Os críticos do socialismo afirmam que, por serem os humanos naturalmente egoístas e cruéis, o socialismo não funciona. Isso não é verdade.
Exposição Karl Marx em Trier, Alemanha. Esculturas por Ottmar Hoerl. | t: Hannelore Foerster (Getty)
Quem se propõe a defender o socialismo nas primeiras décadas do século XXI precisa enfrentar a ampla variedade de argumentos anti-socialistas desenvolvidos durante o século XX. Problemas de cálculo econômico representam um desafio prático de pelo menos algumas propostas socialistas. Argumentos libertários baseados na ideia de um direito natural à propriedade desafiam sua moralidade. Mas uma das reivindicações mais persistentes dos críticos do socialismo, que eu quero abordar de frente, é a ideia de que o socialismo não é apenas impraticável ou mesmo imoral, mas antinatural.
O economista e crítico social austrolibertário Murray Rothbard, por exemplo, intitulou um livro de seus ensaios Igualitarismo – Revolta Contra a Natureza. O professor de psicologia e popularizador de ciência Steven Pinker afirma com veemência em seu livro Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana que “socialismo e comunismo […] correm contra nossa natureza egoísta”.
O colunista e historiador da Arc Digital, Joshua Tait, discute em um artigo da semana passada por que reivindicações científicas desse tipo apelam tão fortemente à direita.
Essas são as descobertas – tipicamente biológicas, psicológicas ou antropológicas – que encontram características imutáveis na natureza humana. Os conservadores são atraídos por estudos biológicos que enfatizam nossa irracionalidade, nossa natureza agressiva, nossas diferenças genéticas e nosso tribalismo. Esse conservadorismo científico às vezes se transforma em ciência racial, especialmente no estudo deliberadamente anódino da “biodiversidade humana”.
Por que se preocupar com essas reivindicações? Como Tait coloca, “a característica determinante da direita é que ela considera os objetivos igualitários da esquerda impossíveis ou indesejáveis e, portanto, se opõe a eles”. Portanto, o fascínio dessas alegações é que eles são capazes de expor, “com autoridade científica, os limites permanentes, embutidos e intransponíveis da ideologia de esquerda”.
A visão sombria da natureza humana pintada por esses críticos tem raízes tão novas quanto a psicologia evolucionária e tão antigas quanto a doutrina do pecado original. Ela tem sido usada para motivar argumentos contra o socialismo não apenas por libertários como Rothbard, centristas neoliberais como Pinker ou vários críticos de direita do progressismo como os que Tait publicou, mas mesmo por alguém tão “à esquerda” quanto Cenk Uygur, anfitrião de The Young Turks (TYT). Quando um interlocutor do C-SPAN perguntou a Uygur sobre o marxismo, ele declarou categoricamente que “a natureza humana não funciona da maneira que os comunistas querem que funcione”.
Em algumas versões dessa crítica, o ponto é generalizado da natureza humana para a natureza em geral. Jordan Peterson criou o hábito de tuitar coisas como esta:
TRADUÇÃO @jordanbpeterson: 30% das formigas fazem 70% do trabalho. Isso não é uma consequência do Ocidente ou do capitalismo, caso isso precise ser dito ?
Definindo nossos termos
Uma preocupação inicial com esse argumento é que o “socialismo” vem em muitos sabores diferentes.
Existem socialistas de mercado como Erik Olin Wright, cujas visões do futuro incluem espaço para um “setor privado” de cooperativas de trabalhadores concorrentes, bem como marxistas ortodoxos como Paul Cockshott, que pensam que a tecnologia da computação tornou redundante o problema de cálculo na década de 80. Até o teórico liberal John Rawls, ao final de sua vida, foi levado a concluir que algum tipo de socialismo pode ser necessário para realizar plenamente os ideais liberais.
O que essas visões têm em comum é uma aspiração generalizada de transferir empresas econômicas da propriedade de empresários privados para trabalhadores e comunidades, a fim de criar uma ordem social mais justa e igualitária.
Além da confusão, “socialismo” também é uma palavra usada por social-democratas como Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, que querem reformar as sociedades capitalistas de várias maneiras, sem desafiar sua estrutura econômica fundamental. Embora “socialistas”, no sentido da palavra definida acima, tipicamente votem em políticos social-democratas e valorizem as reformas social-democratas como passos importantes na direção certa, eles têm objetivos mais radicais a longo prazo.
