Legado de Marechal Rondon está ameaçado por governo Bolsonaro, diz biógrafo do explorador

"Morrer se preciso for, matar nunca"

“Depois de lidar com o poder civil, Rondon se concentrou em obter o consentimento das demais autoridades na região que estava prestes a atravessar: seus habitantes in­dígenas. Eles eram Bororo, vivendo ao longo do rio São Lourenço e talvez até mesmo com algum parentesco com a família de sua mãe, que nascera em uma comunidade a norte dessa área. (…)

Assim, mais uma vez seguiu o protocolo e cavalgou sozinho para a aldeia de Kejare (buraco de morcego), para se encontrar com Oarine Ecureu (ou Andorinha Amarela), chefe do maior aldeamento Bororo na bacia do São Lourenço. Uma vez lá, foi recebido com abraços calorosos e cantos rituais que diziam: ‘Nosso grande chefe chegou! Salve o grande chefe Bororo!’.”

Neste trecho de Rondon – Uma Biografia, livro lançado neste mês pelo jornalista americano Larry Rohter, o marechal Cândido Rondon visita os Bororo para pedir sua autorização: parte de uma linha telegráfica de 2 mil km, da qual ele é encarregado, passará pelo território da tribo no Mato Grosso.

Depois do encontro, que aconteceu nos primeiros anos do século 20 e foi marcado por agrados mútuos, os Bororo não apenas permitiram o avanço da linha como ajudaram o militar a construí-la, quando seus soldados caíram doentes.

Cândido Rondon dá nomes a praças, escolas e até a um Estado, Rondônia, mas pouco se discute sobre o papel que teve para a preservação das tribos indígenas e da Amazônia. Mais do que um militar patriota, homenageado por todo o país, Rondon foi um pesquisador dos povos brasileiros e um pacifista nas questões ligadas à floresta e a seus habitantes. Descendente de indígenas, Rondon estabelecia contato pacífico com as tribos.

No curso da construção da linha telegráfica, que tomou quase dez anos da sua vida, ele estabeleceu contato com tribos isoladas, ajudando a mapeá-las e difundir sua cultura. A Comissão Rondon, como ficou conhecida a Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, publicou mais de cem artigos científicos sobre suas descobertas, com assuntos que iam do clima aos costumes locais.

O mesmo mergulho foi feito nas outras duas dúzias de expedições do militar, que chegou a guiar o ex-presidente americano Theodore Roosevelt pela Amazônia em 1914, numa ação bilateral que documentou o Rio da Dúvida, então desconhecido.

“Foi uma aventura descobrir que suas experiências ainda têm relevância para o Brasil do século 21”, diz Rohter, que foi o correspondente da revista Newsweek e do jornal The New York Times no país.

“Por exemplo, (podemos aprender) a lidar com os povos indígenas e a reconciliar o desenvolvimento econômico do norte com a preservação das riquezas da região, especialmente a amazônica.”

Rejeição histórica a lições colhidas
Apesar de terem mais de cem anos, as lições colhidas por Rondon nos seus 40 mil km pelo Brasil não foram aprendidas pelo atual governo, diz o biógrafo.

Ele vê na gestão de Jair Bolsonaro uma ameaça ao legado de Rondon, que foi fundador do Serviço de Proteção aos Índios (antecessor da Funai), e até sua morte, em 1958, trabalhou para proteger suas tradições.

“Como candidato, Bolsonaro falou em medidas que iriam contra a linha histórica estabelecida pelo Rondon. Como presidente, nesses cem dias dá para ver claramente ameaças às políticas históricas criadas por Rondon e perpetuadas pelos vários governos depois da primeira república”, diz.

Para biógrafo, legado de Rondon está ameaçado no governo Bolsonaro
Até agora, entre as ações anunciadas pelo governo Bolsonaro para o meio ambiente estão a transferência da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura – revertida após decisão da comissão de reforma ministerial – e a extinção da Secretaria de Mudanças Climáticas.

Além disso, o presidente defende a liberação de atividades de mineração e agropecuária dentro de reservas e a concessão de parques nacionais à iniciativa privada. Na opinião de ambientalistas, as medidas devem representar mais riscos do que vantagens monetárias.

No entanto, lembra Rohter, esta não é a primeira vez que as ideias de Rondon são ignoradas. Retrocesso semelhante teria acontecido na ditadura militar, quando o nome do marechal foi usado de forma distorcida para batizar um programa que pretendia colonizar a Amazônia e explorar seus recursos. Na época, difundia-se a imagem do explorador destemido e nacionalista, não a do humanista.

