer do cidadão honesto um criminoso. Impostos extorsivos, leis de trânsito feitas sob medida para o achaque, taxas de importação inviáveis que nos atiram nos braços dos contrabandistas — tudo é estímulo pra desviar o cidadão do caminho do bem, que ninguém do governo sabe mais onde é.
Aprovado este SIM, estará automaticamente incentivada a compra ilegal de armas para ficarmos em pé de igualdade com parlamentares, juristas e artistas famosos que, cercados de segurança 24 horas por dia, aliviam a sua culpa social e moral dizendo SIM à cassação dos nossos direitos.

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