Uma terceira coisa que “socialismo” muitas vezes significava no século XX era a substituição do capitalismo não pelo controle dos trabalhadores sobre os meios de produção, mas pelo domínio de uma elite não eleita de burocratas partidários e planejadores estatais. Felizmente, quase todos os anticapitalistas em 2019 rejeitam o stalinismo. Eles querem mais democracia do que países como os EUA e o Reino Unido têm agora, e não menos. A questão em pauta é se a realização de planos radicais para estender a democracia no local de trabalho “correria contra nossa natureza egoísta”.
Questionando a premissa
A resposta socialista comum ao que chamarei de Argumento da Natureza Humana é questionar a verdade da premissa.
Onde os anti-socialistas ressaltam nossa capacidade de egoísmo, nossa crueldade e nossa tendência a nos organizar em hierarquias de domínio, os socialistas geralmente enfatizam nossa capacidade de cooperação, compaixão e solidariedade. Então, por exemplo, em Por Que Não o Socialismo?, de G. A. Cohen, nos perguntam por que a sociedade não deveria funcionar como um acampamento, onde as famílias compartilham equipamentos e recursos e tudo o que trouxeram individualmente, em vez de afirmar seu uso exclusivo desses bens.
Na sua forma mais simples, a ideia aqui é contrariar a afirmação de que “os seres humanos são ruins” com a afirmação de que “na verdade, os seres humanos são bons”.
O problema óbvio é que, embora a gama de comportamentos humanos inclua uma grande capacidade de crueldade e cooperação, egoísmo e solidariedade, a premissa de que somos frequentemente egoístas e cruéis é inegável. (Certamente, sou muito fã de Tom Waits para negar.) Uma maneira mais sofisticada de desafiar a premissa de que temos naturezas egoístas e cruéis vem de Emma Goldman:
Pobre natureza humana, que crimes horríveis foram cometidos em teu nome! Todo tolo, do rei ao policial, do pároco de cabeça chata ao tagarela cego da ciência, presume falar com autoridade da natureza humana. Quanto maior o charlatão mental, mais definida é sua insistência nas maldades e fraquezas da natureza humana. No entanto, como alguém pode falar sobre isso hoje, com toda alma na prisão, com todo coração preso, ferido e mutilado?
John Burroughs afirmou que o estudo experimental de animais em cativeiro é absolutamente inútil. Seu caráter, seus hábitos, seus apetites passam por uma transformação completa quando arrancados do solo no campo e na floresta. Com a natureza humana enjaulada em um espaço estreito, levada diariamente à submissão, como podemos falar de suas potencialidades?
Liberdade, expansão, oportunidade e, acima de tudo, paz e repouso, por si só, podem nos ensinar os reais fatores dominantes da natureza humana e todas as suas maravilhosas possibilidades.
Argumentei em outro lugar que Goldman está correta ao acreditar que uma sociedade pós-capitalista não seria apenas mais justa e igualitária, mas também muito mais livre do que a que temos agora. E ela certamente sabia escrever uma passagem emocionante. Mas como resposta ao argumento da natureza humana, isto não é totalmente satisfatório. Afinal, um crítico do socialismo poderia responder, o que acontece se instituirmos sua utopia e os humanos continuarem a agir de maneira cruel e egoísta como sempre foram?
Precisamos voltar à lousa.
Uma resposta melhor
Um resumo bruto do Argumento da Natureza Humana pode ser assim:
Premissa 1: Os seres humanos são por natureza egoístas e cruéis.
Premissa 2: ?
Conclusão: O socialismo nunca funcionaria.
A Premissa 1 é certamente verdadeira, pelo menos até certo ponto. Claro, também é falsa até certo ponto. Em seu ensaio sobre a vida após a morte, David Hume diz que a maioria de nós “flutua entre a virtude e o vício” – insuficientemente bons para o céu ou insuficientemente ruins para o inferno.
Se aceitarmos, por uma questão de argumento, que a Premissa 1 realmente (em combinação com uma Premissa 2 adequada) nos dê uma boa razão para acreditar na Conclusão, a questão é se somos suficientemente ruins para o Argumento da Natureza Humana nos fazer refletir sobre o socialismo. Não tenho nem ideia de como essa questão poderia ser julgada.
Uma rota mais promissora seria questionar a conexão entre a premissa 1 e a conclusão. Muitas vezes, quando encontro uma visão sombria da natureza humana suscitada no curso de argumentos contra o socialismo, não faço ideia de que tipo de premissa 2 o autor tem em mente. Por exemplo, em uma troca recente entre os colaboradores da Arc, Jonathan Church e Matthew McManus, no LetterWiki, Church atribuiu um tipo de visão “a natureza humana é realmente boa” à esquerda:
Se, então, a visão básica de esquerda é Rawlsiana, isso significa que maximizamos o padrão de vida mínimo para garantir não apenas comida suficiente para comer, moradia decente, seguro de saúde e tudo isso, mas também para garantir que não estamos tão atolados com as ansiedades da sobrevivência material de forma que todos podemos seguir uma vida “autêntica” (como Marx disse, creio, se pode pescar de manhã, caçar à tarde, etc., ou algo assim)? Nesse caso, isso parece supor que os seres humanos são, em última análise, de natureza “nobre”, e tudo o que os impede de alcançar os objetivos “nobres” de sua alma são restrições materiais.