“Sua herança foi desmantelada durante a ditadura, nos anos 1970. Mas o valor de suas políticas ressurgiu com a volta da democracia”, diz o escritor.

Também durante o regime, o Serviço de Proteção aos Índios foi extinto e substituído pela Funai que, embora continuasse a homenagear Rondon, tinha ordens de “integrar os índios rapidamente”, independentemente de seus desejos.

Rondon coordenou trabalho de linha telegráfica do Mato Grosso ao Amazonas
O que o marechal poderia dizer para evitar esses erros?, a reportagem pergunta. Afinal, além de ser descendente dos Bororo por parte de mãe e falar línguas indígenas, ele conheceu profundamente o Norte do país, onde percorreu milhares de quilômetros em suas viagens.

Para Rohter, seu biografado daria uma dica simples ao governo Bolsonaro.

“Ele diria as mesmas coisas que disse na Primeira República, na ditadura varguista e até seu falecimento: respeite o índio, os direitos dos povos indígenas, o meio ambiente e o povo do interior”, afirma.

“Antes de mais nada, o Brasil tem um compromisso moral com os povos indígenas. E precisa cumprir sua palavra. Ela não pode mudar de um governo para outro, é um compromisso de nação.”

Em vida, Rondon foi interlocutor de vários presidentes. Foi amigo de alguns, como Afonso Pena (1906-1909), um grande apoiador do projeto da linha telegráfica, mas sofreu pressões sob outras gestões. Durante o governo de Hermes da Fonseca (1910-1914), por exemplo, enfrentou acusações de que suas expedições à Amazônia, para instalação da linha e pesquisa do território, estavam “gastando dinheiro público à toa”.

Em boa parte de sua carreira, teve que brigar por verbas.

“Ele precisou lutar contra forças econômicas e políticas poderosas. Na época, queriam até exterminar o índio”, diz.

“Essas forças queriam explorar o interior do país do jeito que bem entendessem, sem levar em conta os povos da região. Claro que isso leva a um conflito que persiste até hoje. As declarações de Jair Bolsonaro não são inéditas. Em suas falas, ouço ecos do passado.”

Autonomia e equilíbrio
Mesmo com esses reveses, Rondon conseguiu deixar em seus escritos os fundamentos de sua visão idealista de futuro.

“A frase que mais aparece em seus diários, tirada dos evangelhos positivistas, é: ‘o paraíso terrestre’. Ele achava ‘ah, estou trabalhando em prol do processo que vai levar ao paraíso terrestre'”, diz o biógrafo. “Mas, ao mesmo tempo, estava operando num ambiente político de acordos, barganhas, parecido ao de hoje. Por isso era considerado um homem rígido, abnegado, dedicado ao serviço nacional.”

Um dos preceitos seguidos por ele era o respeito às vontades dos grupos indígenas, a seu direito de escolher o grau de acercamento com a sociedade brasileira.

Alguns sentiam-se atraídos pela cultura material da sociedade, pela medicina e pelas ferramentas industriais, por exemplo, enquanto outros desejavam manter-se afastados por conta de experiências traumáticas no passado com bandeirantes ou garimpeiros.

“Rondon respeitava a autonomia política e cultural de cada povo. Se queriam um relacionamento íntimo com o Estado brasileiro, eram bem-vindos. Mas se preferiam ficar longe, isso também era seu direito e teríamos a obrigação de ganhar sua confiança e amizade”, explica o escritor.

Um segundo fundamento seria o equilíbrio entre desenvolvimento e preservação. Rondon queria manter parte da floresta intacta e criar regiões para o usofruto do homem, mas de maneira sustentável. Às áreas abertas para a linha telegráfica, por exemplo, levou brotos de cacau e café, para não deixar a terra ociosa.

Já no episódio contado no começo desta reportagem, o militar integrou os índios a seu projeto de desenvolvimento, ao receber a ajuda dos Bororo para a construção de um trecho da linha.

Sobre este momento, Rohter escreveu:

“(…) Rondon lançara por terra o que sempre fora aceito no Brasil e no resto do mundo como a ordem natural e imutável das coisas. Povos indígenas eram e sempre seriam tidos como inimigos da disseminação da ‘ordem e do progresso’ defendida pela sociedade ‘civilizada’, não colaboradores em sua expansão. Valendo-se de meios puramente pacíficos, porém, Rondon não só assegurara o consentimento de um povo considerado hostil, como também alcançara a proeza de persuadi-los a participar, de livre e espontânea vontade, no ‘projeto nacional brasileiro’, convencendo-os de que traria benefícios também para eles.”

