“Não nos cabe discutir, aqui, esta tomada de posição filosófica. Constatemos somente que, em última instância, o homem moderno a-religioso assume uma existência trágica e que a sua escolha existencial não é desprovida de grandeza. Mas este homem a-religioso descende do homo-religius, e queira-o ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir das situações assumidas pelos seus antepassados. Em suma, é o resultado de um processo de dessacralização. […]
Mas isto quer dizer que o homem a-religioso se constitui por oposição ao seu predecessor, esforçando-se por se “esvaziar” de toda a religiosidade e de toda a significação trans-humana. Ele reconhece-se a si próprio na medida em que se “liberta” e se “purifica” das “superstições” dos seus antepassados. Por outras palavras, o homem profano, queira-o ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado das significações religiosas. Faça o que fizer, é um herdeiro. Não pode abolir definitivamente o seu passado, porque ele próprio é produto desse passado.
Constitui-se por uma série de negações e recusas, mas continua a ser ainda assediado pelas realidades que recusou e negou. Para dispor de um Mundo para si, dessacralizou o Mundo em que os seus antepassados viviam, mas para chegar aí, foi obrigado a tomar o inverso do comportamento que o precedia, e este comportamento sente-o ele sempre, sob uma forma ou outra, prestes a reatualizar-se no mais profundo do seu ser.”
Mircea Eliade