Eu não estou tão convencido disso.
Church parece estar supondo que devemos apenas visar uma sociedade que permita aos humanos florescer se supormos que a natureza humana é nobre. Mas por que devemos supor isso? Não considero meu gato um modelo moral – e tenho certeza de que um rato não o veria como um -, mas ainda quero que ele tenha a melhor vida possível.
Natureza e Incentivos Humanos
A versão do Argumento da Natureza Humana que vi que liga os pontos da maneira mais clara é a apresentada por Pinker e Uygur.
No ‘Tábula Rasa’, Pinker cita uma passagem clássica de Adam Smith: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração deles pelo seu próprio interesse.” Ele a compara com a única frase da Crítica do Programa de Gotha, de Karl Marx, que todo mundo conhece – incluindo pessoas que nunca leram o restante desse documento: “De cada um de acordo com suas habilidades, para cada um de acordo com suas necessidades”.
Pinker comenta a justaposição:
Marx, o arquiteto do comunismo e do socialismo, pressupõe que em uma sociedade socialista do futuro o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro nos proporcionem um jantar por benevolência ou auto-realização – por que mais eles se exercitariam alegremente de acordo com suas habilidades e não de acordo com suas necessidades?
Da mesma forma, Uygur faz referência a uma versão mutilada da formulação do Crítica do Programa de Gotha no segmento da C-SPAN mencionado no começo do texto:
A natureza humana não funciona da maneira que os comunistas querem que funcione, onde você coloca o quanto quiser e retira apenas o que precisa. Não é assim que os seres humanos funcionam, então o comunismo geralmente leva a ditaduras porque, como não é um bom ajuste para a natureza humana, um homem forte entra e assume o processo.
Como afirmação sobre a origem histórica dos regimes stalinistas, isso é extremamente impreciso. Os bolcheviques haviam provocado uma ditadura de partido único cerca de um ano após a Revolução Russa, e todo o resto dos estados Comunistas com ‘c’ maiúsculo não surgiram de homens fortes que sequestraram tentativas sinceras de implementar a utopia “cada um de acordo com suas habilidades […]”, mas de tentativas conscientes de replicar o sistema soviético pelos partidos comunistas que estavam ideologicamente comprometidos com esse modelo. Nenhuma dessas sociedades, em nenhum estágio de seu desenvolvimento, alegou estar colocando em prática a passagem “de cada […] para cada […]”.
O que Marx não disse
Se eles tivessem lido o resto da Crítica (ou mesmo apenas o capítulo inteiro em que a passagem “de cada […] para cada […] aparece), Pinker e Uygur teriam encontrado essa passagem, na qual Marx critica seus rivais lassalianos no movimento socialista de seu tempo por defenderem que cada trabalhador receba uma parcela igual do produto comum de seu trabalho:
Um homem é superior a outro, física ou mentalmente, e fornece mais trabalho dentro do mesmo tempo, ou pode trabalhar por mais tempo; e o trabalho, para servir como medida, deve ser definido por sua duração ou intensidade; caso contrário, deixa de ser um padrão de medida. […] Além disso, um trabalhador é casado, outro não; um tem mais filhos que outro, e assim por diante. Assim, com um desempenho igual de trabalho e, portanto, uma [participação] igual no fundo social de consumo, um receberá de fato mais que outro, um será mais rico que outro, e assim por diante. Para evitar todos esses defeitos, o direito, em vez de ser igual, teria que ser desigual.
Isso certamente faz parecer que Marx vê o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro – ou melhor, os trabalhadores autogeridos nos matadouros, cervejarias e padarias coletivizados do futuro socialista – sendo motivados na “duração e intensidade” de seus trabalhos com a esperança de recompensas materiais.