O marechal via uma utilidade imediata na existência dos índios: eles eram sentinelas da mata, a protegiam contra incursões ilegais e denunciavam irregularidades aos órgãos competentes. Uma máxima era válida para Rondon: uma floresta habitada é uma floresta preservada.

Apesar de suas qualidades pacificadoras, o marechal às vezes adotava práticas violentas, relata o jornalista. Para manter a ordem ou punir desobediências, castigava corporalmente seus soldados – nunca, porém, usou violência contra as tribos.

Sua doutrina em relação aos índios foi resumida por sua frase mais famosa: “morrer se preciso for, matar nunca”.

Rohter no Brasil
Com mais de 500 páginas, Rondon – Uma biografia tomou anos de pesquisa e várias de viagens ao Brasil para ser concluído. Não que Larry Rohter fosse um estranho ao país. Ele foi correspondente da revista Newsweek durante a ditadura militar e, depois, de 1998 a 2008, trabalhou para o New York Times aqui.

Na primeira temporada, conheceu Rondônia e a história do marechal que deu o nome ao Estado. Nasceu ali sua admiração pelo personagem.

“Chegando lá, fiquei cada vez mais admirado conforme eu ia avançando no interior, visitando garimpos, madeireiros, reservas indígenas, porque nos anos 1970 era difícil viajar por lá. As condições eram duras, mas era fácil imaginar como a experiência teria sido para eles 70 anos antes. Deve ter sido muito mais desafiador.”

Em sua segunda passagem, o jornalista tornou-se conhecido dos brasileiros depois de publicar uma reportagem no Times sobre como o apreço do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela bebida poderia estar prejudicando seu governo. Com um título parecido a “Hábito de beber de Lula se torna preocupação nacional”, o texto, publicado em maio de 2004, teve grande repercussão. O então correspondente teve seu visto cancelado, ação que depois foi revogada pelo governo.

Quinze anos depois do episódio, Rohter diz que o desentendimento com Lula durou apenas uma semana e não se compara aos seus anos de experiência no país.

“Foi uma semana difícil, porque eles pretendiam me expulsar. Pensar que nunca mais poderia voltar ao Brasil foi uma coisa dolorosa, porque tenho um relacionamento íntimo com o país, mas isso passou.”

Sobre tudo o que aconteceu com Lula desde então, do governo à prisão, Rohter prefere não falar. A biografia, diz, ocupou seus últimos anos e não tem acompanhado de perto a situação do ex-presidente.

Questionado sobre uma entrevista que deu em 2016, falando que a imagem de Lula e do PT estavam “manchadas para sempre”, ele decide responder.

Para Rother, o partido promove uma campanha para “culpar os outros pela bagunça que eles mesmos fizeram” e não admite sua participação na criação do “fenômeno Bolsonaro”.

“O fenômeno Bolsonaro foi e ainda é, em certo sentido, uma reação às mazelas do governo PT: a corrupção, o mensalão, porque prometeram o governo mais limpo da história do Brasil. Eu estava lá, em Brasília, quando o Lula tomou posse. Eu cobri a campanha de 2003, ouvi a retórica, mas a realidade foi bem diferente.”

Com mais de duas dúzias de expedições pelo Norte do país, Marechal percorreu mais de 40 mil km² pelo Brasil
Juntando as duas pontas da conversa – Rondon e o Brasil de hoje – o biógrafo escolhe uma frase do marechal para este momento do país. O que Rondon, um patriota positivista, idealista perene, diria diante do pessimismo crescente de seus conterrâneos?

A citação vem da última entrevista concedida por Rondon, em 1957.

“O Exército deveria ser o grande mudo, pronto ao sacrifício pelo bem da Nação, sem, contudo, intervir em mesquinhas questões de politicagem.”

“Ele estava comentando a tentativa de golpe contra a posse do Juscelino Kubitschek. Mas suas palavras foram ignoradas pelos militares em 1964 e acho que é uma frase que ainda tem relevância”, explica o jornalista.

Por quê? Elas continuam sendo ignoradas?, a reportagem pergunta.

Rohter responde que não. Ele diz que não vê militares falando em assumir o poder. As Forças Armadas, argumenta, aprenderam com a experiência da ditadura e não querem repetir a dose.

Seria então um conselho apropriado para o atual governo?, a BBC insiste.

Há uma nova negativa.

“Não especificamente, mas como um conselho geral…”,
Ingrid Fagundez/BBC

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