Obviamente, ele previu essa mudança à medida que o socialismo evoluiu para sua próxima fase, mas isso também é facilmente incompreendido por aqueles que estão lendo a linha citada por Pinker fora de contexto. Sua linha de pensamento aqui é melhor compreendida lendo a Crítica em conjunto com o “Fragmento Sobre Máquinas” de Marx, onde ele discute como a automação pode se desenvolver se combinada com o controle dos trabalhadores sobre os meios de produção. Sob o capitalismo, a automação tira as pessoas de um emprego. No socialismo, previu Marx, isso significaria apenas que os trabalhadores poderiam votar a si mesmos menos horas de trabalho pela mesma compensação. Eventualmente, ele pensou que haveria tanta abundância que todos poderiam simplesmente pegar o que precisavam, e que pouco trabalho ainda precisava ser feito pelos seres humanos poderia ser realizado por todos que seguissem os projetos que lhes interessassem. É aí que obtemos: “De cada um de acordo com suas habilidades, para cada um de acordo com suas necessidades”.
Isso pode parecer para alguns leitores uma ficção científica totalmente irrealista. Não vou discutir esse ponto aqui. O que quer que se faça, no entanto, é importante deixar claro que Marx não está fazendo nenhum tipo de previsão sobre os seres humanos se tornando mais benevolentes. Ele está fazendo uma previsão estreita sobre as consequências econômicas da combinação de avanços tecnológicos com o controle democrático da tecnologia. Ele não está sugerindo que as pessoas não sejam egoístas ou cruéis em seus relacionamentos pessoais ou que não sejam cruelmente competitivas em competições de patinação artística, jogos de basquete ou torneios de xadrez. De fato, em uma sociedade onde o dinheiro deixa de ser relevante, é inteiramente possível que a busca pelo status em contextos não financeiros se torne mais competitiva.
Invertendo a Objeção à Natureza Humana
Mesmo que Pinker e Uygur tivessem uma objeção razoável a uma visão específica do socialismo apresentada por Marx, como isso deve generalizar o que Pinker agrupa alegremente como “socialismo e comunismo” em geral? Se “de cada […] para cada […]” não é realista, não necessariamente conclui-se que a propriedade pública dos meios de produção seja intrinsecamente irrealista.
Vamos supor, por uma questão de argumento, que Marx estava errado ao pensar que a combinação de automação e propriedade coletiva de máquinas um dia tornaria desnecessário que açougueiros, cervejeiros e padeiros humanos continuassem recebendo incentivos materiais para produzir nossos jantares. Eu argumentaria que podemos ter socialismo e incentivos. É improvável que trabalhadores em uma economia democrática sintam a necessidade de incentivar alguém pagando 287 vezes mais dinheiro que os outros – o diferencial médio de remuneração entre trabalhadores e CEOs no ano passado nos Estados Unidos – mas isso não significa que eles se contentariam com escalas de pagamento completamente planas também. Na verdade, eles poderiam reverter algumas das desigualdades com as quais estamos acostumados no capitalismo.
Pense no trabalho do “açougueiro”. Em uma sociedade em que todos tenham acesso significativo ao ensino superior e ninguém é levado a empregos mais inseguros e insalubres por puro desespero, a única maneira de preencher essas lacunas seria compensá-los em um nível mais alto do que ocupações que são naturalmente agradáveis e interessantes. Por outro lado, no mundo em que vivemos, mesmo os professores de filosofia ganham quase quatro vezes o salário médio dos trabalhadores de matadouros.
A consideração da diferença ainda maior entre o salário desses trabalhadores e os lucros levados para casa pelas empresas proprietárias dos matadouros deve nos levar a olhar para a relação entre socialismo e natureza humana sob uma perspectiva totalmente diferente. O fato de os trabalhadores imigrantes conseguirem empregos trabalhando em condições sujas, barulhentas e inseguras para os salários da pobreza, fala de seu desespero. O fato de que os tomadores de decisão nas empresas que os empregam lhes oferecerão esses salários em primeiro lugar e depois subverterão impiedosamente suas tentativas de sindicalização, fala da enorme capacidade dos seres humanos de egoísmo e crueldade.
Ambos os lados do debate tradicional estão errados. Se começarmos de uma visão ensolarada da natureza humana, talvez não nos preocupemos muito com o modo como chefes e donos de empresas usarão suas posições para tratar aqueles com menos riqueza e poder. Na medida em que nos preocupamos com os aspectos egoístas e cruéis de nossa natureza, por outro lado, isso deve nos dar uma razão para favorecer um sistema econômico muito mais igualitário e democrático.
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Texto de Ben Burgis, professor de filosofia na Georgia State University Perimeter College e autor do livro Give Them An Argument: Logic for the Left. Seus artigos já foram publicados na Jacobin, Quilette, Areo, entre outros. Sigam sua conta de twitter @BenBurgis.
Tradução por @lackingclass – Originalmente publicado em Arc Digital.